FELIPE MARINHEIRO
Luis Filipe Marinheiro nasceu em Coimbra, 30 de Julho de 1982.
É natural e reside em Aveiro.
POEMA SEM TÍTULO 1
Devorei pulsos em chamas.
Amplamente o rosto envolto por coágulos de sangue luzidio
a trespassarem as veias estanques como a enrolar
as cores existentes
por dentro.
Certo é percorrerem
todo esse ar
que engole o corpo celeste mergulhado
na textura do nosso corpo temporal.
Fico com as mãos
cheias de ossos trancados.
Levanto
a cauda de um espelho
e alongo as vísceras astronómicas,
com bastante força química,
a dilatar numa circulação sanguínea
até a leveza
da garganta se alagar
na sombra líquida
das artérias
contra o alto esquecimento das coisas profundas,
contra os tendões severos a racharem a boca desvairada.
Relembro quando adormecia
sobre todas as
coisas vivas ou mortas
por fora.
Submetia os lábios
a girarem a voz louca
ao lume pedestre
e ardia pelo estremecimento terrível
dos nervos cabeça adentro,
donde múltiplas
estrelas demoníacas
a baterem-se em mim longamente
param, a pouco e pouco, a potência que nunca me sorriu
e vago ou inocente deixo de caber
nos sítios superficiais
à minha volta.
Releio todas as cumplicidades translúcidas
a moverem toda a pele num feixe de pérolas
das salgadas mãos,
aos braços a escorrerem aquele alimento
metidos nas águas sentadas
no túmulo dessas estrelas tubulares.
A destreza deste poema extingue-se quando as unhas
tocarem na carne abaixo, rompendo,
com sinceridade,
a desvastação simbólica
da escrita furibunda
ou silêncio furibundo
a pesar com delicada melancolia.
Ouço o rasgão
do corpo a sangrar
com os tecidos dos versos
a palpitarem porque se nomeiam
e se escrevem dentro
da pulsação ininteligível.
Por cima,
devoro os pulsos em chamas.
POEMA SEM TÍTULO 2
Cantam as túlipas.
E busco um cristalino mar
dum azul intensamente sensível.
Agora há-de sobressaltar-se gemendo
na sua farpada dobra
que me torce as unhas até esmagar
a água em volta do corpo,
por fora e dentro arbitrário,
ao entrar e sair salva,
como a luz florescente
duma janela longínqua debaixo
deste lento mar penetrante.
E faz idênticas espumas polirem meu suspiro
enquanto suavemente me afundo,
sem ser-me ninguém,
num mar de túlipas lavrado que se volta
para as palmas de minhas mãos esplêndidas
e me esvai toda a ferida
e peso rubros.
Bato embaciando-me
contra o sangue espesso das pedras
a baterem no espaço vazio
das pedras batidas
pela eternidade viva.
Batem-se as túlipas
no estremecimento das pétalas
contra o calor
sob o vento elástico.
Concentrassem
as gotas das coisas,
das terras despidas, de órbitas em órbitas,
mover-se-nos-iam
para a desastrosa profundidade volumosa
a inundar o que verdadeiramente
nenhuma pessoa possui.
Amamos o corte da neblina
encostando o vidro à cara
num clarão louco.
Sentimo-lo silencioso
para ilustrar a destruição
enquanto deixamos passar o horizonte
lá longe a planar.
As entranhas mirradas
a migrarem na concavidade nua
são hoje as sorridentes túlipas
a embalarem-me o fresquíssimo alvoroço,
donde rítmico,
regressei de dedos dados
ao frescor como desponto.
Quem visse
aquele pendurado cometa mole
a incendiar-se em jacto escorregadio
na copa das túlipas,
seria uma qualquer rota
pousada
no seu caule rodopiante
a colar-se à pele.
Tocas-lhe
e queimas-te intensamente
como queimaram um dia as tulipas
no momento em que se desprenderam.
Enumero o lume por baixo
e fecho-o pequeno.
Adormeço pela geada acima
escrevendo
o mar às tulipas surpresas.
Canta todo o alegre mar cristalino.
Cantam as cores que vêm do fundo limpo
de todas essas tulipas.
Cantam túlipas em mim.
POEMA SEM TÍTULO 3
Danças.
E as palavras do corpo
movimentam-se
na extensão doutro corpo
suspenso pela música
junto aos corações a crescerem-se
indefinidos e lentos.
A luz a retocar
a força por fora
dos olhos cúmplices.
Os corpos
a estremecerem-se
um no outro adentro
porque têm muito
que falar subtilmente
entre apaixonado toque
e tremores puro
dos dedos sem ver
todos os passos às voltas
das palavras à superfície funda
terão sempre o que dizer.
O compasso das mãos
a fluírem dentro
das pernas musicais.
Tanto para dar
tanto para receber
infinitamente
num acaso ordenado.
Danças
com a profundeza
dos braços
em espaço desenhado
ante a desordem aérea
e nos mútuos braços
se imobiliza
a perfeição
do tempo a ecoar
nos peitos entre
a cantiga dos pés
e os outros pés
a florirem
das danças exprimíveis
como para respirar
a alegria química
da energia num vácuo oculto.
Esvoaça toda a arquitectura
pelo silêncio na cintura
mesmo flexível
e as energias soltam-se
entrelaçadas
com os rostos
desprendidos contra
si próprios.
Então ninguém se fala
mas os corpos poderosos
sobre cada
palavra actuam
e as bocas inundam
todos esses corações.
Danças.
POEMA SEM TÍTULO 4
Livram-se de súbito
árvores dormidas
no barlavento
de mágoas íngremes
frente aos cotovelos
que te desprendem
ao sorriso
desses rios passageiros.
Mais à noitinha
a sua curva de ervas doiradas
desvairam-se longamente
cheias de cheiros graves e furtivos.
Ganham voo esquecido
mesmo que emparelhados
atrás do cesto de frutas a escorregar
contra a espiga do peito férreo
apodrecidas.
Ervas roucas urgentes
de um verde prata inimaginável.
Cheias de ervas
a sede.
Sede gémea
às luzes arrastadas
pela pele curável da tua sombra,
só tua até doer.
Húmida essa ferida noite
sem permanecer sobre nada
e soltas uma sílaba de paixão
falando-te puro
aos ricos pastos dentro
do raso silêncio.
Vai doer-me ver-te
porque sou assim
virado para ti
ó natureza comovente...
E quando pouso toda a alma
no que é teu e meu
ouvimos essa brisa melancólica
só nossa só nossa.
Escuto a aflição da dor anoitecida.
Alegre dor da noite navegada
em redor do lume da foice
perdemo-nos
nas ondas feitas de vento
a entrar e sair soletrado.
Ingenuamente as colinas limpas
sem orientação
e preconceito invisíveis
no amor de ti encostado contra
as faces
virado de costas.
Deves tudo isso
aos nossos lábios úteis.
Corremos novos na roupa
das estepes paradas
por cima do estremecimento da palavra
doutras searas então vigilantes.
Fossem ignorantes
nossas também.
Nunca poderão partir
os lamentos dessa pouca
exaltação.
Mas relembro-te
para fechares
extenso alguns cristais abandonados
das tuas veias galácticas
e a tremer como uma sonâmbula
alvorada nua.
Sais pela raiz da lua fora
porque a sua amável cara de criança
vem-te beber da terra flutuante
num encontro interdito
a essas belíssimas
mãos tão fielmente
compostas.
POEMA SEM TÍTULO 5
Na palma de minha mão
cabem os esguichos daquele emaranhado mar
ofegante
esfiam-se cachos de búzios nas bordas
tacteando uma pandemia de linhos a puxarem-se
temperamentalmente
do bico pontiagudo das aves a moer
o céu pálido da boca
amedrontava num arrepio arenoso
embora fosse embarcar nas ocas águas
sem os antepassados existirem
decidi riscar
o fundo que não estava destinado
à visita de grandes visões
e apaguei os declinados olhos migrantes
até esgaçar o ódio que restava
no punho carregado de sal aberto
é notável defesa redescobrir o exílio lânguido
quando se move
uma traça míope antes da sua nascença fétida
donde vejo
redentor sorriso a caber-me
POEMA SEM TÍTULO 6
A minha cabeça pensa em todas as cabeças é sombriamente
todas as outras cabeças, entranham-se, entram umas nas
outras, na minha! – inquieto-me, estremeço, esmago-me,
imortalizo-me tornando vidente tudo o que mexe...
Página publicada em janeiro de 2014
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