ELISABETH VEIGA
TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTOS EN ESPAÑOL
Elisabeth Veiga nasceu no Rio de Janeiro, em 1941. Estreou em livro em 1972, com o volume Gosto de fábula, chamando a atenção de alguns poucos críticos. O largo intervalo entre esta coletânea de estréia e seu livro seguinte talvez ajude a explicar a obscuridade da poeta na historiografia literária do período, pois apenas vinte anos mais tarde Elisabeth Veiga retornaria com A paixão em claro (1992), esperando outros dez para publicar Sonata para pandemônio (2002), livro que contém poemas muito bonitos e dos quais extraímos alguns dos textos aqui apresentados.
A poeta receberia alguma atenção ao ser incluída na antologia Pontes/Puentes, que reúne 20 poetas brasileiros e 20 poetas argentinos do pós-guerra, publicada em 2003, trazendo autores que já apresentamos na Modo de Usar & Co., como os argentinos Susana Thénon, Juana Bignozzi e Leónidas Lamborghini, ou os brasileiros Hilda Hilst e Roberto Piva. Estes dois exemplos de poetas brasileiros (assim como Thénon e Bignozzi) aparecem aqui de forma pontual, pois Veiga assemelha-se a eles em seu trabalho lírico e em sua pesquisa metafórica, traçando um itinerário de imagens concretas baseadas no corpóreo, o que nos lembra o trabalho de Hilst e Bignozzi em seus melhores momentos, como no poema "Perda", de Sonata para pandemônio:
Perda
Elisabeth Veiga
Da primeira vez que me quebraram
toda
dobrei os joelhos,
caí sem joelhos,
me dobrei toda sobre
o vazio dos braços.
Os ossos tiritavam,
a cabeça estalava
um sino:
toda um estaleiro
sem navios,
só pavios de viagem,
toda uma estalagem
bêbada de sombras
e sinas,
não sabia mais
quantas primaveras
fazem um cisne,
não sabia
beber a não ser
com as mãos em cuia,
eu era um pires
com a cara redonda
que os gatos lamberam
e fugiram,
um piano com febre
em desarticulação nervosa,
uma pátina derretida,
uma patavina
atarantada
com os caracóis da poeira
sumida no horizonte.
/Extraído de http://revistamododeusar.blogspot.com.br
De
A estalagem do som.
Editora Bem-te-vi.
SONATA ACHINCALHADA
1 (coisas de superegos)
Canonizaram o esqueleto da burra.
Entronizaram-lhe os quartos traseiros
num andor.
Suas mandíbulas
atarracadas
silvam bênçãos.
Condenaram-na ao inferno.
2 (esquisitices de ego)
Na algibeira da muleta
carrego
a panela de pressão social
fervendo,
e uma xícara de chacota
sem açúcar.
E resfolego, mula,
sem pretender o Olimpo
das belas letras,
vou trôpega,
vou pelo avesso
empacada.
Quem quiser que funcione:
eu sou um parafuso a menos
da máquina do mundo.
CARTILHA DE MAR
O livro de marear
abre amarguras
singra madrugadas:
náufragos ressoam
e escuto as pisadas aspérrimas
do medo.
Vem do horizonte
e me carrega
um poema de caniços
troncho,
meio jangada,
meio meu jeito esquerdo
neste mundo tão destro.
E, em atonia retorcida,
retorno
ao que fui, aos tropeços
com os nervos do silêncio
arrepiando
o mar.
(O coração do mundo
apertado no peito)
O muito e o depois
soam
em brevidade última.
POEMA A CONTA-GOTAS
1.
No meu apartamento
a solidão é tanta
que se ouve
o conta-gotas
do tempo.
2.
Sou uma minúcia do passado,
a música minúscula
da dor
desengavetada.
3.
A clarabóia da solidão
lusca-fusca alta:
a minha luminária
é a alma da lua
porque já sou toda
imaginária.
Minutos voejando
em torno da lâmpada
são meus cacoetes
de viagem:
ver
seja lá o que for
esse vou não vou
viver.
O BALDE
Recolhi num balde
um pouco de esperança:
era o menor oceano do mundo.
Vi as plantas raquitizando,
o chão queimava,
então brotaram meus soluços
sem sossego,
debulhando um canto.
Tanta secura a desfiar acrílica
estrídula,
me boiava uma lagoa no olhar
tudo era tanto, que sem saber onde,
nem poder guardar,
fiz de conta
que havia um verde longe,
um dedal de esperança
e não debalde.
Então me derramei
de amar.
De A estalagem do som. Editora Bem-te-vi.
CAROCHINHA
Eu passei. Você passou.
O arco do fracasso e a Velha,
brinquedo de amarelinhas,
e essa corda leve
envolvendo o salto,
e o enforcado
na matina alegre.
Ciranda círandinha,
sobre o chão -pedaços
formam um mosaico,
a roda fantasma
esmaga nosso abraço
e passa, suave
recortando figurinhas
No vento (amargo)
um gosto de fábula
(De Gosto de fábula, 1972)
ESTRATÉGIA
mesa posta
eis o medo
contorcidas extremidades.
A cristalaria toda retinindo
nervos.
Sibilino, o riso mau macaqueia
o doce olhar das colcheias
e das bonecas de louça.
Súbito!
agride em cheio
a gentileza gelatina.
EXPLICADO
1
A única explicação de mim mesma
são os nervos de seda.
2
Insônias de areia, voltagens decaídas,
a sensação de que passa áspera a vida,
sem explosão de arestas,
com a rarefação alucinada de urna tela de seda.
(De A paixão em claro, 1992)
VERDADE
Sou prolixa
como quem precisa de ar e
não basta o que é preciso.
Como quem quer sair do poema,
um mal necessário
onde todas as indagações pontiagudas
são desparafusadas, embora com
o brilho alambicado e a compostura bêbada
de quem usa quinquilharia,
e sabe.
Sou prolixa
como quem tira o pé do sapato
sem querer cogitar de mais nada
que lembre o seu formato.
Sou prolixa, desesperadamente vendo:
o milagre da palavra contida,
essa Mona Lisa de outras obras,
a que me limito a aspirar de longe,
como quem se curva
ao enquadramento da perfeição.
(De A paixão em claro, 1992)
VEIGA, Elisabeth. Sonata para pandemônio. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. 120 p. 13,5x20,5 cm.. ISBN 85-86579-43-2 Capa Victor Burton. Projeto Gráfico: FA Editoração Eletrônica. Editado com o apoio da Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Fundo Nacional de Cultura. Col. A.M. (EA)
“Agora surge com Sonata para Pandemônio, uma espécie de síntese dos [livros] anteriores e, surpreendentemente, o mais dissonante de seus livros. Uma obra inventiva, quase-barroca, dotada de carpintaria formal exigente e, sobretudo, uma obra que explora, com radicalidade, o humor ácido e a voz própria, original e intransferível da poeta.” HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA
BREVE SEMPRE
“Mas que seja infinito enquanto dure.”
Vinicius de Moraes
1
O teu olhar é o voo de uma águia
clara
que me navega abrindo espaço para o mar:
teu horizonte ilumina o meu corpo.
2
O amor acende em capelas o oceano
alteia o sim e a sintonia impele
a alma a ser música.
3
Breve sempre:
Só em teus braços a eternidade é última.
O AMOR
O amor subverte
todos os espaços,
ocupa o relógio inteiro:
explode
as horas que não são suas.
O amor dissolve o diário,
calendário, lenda,
brinca do que não existe.
O amor rasga o fogo
com os dentes:
a surpresa ilumina.
BAQUIANA EM RITMO DE DANÇA
(auto-paródia)
Ao sol, à lua e todas as estrelas,
à barca, senhores, à barca,
porque o amor é grande e a carne fraca
na sementeira doida de pimentas e astros.
A lua é grande, caem com a calma os doidos
exaustos sobre a cama. E entre lençóis
se somam e desamordaçam. Caem os tálamos
das árvores. Rompe-se a chuva de lilases,
rompe-se a terra inteira e transborda:
há no exagero uma volúpia da sinceridade.
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TEXTOS EN ESPAÑOL
Tradução de Adolfo Montejo Navas*
ELIZABETH VEIGA
Esta poetisa, como le gusta ser llamada, espacía sus entregas a lo largo del tiempo, sin perder un raro, además de inclasificable, vigor poético, a pesar de ser ubicada en la corriente neodiscursiva, y por tanto moderada, de los años 1960-1970. Cotidianidad, extrañeza, análisis de las sensaciones («especie de eosensacionismo» según Sebastiáo Uchoa Leite) forman parte de su poesía de lenguaje ultimodulado, donde hay elementos de riqueza barroca y conceptual, y formas plurales. Su próximo libro, Sonata para pandemónium, aparecerá tras una década de silencio.
OBRA POÉTICA: Gosto de fábula, 1972; A paixão em claro, 1992.
BRUJILLA
Yo pasé. Tú pasaste.
El arco del fracaso y La Vieja,
juguete de rayuelas,
y esa cuerda leve
envolviendo el tacón,
y el ahorcado
en la mañana alegre.
Ciranda cirandinha*,
sobre el suelo -pedazos,
forman un mosaico-,
la rueda fantasma
aplasta nuestro abrazo
y pasa, suave
recortando figuritas
En el viento (amargo)
un gusto de fábula
(De Gosto de fábula, 1972)
* Ciranda cirandinha: cantiga de roda, de corro, normalmente de interior.
ESTRATEGIA
En la mesa puesta
he ahí el miedo
contorsionadas extremidades.
Toda la cristalería reteniendo
nervios.
Sibilina, la risa mala imita
la dulce mirada de las corcheas
y de las muñecas de loza.
¡De repente!
golpea de lleno
la gentileza gelatina.
(De Gosto de fábula, 1972)
EXPLICACIÓN
1
La única explicación de mí misma
son los nervios de seda.
2
Insomnios de arena, voltajes decaídos,
la sensación de que pasa áspera la vida,
sin explosión de aristas,
con la rarefación alucinada de una tela de seda.
(De A paixão em claro, 1992)
VERDAD
Soy prolija
como quien necesita de aire y
no basta lo que es necesario.
Como quien quiere salir del poema,
de un mal necesario
donde todas las indagaciones puntiagudas
son desatornilladas, aunque con
el brillo alambicado y la compostura borracha
de quien usa quincallería,
y sabe.
Soy prolija
como quien saca el pie del zapato
sin querer pensar en nada más
que recuerde su formato.
Soy prolija, viendo desesperadamente:
el milagro de la palabra contenida,
esa Mona Lisa de otras obras,
a la que me limito a aspirar de lejos,
como quien se curva
al encuadramiento de la perfección.
(De A paixão em claro, 1992)
Portada de la edición de
*De Correspondencia celeste. Nueva poesía brasileña (1960-2000). Introducción, traducción y notas de Adolfo Montejo Navas. Madrid: Árdora Ediciones, 2001 – Obra publicada com o apoio do Ministério da Culta do Brasil.
*Nota: o tradutor Adolfo Montejo Navas é amigo comum nosso com Wagner Barja, e o convidamos a participar da exposição OBRANOME 2 no Museu Nacional de Brasília, durante a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília 2009. Montejo Navas prometeu-nos suas traduções ao castelhano e só na Espanha, em viagem, é que conseguimos os originais que estamos divulgando parcialmente no nosso Portal de Poesia Ibeoramericana, com os agradecimentos.
Página publicada em junho de 2009; ampliada em março 2012. Ampliada em março de 2018 |