UM POETA PAULISTANO
[ António José Vaz ]
por Domingos Carvalho da Silva
No período que separa a Inconfidência Mineira do advento do romantismo foram muitos os brasileiros que prestaram culto à poesia; raros porém resistiram ao silêncio com que o tempo vai apagando a voz humana. Entre os que hoje estão quase inteiramente esquecidos pode ser mencionado o paulista António José Vaz, secretário da Academia do Senado da Câmara reunida em 1791 para celebrar as realizações do governador Bernardo José de Lorena.
Delinear a biografia de Vaz é coisa que depende ainda de pesquisa demorada e de informações que, ocasionalmente, possam ser encontradas em livros e documentos. Há em Sacramento Blake — além da bibliografia do poeta — dois
dados valiosos sobre a sua pessoa: a naturalidade (S. Paulo) e o nome do português Francisco Manuel Vaz, seu pai. Quanto à data do nascimento, os poucos autores que se ocuparam de António José Vaz limitam-se a situá-la em meados do século XVIII.
Sobre a naturalidade de Vaz nenhuma dúvida mais existe, após a divulgação do códice da Academia de 91; numa das suas canções o poeta dirige-se a S. Paulo nestas palavras: "E tu ó Paulicéia, oh Pátria amada". O problema da data do nascimento não é porém de solução fácil. A leitura de seus versos de 1791 revela conhecimentos que o autor dificilmente teria adquirido sem ter passado por um curso superior. Seu nome não consta, todavia, da relação dos estudantes brasileiros matriculados em Coimbra a partir de 1772. E também não figura entre os paulistas que participaram da Academia de 1770, reunida pelo governador Morgado de Mateus.
A vida de António José Vaz prolongou-se até 12 de julho de 1823. É provável portanto que em 1770 fosse ainda muito jovem para ser académico. É possível também que estivesse ausente de S. Paulo, estudando o seu latim e as suas letras clássicas. Mas a verdade é que o seu nome jamais vem precedido da designação de doutor, de licenciado ou equivalente: sabe-se que chegou a coronel de milícias; em 1793 era capitão.
Razoável será portanto admitir que António José Vaz tenha nascido nas vizinhanças de 1760, estudando com algum (ou alguns) dos mestres famosos que houve em S. Paulo nos últimos decénios do século XVIII. Em 1791 devia pertencer ao Senado da Câmara, ou ser funcionário graduado do mesmo, pois só tal situação justificaria sua condição de secretário da Academia organizada para celebrar as obras realizadas por Lorena e o aniversário da Rainha.
Curioso é notar que entre as obras celebradas em tal Academia está o chafariz construído no atual Largo da Misericórdia, pois, só dois anos mais tarde, foi tal chafariz entregue ao uso público (veja-se o livro S. Paulo Antigo, de António Egydio Martins — Liv. Franco. Alves, 1911). As obras do chafariz foram custeadas pelo povo, tendo sido o capitão António José Vaz, por ordem de Lorena, o depositário do dinheiro arrecadado na subscrição. O chafariz foi portanto festejado — aparentemente — dois anos antes de sua real inauguração. Os vícios atuais têm velhas raízes... (s).
António José Vaz foi talvez a mais alta voz poética da Academia de 91, a despeito da presença de Frei Francisco de S. Carlos. Sua musa inspiradora era o "ousado amor da Pátria"; na sua Ode Enunciativa ele o invoca e pede auxílio à sua "trémula mão desconhecida":
Ousado Amor da Pátria, que inspiras
A meu peito um ardor que me transporta,
Tu me seguras nas robustas asas;
Não vás precipitar-me.
..........................................................
Minha trémula mão desconhecida
Não era para empresa tão sublime,
Como o carro de Apoio já não fora
Para as mãos de Faetonte.
Sim: Faetonte foi um cocheiro inábil do carro do Sol, e quase incendiou a Terra. Mas o poeta paulistano António Vaz mostrou-se dextro na arquitetura do verso clássico e seguro no equilíbrio da expressão árcade. A propósito deve ser mencionado que, na referida Ode Enunciativa, Vaz chama aos seus companheiros árcades, e não académicos.
Em 1793 — como já vimos — estava o poeta às voltas com o chafariz da Misericórdia. Em princípios de 1796 a falta de sal provoca visíveis desentendimentos entre o Senado e o governador Lorena. Mas, de um ofício expedido pelos oficiais da Câmara ao governador, em 2 de fevereiro daquele ano ("Does. Interessantes", vol. III), não consta o nome de Vaz entre os signatários.
O poeta volta à cena em 1810 com a publicação (Impressão Régia — Rio de Janeiro) de dois opúsculos. O primeiro deles ostenta o seguinte título: A Sua Alteza Real o Príncipe Regente A'o&so Senhor em o Faustíssimo Pia 7 de Março de 1810, Aniversário da Sua Plausível, e feliz entrada neste porto da Rio de Janeiro as Oferendas Pastoris — Idílio — por António José V az. O folheto, que foi
impresso "Por ordem de S.A.R." (Sua Alteza Real), contém o citado idílio, de onze estrofes de oitava rima; quatro décimas, um soneto, uma ode constante de dezesseis estrofes de seis versos e mais um soneto final, que é o seguinte:
Assim deixou de Tróia os pátrios lares
Cedendo às iras do fatal destino
O pio Herói, que errante, e peregrino
Estranhas terras vira, estranhos mares.
Assim entregue a sustos, e a pesares:
Com que os Fados o abismam de contino,
Um peito lhe opusera diamantino
Confiado nos Deuses Tutelares.
Até que em prémio dos Pendões, que arvora,
Fundou no Lado um Reino Soberano,
Que Leis mandara às regiões da Aurora,
Assim, Senhor, melhor que o bom Troiano,
Aportando ao Brasil, fundais agora
Outro Império maior, do que o Romano.
A julgar pelo título do seu idílio, António José Vaz deveria encontrar-se no Rio em 1810. E tanto isso é provável que, logo depois, obtinha a publicação do seu segundo opúsculo pela Impressão Régia; trata-se do cântico A Deus Onipotente, ótirno, máximo em açao de Graças pelos Faustíssimos anos de Sua Alteza Real, o príncipe Regente, Nosso Senhor, etc.. O príncipe D. João fazia anos no dia 13 de maio. Esse cântico consta de trinta e oito estrofes de seis versos. Varnhagen (Florilégio) transcreve-o, omitindo porém cinco estrofes.
Em 1812 gemem mais uma vez os prelos da Impressão Régia para dar ao mundo um Epicédío à sentida morte do Senhor Infante Dom Pedro Carlos de Bourbon e Bragança, da autoria do mesmo poeta. E, finalmente em 1816, publica ele ainda pela mesma tipografia oficial — um novo folheto poético, com este título: Por ocasião da Muito sentida morte de Sua Majestade a Rainha Fidelíssima, Nossa Senhora Dona Maria I, as Lágrimas da Cidade de S. Paulo personalizada em Paulicéia, oferecidas a El-Rei Nosso Senhor por António José Vaz.
Esse derradeiro opúsculo contém um epicédio que se estende por seis páginas. Vêm depois nove sonetos. O 8.° termina por estes dois versos:
Choremos, sim, choremos, Paulistanos,
A ver se à forca de chorar morremos
António José Vaz morreu sete anos depois. É bem provável que, ao escrever o seu último folheto de poesia, estivesse novamente em S. Paulo, pois só assim poderia oferecer ao novo rei, D. João VI, "as lágrimas da Cidade"... "personalizada em Paulicéia".
Esta "personalização" merece aliás uma anotação que não chega — por ora — a constituir uma teoria: em 1797 uma "Anónima e Ilustre Senhora da Cidade de São Paulo" escreveu o drama Tristes Efeitos do Amor, no qual uma personagem — a Paulicéia — se lastimava do fato de Bernardo José de Lorena ter deixado o governo da Capitania, transferido para as Minas. O sr. António Soares Amora já observou que esse drama é uma "acomodação do fato atual à fábula clássica" de Dido e Enéias, na versão relatada por Virgílio. Ora, para António José Vaz, Lorena é uma espécie de reencarnação de Enéias ("Que um pio Enéias meu herói se infira", diz ele numa das canções recitadas na Academia de 1791). Na verdade a Senhora Anónima que escreveu Tristes Efeitos do Amor provou conhecer muita literatura e muito latim, o que é surpreendente, principalmente por não ter ficada nada — nas tradições paulistas — sobre caso tão excepcional (4) .
António José Vaz mereceu sempre de Lorena as provas de maior confiança e estima. Em 1791 coube-lhe secretariar e organizar a Academia; em 1793 coube-lhe a função de depositário do dinheiro destinado às obras do chafariz da Misericórdia; e quando, ao deixar S. Paulo, Lorena foi autorizado pela Rainha a oferecer a meia dúzia de paulistas o hábito de cavaleiro de uma das três Ordens militares do Reino, António José Vaz foi um dos distinguidos.
Diante dos costumes da época somente uma senhora realmente muito ligada ao governador poderia ter escrito o drama que, afinal, Bernardo de Lorena levou entre seus papéis. E dificilmente alguma senhora de S. Paulo o escreveria, se não fosse pelo menos orientada por um poeta erudito como eram, na época, José Arouche de Toledo, Salvador Nardi e António José Vaz.
(4) O' drama em versos — Tristes Efeitos do Amor — pode ser lido no livro Classicismo e Romantismo no Brasil, do professor António Soares Amora (Comissão Estadual de Literatura — S. Paulo, 1966 - págs. 91 usq. 101).
(3) O artigo Um Poeta Paulistano foi publicado em 24-12-1960. Republicado em:
SILVA, Domingos Carvalho da. Gonzaga e outros poetas. Rio de Janeiro: Orfeu, 1970. 208 p. 13x18,5 cm. Inclui textos sobre Tomás Antonio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Salvador Nardi, Frei Francisco de S. Carlos, Bárbara Heliodora e Tomás Ruby.
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