JOÃO REBOCHO
JOÃO REBOCHO (1960 - ) Nasceu em África nos anos sessenta. Fez estudos secundários em Gouveia. Tem uma licenciatura e uma pós-graduação pela Universidade de Coimbra. Frequentou um curso de Escrita Criativa da Universidade Lusófona. Ganhou o Prémio Fnac/ Teorema 2000. Atualmente é Bibliotecário em Gouveia.
João Rebocho é considerado pela crítica como um autor pioneiro da nova literatura portuguesa graças à originalidade da sua construção criativa, com textos rápidos, inesperados e improváveis, mas também a um processo narrativo que se serve de figuras de estilo e de artifícios no uso da pontuação.
Fonte da biografia: http://www.bmel.pt
REBOCHO, João. Mentira vontade. Gouveia /Portugal/: Gráfica de Gouveia, 2018. 94 p. Capa: Pedro Coito. Fotografia capa: Maria João Carvalho.
algum comprimido
para escrever bem
alguma poção mágica
e eu não partilhava com ninguém
ou música Kurt Weill
caída no egoísmo
e o egoísmo
por favor, um xarope para o egoísmo
e eu
farmácia fechada
blindada
e vosotros a ver navios,
o remédio para as penas do inferno
no meu bolso
para as maçadas bíblicas
ela por ela
balde de água fria para
cada um dos penitentes
palavras cruzadas irresolúveis
afetos miseráveis e
pouca esperanças
é o que concedo
*
conceber um lugar
pessoas com nomes
estradas percorridas
ou o serviço militar
ir em certo dia
a palavras novas
uma língua nova
paisagem descoberta
aventura da vida
e mais livros que ninguém leu
engendrar pela primeira vez,
matar os cavalos de cansaço
e os amigos
ou os novos
transfigurados
e a realidade instalada aqui
só confirmar
certezas
eh pá, tudo tão perto de ruir
volúvel
o camuflado no fio
que tempo de verbo aqui?
*
apareço sem avisar
na casa do
homem
de quem somo filhos
tantos dias doente morto
e pouco ânimo
carregado de dívidas
asilo comboios, senhor
mudar o tempo
as linhas
e nem onde sentar-me
o meu pai adolescente
leva o velho pela mão
um homem
um gajo vulnerável
deixo espaço em branco
para completar
um dia melhor que eu
REBOCHO, João. Rapazas e raparigos. S.l. Portugal: Edição do Autor, 2015. 109 p. 14,5x20,5 cm. Capa: Pedro Coito; Maria João Carvalho. Impressão Gráfica do Gouveia. Ex. bibl. Antonio Miranda
tão perto de ser abstrato
mas tão perto tão perto
ou coisa nenhuma
atirar alguém para a linha
na plataforma
do metro de areeiro
ou então quase nada
vandalizar a tua estátua
memória
a estátua de ti mesmo
devagar
pintar-lhe as unhas
ou de nemézio
à entrada da praia
monótona
das maçãs
e
assim passou uma tarde
tudo é pouco
estreito
curto nas mangas
no lugar de um poema que desafiasse a morte
lágrimas ou
uma ponte entre as lágrimas
e mais murros no estômago
corpo
nervos arqueados
sangue em fio cordas
apneia asma
que não me deixava fumar
(são sebastião da falta de ar)
os sentidos e as flechas Argel
para o sofrimento
o abandono
não servem,
saltar da ponte sem corda
asas
mais coragem à noite
desafiasse a morte
e continuasse perto,
infância quartos sem luz
os fantasmas da casa vieram contigo
pelas estradas cinemas ausências cidades
para sempre de mãos dadas
REBOCHO, João. Ruas lavadas. S.l. Portugal: Edição do Autor, 2016.
92 p. 15x21 cm Impressão Gráfica de Gouveia. Ex. bibl. Antonio Miranda
nunca de mais o dinheiro
a elegância
que dá o sofrimento
nunca de mais sair contigo
o teu nariz partido
nunca de mais
as noites
os bares
duque de Windsor
príncipe de Tupperware
sangrar o vinho e
nunca de mais um poema do
Nemésio e mais livros
a nossa adolescência e a língua
que falávamos
desafiar Deus
do trabalho penoso suado
Deus da escrita
no alcatrão
das miragens
deitado na estrada
à beira de arder
Deus dos ferreiros da torre Eiffel
e das estrelas do mar
ao sol líquido do verão, e
daí aos ocioso Deus da poesia
da casa do Manoel de Barros
o Deus dos 47 mil dólares
de talento
desafiá-lo para criar e destruir
criar e descriar
dar existência e dizer chega
desafiar e ganhar
Deus do trabalho
Deus dos construtores de barragens
rezando em silêncio
Deus vegetariano dos talhos e
dos professores de medicina legal
honesto Deus das corridas de galgos
paciente Deus da gabarolice
a toda hora
chamado como testemunha
nem o que sou
consigo ser
para ninguém
não sou o gajo de ninguém
o cariño
o português
o Chamorro
o cabra
o São João da Arga
o Bentinho ou o Escobar
o Manteiga Fresca
de ninguém.
nunca fui,
ou já não sou
há que séculos
Página publicada em janeiro de 2018
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