CÔRTES-RODRIGUES
Armando César Côrtes-Rodrigues (Vila Franca do Campo, 28 de Fevereiro de 1891 — Ponta Delgada, 14 de Outubro de 1971) foi um escritor, poeta, dramaturgo, cronista e etnólogo açoriano que se distinguiu pelos seus estudos de etnografia e em particular pela publicação de um Cancioneiro Geral dos Açores e de um Adagiário Popular Açoriano, obras de grande rigor e qualidade.
OUTRO
Passo triste no mundo, alheio ao mundo
passo no mundo alheio, sem o ver,
e místico, ideal e vagabundo,
sinto erguer-se minh'Alma do profundo
abismo do meu Ser.
Vivo de Mim em Mim e para Mim
e para Deus em Mim ressuscitado.
Sou Saudade do Longe d'onde vim
e sou Ânsia do Longe em que por fim
serei transfigurado.
Vivo de Deus, em Deus e para Deus,
e minh'Alma, sonâmbula esquecida,
nÊle fitando os tristes olhos seus,
passa 'triste e sozinha olhando os céus
no caminho da Vida.
Fui Outro e, Outro sendo, Outro serei,
Outro vivendo a mística beleza
por esta humana forma que encarnei,
por lágrimas de sangue que chorei
na terra de tristeza.
Espírito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo sem o ver,
em esta pobre terra de pecado
amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.
SÓ
O mar da minha vida não tem longos.
E tudo água sói E o horizonte
funde-se no céu. Por sobre a ponte
marcha sinistra a procissão dos monges.
Velas acesas, opas, ladainhas,
e o rio deslizando para o mar,
e as raparigas vêm à tardinha
buscar à fonte a água, sem cantar.
Ermida branca sobre o monte
Nossa Senhora da Paz...
Peregrino voltei sem ser ouvido.
Rasguei meus pés pelo caminho ido.
Ai, a calma de tudo quanto jaz
no frio esquecimento! Sobre a ponte
a procissão caminha. Sob o arco
singrou sereno um barco
a caminho do mar.
Ó perdida visão da minha Ânsia!
Vejo-me só na lúgubre distância,
cadáver dos meus sonhos a boiar.
Ergo meus olhos vagos, na distância
Da sombra do meu Ser...
Pairam de mim além, e a minha Ânsia
Cansa de me viver.
Meus olhos espectrais de comoção,
Olhos da alma, olhando-se a si,
Nimbam de luz a longa escuridão
Da vida que vivi.
Auréola de Dor, que finaliza
Na noite do abismo do meu nada;
Silêncio, prece, comunhão sagrada.
Sombra de luz que em Ti me diviniza,
Tortura do meu fim,
Alma ungida
E perdida
Na grandeza de Si. E já sem ver-me,
Maceração crepuscular de Mim,
Agonizo de Ser-me.
Passo triste no mundo
*
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Página publicada em agosto de 2015
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