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CRISTÓVÃO FALCÃO

 

Cristóvão Falcão (1512 - 1557) - Poeta e diplomata português do século XVI. Por vezes o seu nome é referido como tendo sido Cristóvão Falcão de Sousa ou Cristóvão de Sousa Falcão. O nome próprio aparece por vezes com a grafia arcaica de Christóvão.  Ver bibliografia completa em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crist%C3%B3v%C3%A3o_Falc%C3%A3o

  

Como Dormirão Meus Olhos?

 

Como dormirão meus olhos?

Não sei como dormirão,

pois que vela o coração.

 

Voltas

 

Toda esta noite passada,

que eu passe em sentir,

nunca a pude dormir,

de ser muito acordada.

Dos meus olhos foi velada;

mas como não velarão,

pois que vela o coração?

 

As horas dela cuidei

dormi-las: foram veladas.

pois tam bem as empreguei,

dou-as por bem empregadas.

Todas as noutes passadas

neste pensamento vão,

pois que vela o coração.

 

Pássaros que namorados

pareceis no que cantais,

não ameis, que, se amais,

de vós sereis desamados.

Em meus olhos agravados

vereis se tenho rezão,

pois que vela o coração.

 

 

(De “Antologia Poética”)

 

 

C R I S F A L

 

....................................

 

Muito a vi eu mudada;

mas, com tudo, conheci

ser a minha desejada

a quem, assi vendo, vi,

a vista no ohão pregada,

com o seu cantar penoso

e passadas esquecidas,

ao tom dele medidas,

vestida vir de arenoso

as mãos nas mangas metidas.

 

Üa coifa não lavrada,

antes sem nenhum lavor,

e em cima, por mais dor,

üa talhinha pedrada

ou um pedrado atenor. ( *)

 

                      (*) - Vasilha, vaso.

 

Quisera-a ir receber

vendo-a ante mim presente,

mas não pude de contente,

que, indo pera me erguer,

de prazer me achei doente.

 

Vendo então que me forçava

o prazer fazer demora,

olhei o que mais passava,

e via-a que aquela hora

comigo emparelhava.

Dando uns mui doces brados

saídos do coração,

a cantiga vinha então

"em meus olhos agravados

vereis se tenho razão."

 

Ao que eu responder

me lembra: "São agravados?

Podem logo os meus dizer

que são bem-aventurados

pois que vos pudérom ver."

Como ela em me ouvir

gram sobressalto sentisse,

quis fugir: mas quem lhe disse

que se pusesse em fugir

lhe fez com que não fugisse.

 

Nas molheres o temor

tanto o poder empede,

quanto o medo maior for;

e contra donde procede

os olhos costumam por.

Ela, fazendo-o assi,

vendo-me ficou mudada;

depois, já em si tornada,

se chegou mais pera mim

a ser bem certificada.

 

Depois de me visto ter

e já que me conhecia,

lágrimas lhe vi correr

dos olhos, que não movia

de mim, sem nada dizer.

Eu lhe disse: "Meu dessejo"

vendo-a tal com assaz dor

"dessejo do meu amor,

"crerei eu ao que vejo

"ou crerei ao meu temor?"

 

A isto, bem sem prazer,

me tornou então assí

com voz de pouco poder:

"Crisfal, que vês tu em mim

que não seja pera crer?"

Eu lhe respondi: "Perder-vos

"de vos ver por tanto ano

"faz-me assim temer meu dano,

"que vejo meus olhos ver-vos

"e temo que me engano."

 

"Pois ore certo que esta são"

— deu a isto por resposta,

ainda que alegre não —

"e quem em tal dor é posta

"o que dela não crerão?

"Bem é de crer o meu chôro,

"a que tu causa me deste;

"não t' espante o que fizeste,

"que — quem me pôs neste fôro?

"tu és o que me puseste.

 

"Por ti vim eu desterrada

"a estas estranhas terras

"de onde eu fui criada,

"e por ti antre estas serras

"em vida são sepultada,

"onde a se me perderem

"a frol dos anos se vão.

"Ora julga se é rezão

"das minhas lágrimas serem

"menos daquestas que são."

 

Despoís que isto falou,

como quem em si respeita

as mãos ambas ajuntou,

e, postas na face direita,

dizer assi começou:

"Sobre o muito que perdi,

"nenhüa cousa duvido

"em ter o saber perdido

"pois tam mal me defendi

"do que me era defendido".

 

Eu lhe preguntei a hora,

mui triste de assi a ver:

"Quem teve tanto poder,

"que tenha poder, senhora,

"de nada vos defender?"

Respondeu por entre dentes,

como fala quem se peja:

"Dír-to-hei, em que erro seja:

"defendem-me meus parentes

"que te não fale nem veja.

 

"E, Crisfal, é-me forçado

"fazer a vontade sua,

"porque lho tenho jurado

"e tambem porque da tua .

"o certo me tem mostrado:

"que me dão certa certeza,

"porque fazem conhecer-me,

o que eu hei por gram crueza —

"o amor que mostras ter-me

"ser só por minha riqueza."

 

Ouvir-lhe eu isto me era

passar o trago mortal,

que não ha cousa tão fera

como é achar-se o mal

onde o bem achar-se espera.

Vendo já que estava posta

em o que eu não esperei,

com minha dor trabalhei

por lhe dar esta resposta

que me lembra que lhe dei:

 

"Ó Maria, ó Maria,

"brando achara meu mal,

"se, para minha alegria,

"vos vira a vontade tal

"como me ela ser devia;

"mas não é nova usança

"quem grande bem esperou

"não ver o que desejou.

"Muito pode a mudança,

"pois que vos tanto mudou!

 

"Quem pudera sospeitar

"que no amor e na fé

"me havíeis de faltar!

"Mas, pois já isto assí é,

"tudo é pera cuidar.

"Pois, por mais mal gue se guarde,

"sempre será meu amor

como a sombra, em quanto eu for:

"quanto vai sendo mais tarde,

"tanto vai sendo maior.

 

"Quando vos dei a vontade,

"inda vós érais menina

"e eu de pouca idade;

"mas caiu minha mofina

"sobre a minha verdade.

"Muito vos quis bem primeiro

"que de riquezas soubesse;

"pois meu amor verdadeiro,

"de quem só sois interesse,

"quem me faz interesseiro.

 

"Sobre a terra anda o gado

"e sobre ela ouro e riqueza,

"mas pera que é dessejado?

"que em fim não tira tristeza

"e acrescenta cuidado.

"Não sei em que se encerra

"ser esquecida e estranha

"esta verdade tamanha:

"cá fica o haver na terra,

"o amor a alma acompanha.

 

"Nus neste mundo nascemos

"e nus sairemos dele;

"neste meio que vivemos

"soo rico é aquele

"que ser contente sabemos.

"E que grandes bens vos dessem ...

"aqueles que vo-los deram,

"eu sei bem que nos nascerem

"e antes que os tivessem

"é certo que não tiverom,

 

"Pois se isto é assí

e o eu tambem conheço,

"como se crerá de mim.

"que sofrer o que padeço

"pode ser a êste fim?

"Cuidar que cuidado tinha

"das vossas riquezas grossas!

"Nas cousas passadas nossas

"vereis ser riqueza minha

"vós, que não riquezas vossas.

 

"Mas que fosse assi e mais,

"que remedio vos dão

"com quem conselho tomais,

"a grande obrigação

"em que, quanto a Deus, me estais?

"Que não são casos pequenos

"pera que se a alma não doa."

Respondeu: "Essa é boa!

"Dizem que isso é o menos.

"que Deus, que tudo perdoa.

 

"E dizem que eu moça era

"ao tempo que isso foi ser,

"e como tempo de crescer

"tinha, que assí justo me era

"tê-lo de me arrepender.

"Isto e mais se me diz

" — crê que te falo verdade —:

"que não tinha liberdade

"pera fazer o que fiz,

"por minha pouca idade.

 

"Então me mandam que meça.

"amor com quam longe estamos,

"pera que mais não me empeça,

"e, se prazeres passamos,

"os dessemule e esqueça;

"e que então me buscarão

"um mui grande casamento,

"tam de meu contentamento

"quanto meus olhos verão,

"e que o mais crêa que é vento.

 

"E eu, de mui esquecida,

"vou-lhe fazer o contrairol

"A ser tal culpa sabida

"sei certo que este desvairo

"pagarei com minha vida;

"e em isto ser assí

"assaz de razão seria,

"pois tam mal naqueste dia

"o seu mandado comprí

"como o que me a mim cumpria.

 

"Não te veja aqui ninguem;

"vai-te, Crisfal, desta terra;

"não quero teu querer-bem,

"porque me não dê mais guerra

"da que já dado me tem",

Em lhe isto eu ouvindo

fui pera lhe responder,

mas, depois de o dizer,

contra donde tinha vindo

se me tornou a volver.

 

Dei üa voz mui dorida:

"Por que me negais conforto.

alma desagradecida?"

Então caí como morto:

oxalá perdera a vida!

Não sei eu o que passou

em quanto isto passei,

mas junto comigo achei

quem me este mal causou,

depois já que em mim tornei.

 

E dizendo: "ó mezquinha!

"como pude ser tam crua!"

bem abraçado me tinha,

a minha boca na sua

e a sua face na minha.

Lágrimas tinha choradas,

que com a boca gostei,

mas, com quanto certo sei

que as lágrimas são salgadas.

aquelas doces achei.

 

Soltei as minhas então

com muitas palavras tristes,

e tomei por concrussão:

"Alma, por que não partistes,

"que bem tínheis de rezão?"

Então ela assi chorosa

de tam choroso me ver,

já pera me socorrer

com füa voz piadosa

começou-me assi dizer:

 

"Amor de minha vontade,

"ora nom mais: Crisfal manso,

"bem sei tua lealdade;

"ai, que grande descanso

"é falar com a verdade!

"Eu sei bem que não me mentes,

" — que o mentir é diferente;

"não fala d'alma quem mente.

"Crisfal, não te descontentes,

"se me queres ver contente.

 

"Quando contigo falei

"aquela última vez,

"o chôro que então chorei,

"que o teu chorar me fez,

"nunca o eu esquecerei.

"Foi esta a vez derradeira,

"mas começo de paixão,

"passando me eu então

"para o Casal da Figueira

"do Val de Pantalião.

 

"Minha fé te é verdadeira;

"no mal que te fiz o vi,

"porque no fim, a derradeira,

"não quero mal contra ti

"que o meu coração queira.

"Por me ver livre de dor

"deixara eu de te querer,

"se o podera fazer;

”mas poder e mais amor

"não podem estar num poder."

 

Neste passo acordei eu;

e o meu contentamento,

que eu cuidava que era meu,

deu-me depois tal tormento,

qual nunca cousa me deu.

Não sei eu (que a Deus custava?)

porque não me outorgara

que nesta glória ficara,

ou, pois já que acordava,

que disto não me acordara.

 

Assí como nos lugares,

em morte e enterramento,

os sinos dobram a pares,

morreu meu contentamento,

dobrárom-se meus pesares.

Por quam gram dita tivera,

se, per dar fim a tristura,

ou neste tempo morrera!

Sabe Deus que eu bem quisera,

mas não quis minha ventura.

 

Não vos posso mais contar,

águas minhas, minhas águas.

que me não deixa pesar;

ora chorai minhas mágoas,

que bem são pera chorar.

Que em que cem olhes tivera,

como teve Argos pastor,

da vaca lo guardador,

mais olhos mister houvera

para chorar minha dor."

 

Isto que Crisfal dezía,

assi como o contava,

üa ninfa o escrevia

num álemo que ali estava,

que ainda então crescia.

Dizem que foi seu intento

de escrevê-lo em tal lugar

pera por tempo se alçar

onde baixo pensamento

lhe não pudesse chegar.

 

Eu o treladei dali,

donde mais estava escrito

que aqui não escrevi,

porque mal tam infenito

não se lhe pode dar fim.

O que se fez de Crisfal

não sabe certo ninguem

muitos por morto o têm,

mas quem vive em tanto mal

nunca vê tamanho bem.

 

 

 

 

 

Página publicada em outubro de 2015


 

 

 
 
 
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