ILDÁSIO TAVARES
(1940-2010)
Nasce na fazenda de São Carlos, na região de Grapiúna da Bahia. Estudou direito mas se licenciou em Letras pela Universidade Federal de Bahia. Publicou artigos de filosofia, contos e realizou numerosas traduções. Realizou estudos universitários em língua inglesa. Doutorou-se pela UFBA em Literatura Portuguesa.
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
TEXTOS ITALIANO & PORTUGUÊS
TUA DUNA
arqueio de mel
sobre o branco
coaduna
este ardor que me brota
no flanco
que provoca em meu corpo o arranco—
o vibrar do pincel
nesta tela de mel,
caracol de papel
(lá no fundo o anel)
mar e céu.
Tua duna.
Luz Oblíqua (1982-1988)
ESTAMOS
não somos,
estamos;
tumulto-cogumelo
à beira-sol,
rasgo de espanto,
meta,
desespero—
estamos
não cumprimos,
não amamos,
não criamos.
Ditado (1973)
TERCETOS
O desejo continua
no seio de outro desejo
um é o outro; o outro é um.
No seio de outro desejo
o desejo se conforma—
tigre é presa; presa é tigre.
Meu desejo permanece
no seio do teu desejo—
eu sou tu; e tu és eu.
Pelo gume do desejo
é que somos e não somos—
sonho de tudo em um nada.
FB BRASIL 88
Natal, nas ruas calor.
nos lares despedaçados,
uma frieza sem cor
congela doces passados.
Coração sai pelo mundo.
Como ser só é verdade!
Em mim mesmo me redundo:
de nada serve a saudade.
E como atrai e fascina
o presente que não sei,
visto detrás da vitrina
da loja em que não entrei.
Breviário (1988-1995)
A seguir, poema extraído de
L B Revista da Literatura Brasileira. N. 35. São Paulo, SP. 2004
SONETO PARA FÁBIO LUCAS
Poema de Ildásio Tavares
No cheiro, o gosto está: presente e ativo
do acarajé que uma baiana frita.
Em mesas na calçada, corre vivo
o converseiro que a cerveja incita.
Tudo é promíscuo. Tudo é permissivo.
A gente vai e vem. O ar se agita.
A moça ri, em tom convidativo.
A adolescente vende queijo e excita.
Os corpos seminus, pelas calçadas,
louras, mulatas, negras e morenas,
ondulam, ofertando seu andar.
Tudo rola. Entre as mesas apertadas,
todos se tocam, deixam-se roçar.
Noites de Itapuã, sensuais e plenas.
De
imago
Rio de Janeiro: Edições Porta de Livraria,1971
(Série Poesia 13)
O GATO
Feito em amizade para Emanoel Araújo.
(l)
é susto e salto.
Olhos
lâmina de luz,
o gato,
tecida maciez de assalto,
passo a passo,
vezes de sinuosidade, enlongamento.
O gato
é susto é calma é salto.
xxvii-viii-lxviií
O GATO
(II)
Lambe a madrugada
e o silêncio
pé de nuvem
no telhado,
O gato
logo é grito, grito
no cio
da madrugada.
xxvii-viii-lxviíi
O C Ã O
(l)
é faro e força
feita na certeza da ração;
postura
de espera
e ataque;
sobressalto em som de escuro;
amor e fera;
o cão
guarda em latido a noite,
a solidão.
xxviii-viii-lxviií
O TATU
(II)
(quando o cachorro é faro até o buraco)
elide o escape
no limite à proteção
Baque de enxada
a ser encontro,
o tatu
entoca medo
a ser em luz manietado.
xix-xii-lxviií
TAVARES, Ildásio. IX Sonetos da Inconfidência. São Paulo: Lemos Editorial; Editora Giordano, 1999. 63 p 12x18 cm. Apresentação de Fábio Lucas. “ Ildásio Tavares “ Ex. bibl. Antonio Miranda
I - Gonzaga
Meu coração é um louco inconfidente
pelas minas gerais dos seus amores.
Ele alvarenga. Ele claudica em dores.
Mas dorotéia sempre, impertinente.
Pois sempre há de chorar o bem ausente
em derrama brutal de dissabores,
personagem que busca seus autores
e não sabe porquê. É indiferente
que em Moçambique alguém me enrique. Leva-
se tempo em ruminar uma aspereza.
Mas quem jamais sonhou, jamais viveu —
Brasil é um pirilampo azul na treva.
Marília é um purgatório de beleza.
E ninguém sabe onde andará Dirceu.
III - O Alferes
Meu coração é um arsenal de horrores
e dores que atropelam meu país.
Gargalha puta! Zomba, meretriz!
O dia há de chegar dos teus senhores.
Errei aonde? Fui eu só que errores
cometi? Eu confesso tudo ao juiz
e hei de morrer sem medo. O povo diz
que é de medo que morrem os desertores.
Mais vale um bom soldado que uma tropa
de covardes; de traidores; fanfarrões.
A cada um lhe cabe sua Termópilas.
Não temo a morte, a vida me dá asco.
Só eu é que garanto os meus colhões?
Então só eu errei. Chamem o carrasco.
TAVARES, Ildásio. Odes brasileiras. Rio de Janeiro: Imago Editora; Fundação Biblioteca Nacional, 1998. 112 p. ISBN 85-312-0637-X “ Ildásio Tavares “ Ex. bibl. Antonio Miranda
Ode Loquaz
Eu faço odes com e sem propósito de vê-las
fluir astutamente e de
fruir suas arquiteturas oscilantes
onde antes havia o silêncio obsceno
que têm todos os papéis em branco.
Almejo outro silêncio —
o silêncio colorido das sinestesias;
o silêncio desbotado dos casarões abandonados;
o silêncio em ruínas dos monumentos gregos;
o silêncio das banquisas;
o silêncio arrogante dos teatros quando o público
para de aplaudir, sai
e os atores trocam carícias com o espelho
no mistério dos camarins;
para não falar do silêncio vibrátil
das pausas nas composições de Villa Lobos
e o silêncio melodicamente barroco
das igrejas da Bahia:
o silêncio dos mudos que tudo dizem
na sofreguidão das línguas imóveis,
estalagmites submersas
em uma gruta vazia de som.
Todos os silêncios — o silêncio da Morte —
adusto, álgido, absconso, grávido
de toda uma existência apetecida
onde flores, urzes, frutos, ramos, troncos, raízes,
restos arrancados, cicatrizes, jornais, pinacotecas, livros,
ternos e quadras, esterco e diamantes;
solenidades capares de abranger
diminutas irreverências; possibilidades
muito além da mera estatística
que a mente nem sequer
consegue abarcar com segurança
quanto mais deter-se, grave e séria,
na árdua tarefa de interpretar.
Há os que falam. E falam muito. Cumprimentam
equinos com a naturalidade de quem viu Spinoza
descobrir Deus de novo e não lhe deu o menor crédito
ou de quem comprou uma gravata-borboleta azul
e a usou, garboso, com seu último terno caqui
machucado e com polainas. É isso mesmo.
É só o que sabem. Falar, falar, falar. Descansam
e quando estão bem descansados
voltam a falar como se estivessem calados há milénios.
Quem aguenta? Quem suportaria tanta mensagem?
Quem resiste a tantos códigos? Quem? Diga-me quem?
Eu não, eu nunca tolerei tanta balbúrdia!
É como se fazer literatura
fosse incorporar e construir de novo
a Torre de Babel. Vejam Pound,
esse Cavaleiro da Awkard Figura,
pêlos campos da Europa, em riste a lança da Loucura
contra os sólidos moinhos da Usura
e apostando alto no Imperador Careca de Barataria.
Falou, falou, falou até na Rádio.
Falou pior do que cantou, quando,
baralhava as línguas para que ninguém o entendesse
e pensassem que ele era Poeta Maior
ou coisa que o valha. Como esse cara falou!
E o pior é que não disse nada —
o que tentou dizer, a Humanidade inteira discordou.
Era um humanista equivocado
diria alguém, consultando velhos alfarrábios
que registrem, entre outras coisas, a mais memorável
das memoráveis frases do Capitão Louis;
"Lê proletariat c'est mói", salvo engano.
Carisma. Eu sei que vocês vão dizer. Carisma. E daí?
Eu, pessoalmente, ando cheio de Carisma
e pobre de metafísica, determinado
a dormir cedo esta noite e não
ficar até a madrugada garimpando palavras
e esperando que apareça no meu cérebro
a luz gratificante de uma metáfora nova,
no velho engaste azul do pensamento —
uma virgem, dir-se-ia,
que o poeta possui com volúpia demiúrgica
como uma ratazana eletrônica,
roendo o queijo consistente do Parnaso.
Eu acho graça. Percuto as teclas com bonomia
e acho graça. Isso é tudo que aprendi com Debussy.
É o melhor recurso. Não passar do prelúdio. Já pensou
se eu me detiver a examinar o morticínio
causado pelo Carisma? E mais ainda,
se eu me atrever a tratar desse assunto
de maneira tal que o consiga transformar em literatura?
Em poesia com rima e tudo? Ou mesmo sem rima,
o que é a mesmíssima coisa? Ah, nem pensam, eu seria
imediatamente crucificado na mais pública das praças
após ser exposto à execração e ao opróbrio. Eu não.
Não vou ser eu quem vai abordar
esses temas vulgares e tão superficiais.
Eu, logo eu que falo tão pouco; eu que,
não tem nem cinco minutos,
acabei de explicar que o meu negócio é silêncio?
Eu não. Tenha santa paciência. Me dá
o silêncio intergalático, seria desejar muito?
Esse sim, quer dizer tudo. Provavelmente foi aí
que as coisas começaram, onde
ecoou na hiperbólica totalidade do mais absoluto
silêncio a voz do primeiro Poeta. Bang, ele disse, ou
haja versos. Nomes que ninguém nomeia. Caminhos
que ninguém caminha. Harmonia.
A Era é essa. A palavra acaba de chegar
de seu remoto ponto de origem. Os passageiros
agitam-se a bordo. A nave há pouco partiu
e já pensam, denodados, em chegar.
Soltem as velas, estão gritando, soltem as velas;
o vento é pouco e não infla a bujarrona.
O traquete, icem o traquete
que nosso vento é pouco, o rumo longo
e ainda são três horas da manhã. Vejam,
Júpiter em Escorpião. Cassiopeia
deita no céu, insone e antiga, vamos,
olhem o rochedo, soltem os cavalos,
a mezena; nosso traço vai ficar
como cobra no pélago profundo. Reto
é o rumo mas quem sabe ao certo
o que sopram nos ouvidos a essa hora?
Soltem as velas marinheiros, soltem, soltem as velas!
Soltem as velas e os cavalos sobre as valas;
assim nós venceremos os rochedos
e havemos de chegar ao destino previsto. Está previsto.
À meia-noite. Está escrito.
O desenho será tão deslumbrante! Mas é tarde, silêncio,
nada falem. Em silêncio
naveguemos neste mar outrora branco —
só é puro quando as manchas se desdobram
e revelam uma brancura,
alva mais do que a brancura. Mais brancura
do que o branco de Sirius — a brancura
infinita do silêncio
das palavras.
[ Letra de música ]
SALVE AS FOLHAS
(Compositor: Ildásio Tavares
– Gerônimo Tavares)
Sem folha não tem sonho
Sem folha não tem vida
Sem folha não tem nada
Quem é você e o que faz por aqui
Eu guardo a luz das estrelas
A alma de cada folha
Sou Aroni
Cosi euê
Cosi orixá
Euê ô
Euê ô orixá
Sem folha não tem sonho
Sem folha não tem festa
Sem folha não tem vida
Sem folha não tem nada
Eu guardo a luz das estrelas
A alma de cada folha
Sou aroni
Para ouvir a música interpretada por Maria Bethânia:
https://www.vagalume.com.br/maria-bethania/salve-as-folhas.html
TEXTOS ITALIANO & PORTUGUÊS
Madrigale napolitano
Negli occhi rimane annullando la distanza
e nel tatto il ricordo fugace del contatto:
un profumo che passa; una canzone che vola:
un sapore quasi una briciola nell'angolo della bocca -
meglio che non fossi rimasta,
con la tua crudeltà nuda:
ecco che vinci il tempo -
il corpo, sì, il desiderio non invecchia.
traduzione di Maria Teresa Mendes
Madrigal Napolitano
Nos olhos permanece anulando a distância
e no tato a lembrança fugaz do contato:
um perfume que passa; uma canção que voa:
um gosto quase resto no canto da boca -
antes não tivesses ficado,
com a tua crueldade nua:
eis que vences o tempo -
o corpo, sim, o desejo não envelhece.
21.IV.2008
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Extraídos de la
ANTOLOGÍA DE LA POESÍA BRASILEÑA
Org. y traducción de Xosé Lois García
Santiago de Compostela: Ediciones Laiovento, 2001
(con la autorización del traductor)
TU DUNA
arqueo de miel
sobre lo blanco
coaduna
este ardor que me brota
em el flanco
que provoca en mi cuerpo el arranque
el vibrar del pincel
em esta tela de miel,
caracol de papel
(allá en el fondo el anillo)
mar y cielo.
Tu duna.
Luz Oblíqua (1982-1988)
ESTAMOS
no somos,
estamos;
tumulto-hongo
a la orilla del sol,
rasgo de espanto,
meta,
desespero—
estamos
no cumplimos,
no amamos,
no criamos.
Ditado (1973)
TERCETOS
El deseo continua
en el seno de otro deseo
uno es el otro, el otro es uno.
En el seno de otro deseo
el deseo se conforma
tigre es presa; presa es tigre.
Mi deseo permanece
en el seno de tu deseo
yo soy tu; tu eres yo.
Por el filo del deseo
es por lo que somos y no somos
sueño de todo en un nada.
FP BRASIL 88
Navidad, en las calles calor.
En los hogares destrozados,
una frialdad sin color
congela dulces pasados.
Corazón sal al mundo.
!cómo ser solo es verdad!
En mí midmo me redundo:
de nada sirve la nostalgia.
Y como atrae y fascina
el presente que no sé,
visto detrás de la vitrina
de la tienda en que no entré.
Breviário (1988-1995)
Página publicada em dezembro de 2007; ampliada em fevereiro de 2009; ampliada e republicada em maio de 2015.
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