JORGE REIS-SÁ
Nasceu em 1977, em Vila Nova de Famalicão, Portugal.
Frequentou os cursos de Astronomia e Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e estagiou no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da mesma instituição, onde estudou genética populacional, interrompendo a formação acadêmica para se tornar editor.
É responsável pela editora Quasi Edições e pela empresa Do Impensável - Projecto de Atitudes Culturais.
Editou até ao momento quatro livros de poemas: À memória das pulgas da areia [Quasi Edições, 1999], Quase e outros poemas de querença, com pinturas de Luís Noronha da Costa [Quasi Edições, 2000], A palavra no cimo das águas [Campo das Letras, 2000] e Biologia do homem [Quasi Edições, 2004], além de dois livros de
narrativas: Por ser preciso [Cosmorama, 2004], vencedor do Prêmio Manuel Maria Barbosa du Bocage (2004) e recentemente editado em Itália, e Equilíbrios pontuados [Edição do Autor, 2004].
É colaborador permanente das revistas portuguesas LER e Magazine/Artes, onde assina as crônicas 'A Biologia dos Livros" e "Simbioses & Comensalismos", respectivamente.
Organizou diversas antologias, entre as quais Anos 90 e agora — uma antologia da nova poesia portuguesa.
Mais informações em www.jorgereis-sa.com
De
Jorge Reis-Sá
Biologia do Homem
São Paulo: Escrituras Editora, 2005. 65 p. (Col. Ponte Velha)
isbn 85-7531-163-8
www.escruturas.com.br
A SALVAÇÃO DO MUNDO
Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo.
O poema não pode ter mais do que uma casa, paredes
caiadas de branco, os azulejos a rebaterem o sol contra
a sombra, dizendo-lhe o seu lugar. O poema é o meu pai
em sofrimento na cama do hospital, as mãos inúteis que
lhe afagam a dor, estas mãos tão inúteis percorrendo os
versos ao som das palavras. O poema é circunstância de lugar
em imagens atiradas ao chão, reduz à sombra o sol. A casa
essencial, a do poema, memória e salvação de um homem.
O mundo é útil de poesia. Todos os versos são possíveis.
UM CORPO CANSADO PELA MORTE
Sabe que a tristeza inundou um corpo cansado pela morte.
Que o sorriso desapareceu numa madrugada fria de Dezembro
e não houve Natal possível. Que a geada que cobria os campos
nesse dia, como neve caindo de um céu muito azul, gelou
o coração para sempre. Sabe que a morte cumpre a sua tarefa,
que não existem roupas negras que cheguem para a noite
que se adivinha. O corpo do homem foi fechado pela madeira
de um só tronco. Não existem mares que atravessem o odor
da infância na memória de um filho. As praias serão mantidas ao
longe, agora que o sol cai no horizonte do mar, como o tronco
que lhe guardará o corpo já caiu há meses por terra, o aguarda.
Sabe que os bichos foram mortos e a madeira está limpa.
Só no encontro com a terra poderão ressuscitar do pó, esboroar
o tronco, tragar-te o corpo. Envolvido por vermes, desaparecerás
lentamente como desapareceu o calor do coração da mãe.
A MÃE ESTÁ SENTADA NO ALPENDRE
à minha mãe, advérbio de estar
A mãe está sentada no alpendre a ver os advérbios passar:
serenamente, completamente, em paz. Como se a paz fosse
um advérbio de modo de estar, um orgulho. A mãe está sentada
no alpendre olhando em frente o campo, o cemitério, a igreja,
o padre celebrando a missa, celebrando os mortos. A mãe vê
a serenidade completa da paz atravessar-lhe o corpo e deitar-se
sob o mármore, sob as lápides, sob as flores e o ar que as esvoaça.
A mãe vê os advérbios passar, levando-lhe a paz. E uma vez
mais o padre, na igreja, dizendo: Senhor, dai-nos a paz.
Página publicada em novembro de 2010 |