POESIA DE PORTUGAL
Colaboração de Nicolau Saião
JOÃO GARÇÃO
Poeta, pintor, ensaísta, desportista e autarca, natural de Portalegre (1968) onde fez os primeiros estudos. Foi futebolista profissional (guarda-redes) na primodivisionária Académica de Coimbra. Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal (Univ. Coimbra), foi depois presidente da Direcção e professor do Instituto Superior de Ciências Educativas de Felgueiras.
Poemas e textos seus integram diversas antologias poéticas e plásticas. É colaborador de importantes órgãos artísticos nacionais e internacionais e tem participado em exposições de pintura em Portugal e no estrangeiro. Especialista em teoria artística e arte aplicada, proferiu conferências e publicou artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política em jornais e revistas da especialidade.
Colaborador de “Agulha”, “TriploV” , “Jornal de Poesia”, “DiVersos”... Autor de “Os versos do Zé Povão” e de “Contos do centro do meio”.
Vereador dos pelouros da Cultura, Educação e Acção Social da Câmara Municipal de Felgueiras e deputado na Assembleia da Comunidade Urbana de Vale do Sousa. É, também, membro efectivo da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Vive em Guimarães.
SENTIMENTO
A água está parada, muito quieta no meio da noite.
E é preciso perguntar-lhe: és água de um rio?
És água dum mar? És água dentro dum copo
sobre uma mesa muito antiga e sonhada?
És água para um cavalo beber? Para um cão se banhar?
Para um homem e uma criança se lavarem ao relento?
Para uma mulher, para um gato, para um lobo?
E a água talvez não te responda. Nunca te responda.
Ou te responda tarde de mais. Ou nem sequer te ouça.
Mas tu pergunta. Pergunta e espera pela resposta.
Mesmo que os minutos passem entre ti e a água
E devagar uma silhueta se desloque
e depois se detenha no meio das árvores imóveis.
ABECEDÁRIO
Vá, não entres aí
Isso é um advérbio de modo
E embora te pareça um particípio passado
é um adjectivo e às vezes um presente.
Fica parado à saída: está a chover
Dentro dessa frase quem anda ao sol molha-se muito
É um discurso ediomático e por isso
onde está o prenome é o substantivo.
Junta-te ao ponto e vírgula: custa menos
do que escrever com pontinhos nos is
quando as reticencias nos confundem
com exclamações ou verbos no futuro.
Os conjuntivos na oração nunca se entendem:
e por isso, dizem, é que os agás são mudos.
SOLFEJO
Meu menino, ino, ino
meu menino do cinzel
Se olhares para o horizonte
verás S. Pedro de Muel
Meu menino, meu menino
meu menino do Choupal
Se olhares para o oceano
tu verás o Cadaval
Meu menino, meninão
meu menino da pistola
Se olhares p’ra dentro dum morto
verás Moçambique e Angola
Verás o não e o sim
meu menino face preta
Se olhares para a tua imagem
‘starás no céu da Fuzeta
Num almoço ao pé do Douro
lá p’ró norte do país
Se olhares p’ra cima do mundo
cair-te-á o nariz
E se fores ao Estoril
a S.Roque e a Albufeira
um fantasma aparecerá
de repente à tua beira
Meu menino, ino, ino
meu menino desgraçado
Se olhares para tudo o resto
ficarás do outro lado
Entre um ponto circunflexo
um parêntesis e um til
Se souberes todas as letras
descobrirás o Brasil
Meu menino, meninote
meu menino brincalhão
Se não andares num fagote
perderás o coração
E hão-de partir-te a cabeça
meu menino, minha estrela
Se olhares p’ra baixo da morte
não poderás fugir dela.
Toma cuidado, menino
ao chegar e ao partir
Se não procurares a Vida
nem dela poderás fugir!
SÁBADO
Sinto-te respirar
enquanto a noite vai andando pelo mundo
e detrás das portas há mais silencio
como se as palavras tivessem partido
Armários e cadeiras são como presenças
são presenças entre as paredes
e tudo vai vivendo de novo
sem perguntas em nós e sem mágoas.
Nas antigas memórias
onde tudo se acolhe
as vozes esperam o tempo
de renascer.
AGUARELA
Na minha terra, quando eu era pequeno
havia montanhas altas com bosques e recantos
pelo menos um Oceano com piratas e segredos
e muitas outras coisas que se transfiguravam
Os heróis eram altos, atléticos, usavam duas cores
e parece que havia uns outros sobrados da Grande Guerra
A velhota gorda que vendia castanhas no largo do Rossio
pertencia a uma misteriosa quadrilha francesa
falava alto, tratava os fregueses pelo nome
aparecia e desaparecia consoante era Inverno ou Verão
No dia de Santos o gajo das barbas (que tinha um tesouro escondido)
dava-nos nozes, se lhe batíamos à porta
e havia alguns, corajosos, que batiam
Havia um espanhol que era barbeiro
mas as tesouras cantavam em português
Os polícias passavam, nas tardes de Primavera
muito suaves, devagarinho, rua do Comércio abaixo
quando não era pela Corredoura acima
Pareciam anjos vestidos de azul claro
Só muito mais tarde notei que usavam cassetete
Como eu gostava da Escola! E ainda por cima
os professores era tudo gente esperta
Não havia, que eu soubesse, pessoas infelizes
e os bandidos só faziam serviço no “Tintin”
ou nos filmes (poucos) da televisão
Mas as coisas, como nas fitas, parece que às vezes
andam demasiado depressa.
Os heróis – os mais velhos morreram –
tinham estado, coitados, com o Milhões na França
e os que eram às cores transformaram-se em futebolistas
com o remate trocado
A mulher das castanhas foi um ar que lhe deu:
finou-se com um colapso e era avó de três netos
como ela trabalhadores da fábrica da rolha
Os anjos que eram polícias já só andam de carro
e um deles até me ofendeu, um dia, junto a um Bar
Alguns dos professores ficaram com orelhas de burro
E nesta coisa de crescer, o que mais (juro-vos) me dana
é que agora corto o cabelo num cabeleireiro de homens
que competentemente me afeita (enquanto leio o jornal)
com um aparelho que rosna como um rafeiro sem classe.
OUTRORA
Ficava lá ao longe aquela serra. Ficava
ao longe muito perto da minha janela e do quintal
da madrinha Francisca. Ficava
entre as laranjeiras do quintal e às vezes
era de noite, lá estaria
pensava eu. Às vezes eu
pensava se haveria serras assim noutros lugares, mas
nem sabia que era uma serra. Lá estava entre os pinheiros
da estrada da volta à serra, que era uma outra
mais pequena ou seja
muito maior porque era mais perto e eu
ainda não sabia perspectiva
nem matemática, nem
sequer geografia: mas conhecia bem
a loja do senhor Buxita e dali
a serra à tarde encontrava-a por cima da prateleira
dos rebuçados de frutas.
A serra agora
ainda está no mesmo sítio, mas como em geral vou
de carro, a serra sempre a vejo junto do espelho
retrovisor e como escolho sempre a estrada
da piscina do Reguengo, a serra fica entre oliveiras e
também já a vi
entre as folhas e os ouriços dos castanheiros no outono
Como daquela vez há anos quando fui tirar
um retrato no dia
do baptizado do meu irmão perto daquela fonte
da fonte da Nave Fria e ele chorou.
João Garção
in “OS VERSOS DO ZÉ POVÃO”
Página publicada em dezembro de 2008
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