JOÃO CAMILO
Poeta e ensaísta, de nome completo João Camilo dos Santos, nascido em 1943. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa e doutorado pela Université de Haute Bretagne, com uma tese sobre a arte do romance em Carlos de Oliveira. Leitor de Português nas universidades de Oslo, Rennes, Aix-en-Provence e professor convidado na Universidade de Grenoble, é atualmente professor catedrático de Português da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, onde dirige um Centro de Estudos Portugueses. A sua poesia fixa com discreta ironia pequenas micronarrativas e imagens do quotidiano, não hesitando em converter em tema e linguagem poética motivos comuns.
O CORVO LITERÁRIO
I
Dêem-me um corvo recém-nascido
com ar de pato inocente
(penas tristes mal alinhavadas,
biquinho muito indolente).
Eu penduro-lhe ao pescoço
um relógio com corrente
(de ouro, metal valioso,
para dar-lhe um ar garboso).
Quero que aprenda depressa
as leis da escravidão:
do tempo que nos destrói
com suprema ingratidão;
das chagas feitas na alma
pela estúpida ambição.
Corvo humilhado e corvo prepotente,
corvo usado como resumo
do nosso destino incoerente.
Corvo outro e não ele próprio.
Carne ilusória, irreal,
de sujeito nunca existente.
Corvo figura de estilo.
Duvido, mas acredito,
que lhe mudei o destino:
fiz um pássaro metafísico
de um passaroco assassino.
A obsessão da mímese não o consome.
Mas apesar de literário, ele, corvo ainda,
parece que voa, se queixa, mata e come.
II
Um avião levantava voo
por cima da imensidão da água baça
(pista de aeroporto mal delimitada,
perturbada nos limites pelo bater das vagas)
E mil corvos voavam nas suas asas
de corvo metáfora, corvo símbolo,
corvo simplesmente alegoria.
Ruídos de asas e de bicos? Gritos e lamentos?
Dos séculos passados regressavam, inconsoláveis,
os fantasmas reais e irreais do sofrimento.
Eles comem tudo? Ou nunca comeram nada?
Corvo negro do infortúnio? Ou ave de
brancura imaculada, tingida por acidente
no mar sanguinolento do petróleo?
Corvo americano, corvo inglês ou corvo
iraquiano?
Corvo herói colorido de banda desenhada
ou corvo do jornal da noite com a face
massacrada?
E a água a suspirar, a bater na rocha dura.
O tempo nunca pára. Com a morte,
porém, sempre chega a ilusão da cura.
POESIA SEMPRE. Revista da Biblioteca Nacional do RJ. Ano 1 – Número 2 – Julho 1993. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Departamento Nacional do Livro. ISSN 0104-0626m Ex. bibl. Antonio Miranda
Tu mesmo
Vem ter comigo ao refúgio do silêncio e do abandono
a recordação do rosto da amada. Sublime
entre todas, as suas mãos não se detêm nos objectos
perecíveis. Solitário entre todos, o seu corpo abandonou
no entanto, por minha causa, o lugar secreto da casa.
No momento da dolorosa paz é a sua pele que em sonho
creio tocar. E na noite desolada a mágoa atenuou-se
durante um instante, cheguei a ouvir, alucinado,
repicar os sinos da igreja da minha aldeia.
Quem nasceu ou morreu, perguntei-me, atónito.
Mas quem podia responder-me, quem
se interessaria o bastante pela minha inquietação?
Tu mesmo, ouvi-me murmurar, és o recém-nascido
e aquele que acaba de expirar, tu mesmo e mais
ninguém. E para pôr limites ao delírio, os olhos
da amada fixaram-me intensamente no escuro,
eu senti as suas pernas encostarem-se às minhas
e o calor da sua pele inflamar o meu sangue.
Página publicada em junho de 2015; página ampliada e republicada em novembro de 2017.
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