CRISTOVAM PAVIA
[ FRANCISCO BUGALHO ]
Cristovam Pavia, de seu nome civil Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, nasceu a 7 de Outubro de 1933 em Lisboa, vindo a falecer sob o rodado dum comboio, na mesma cidade, em 13 de Outubro de 68.
Seu pai era o presencista Francisco Bugalho, oriundo de Castelo de Vide e ali residente. A partir de 1940, o poeta morou em Lisboa, ali finalizando os estudos liceais.
Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa, que abandonou para ingressar na Faculdade de Letras. Entre 1960 e a sua morte trabalhou na construção civil e viveu entre Lisboa, Castelo de Vide, Paris e Heidelberg, tendo nesta última recebido acompanhamento psicoterapêutico. Deu a lume, em 1959, “35 Poemas”, a sua única obra poética publicada em vida. Anteriormente tinha publicado colaboração poética em jornais e revistas, como Diário Popular, Árvore, Anteu, Távola Redonda, Serões. Usou, além de Cristovam Pavia, os pseudónimos, ou "semi-heterónimos", Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira. [Biografia exraída do sitio TRIPLOV]
Na noite da minha morte
Tudo voltará silenciosamente ao encanto antigo...
E os campos libertos enfim da sua mágoa
Serão tão surdos como o menino acabado de esquecer.
Na noite da minha morte
Ninguém sentirá o encanto antigo
Que voltou e anda no ar como um perfume...
Há-de haver velas pela casa
E xales negros e um silêncio que eu
Poderia entender.
Mãe: talvez os teus olhos cansados de chorar
Vejam subitamente...
Talvez os teus ouvidos, só eles ouçam, no silêncio da casa velando,
E mesmo que não saibas de onde vem nem porque vem
Talvez só tu a não esqueças.
(35 poemas)
***
ao Nuno
Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim despojado, ser
Abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.
(35 poemas)
PASTOR
Todo o rebanho espalhado
pela paisagem cinzenta
de inverno fresco e calado,
não sei de que se apascenta
neste chão frio e surrado;
apenas o meu cuidado
de bom pastor o sustenta.
Meu gado de criação
vou-o descendo às canadas
onde o frio das geadas
não despiu de todo o chão;
— minhas ovelhas pejadas
precisam de ser tratadas
pela sua condição...
Que o céu tão baixo e cerrado
carrega de nuvens escuras
a serra e o meu cuidado
pelas ovelhas e as puras
crias de olhar resignado.
Eu sofro pelo meu gado,
pelas suas amarguras.
E quando à tarde voltamos
para o redil que nos espera
no meio do campo absorto,
ao frio que dilacera,
resta-me só um conforto:
pensar que este mundo morto
terá uma primavera.
ADORMECER
Furtivamente
na luz do dia infiltra-se o luar.
Ao pátio vêm chegando as mulas de trabalho
de guiseiras de som tão argentino
que são a própria voz da noite e do luar.
O olival é prata todo em roda.
Os ralos cantam
e um bafo morno corre,
percorre a noite toda,
carregado de aroma acre e selvagem
que vem lembrar
o mistério sombrio
de certos conhecidos recantos de paisagem.
No pátio ainda há gente a conversar,
numa toada cada vez mais rara...
Há mais luar...
E a noite vai-se abrindo
nua, silente e clara.
MEIO DIA
Céu baço. Quente quebrando
se espalha, no longe, enquanto
cantam cigarras à roda...
E parou-se a vida toda;
porque o Sol tudo queimou.
Só, no ar quente, pairou
um negro corvo e poisou
sobre o montado sangrando,
nos troncos rudes despidos...
Redobram roucos zumbidos
de moscardos que passando,
em cega-rega, adormecem;
entorpecendo os sentidos...
... Sobre meus olhos cansados
e cerrados
há véus de chamas que descem...
MARINHA
Um bando de gaivotas
revoluteando,
insistindo...
Partindo
e logo voltando,
em voltas e cambalhotas,
sobre o mar...
A vela branca, a vibrar,
que se não sabe onde vai,
desaparece
e parece
que já não há-de voltar...
Mas de repente aparece
e vai do fundo, do mar
para o céu...
E um menino que correu
e riu
às transparências desse mar sem fim,
quando me viu,
levantou a grande aba do chapéu
e, desenhado a branco sobre o céu,
ficou, por muito tempo, a olhar p'ra mim.
De “Margens”
Página publicada em abril de 2010; ampliada e republicada em agosto de 2015. |