TRAÇOS DA POESIA DE LÊDO IVO
Anderson Braga Horta
Aos 19 anos de idade, Ledo Ivo desce das Alagoas, da natal Maceió, e do Recife, onde se formou intelectualmente, para o Rio de Janeiro, terra de sua adoção definitiva. Na bagagem, um livro de poemas –As Imaginações– escritos a partir dos 16. Publicá-lo-ia no ano seguinte, ainda estudante da Faculdade Nacional de Direito, da Universidade do Brasil. Iniciava-se a trajetória de um escritor que se dedicaria, sempre com brilho, a praticamente todos os gêneros. Além de poeta, foi contista, novelista, romancista, cronista, memorialista, ensaísta e tradutor, tendo feito, ainda, poemas dramáticos e literatura infantil.
Apesar do curso específico, não seguiu a carreira jurídica; jornalista era, jornalista continuou sendo. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras e, em Brasília, à Academia de Letras do Brasil, fundada por Almeida Fischer e José Geraldo Pires de Mello. Nascido em 18 de fevereiro de 1924, faleceu em Sevilha, Espanha, em 23 de dezembro de 2012, às vésperas, pois, de completar 89 anos. Ganhador de inúmeros prêmios, no Brasil e no exterior, foi traduzido para o dinamarquês, o espanhol, o francês, o grego, o holandês, o inglês, o italiano.
Como nos propomos, hoje, tão-só alguns enfoques de sua poesia –que é, de resto, bem volumosa, desenvolvendo-se em mais de um milhar de páginas corridas–, evitaremos deter-nos em aspectos biográficos ou mesmo na relação de suas obras outras, também numerosas; mas cabe ao menos referência a algumas de suas prosas mais festejadas, como o romance Ninho de Cobras, ganhador do V Prêmio Walmap, as histórias amostradas em 10 Contos Escolhidos, publicação da Horizonte, de Brasília, em série organizada por Almeida Fischer para a editora de Geraldo Vasconcelos, os ensaios reunidos em Poesia Observada, as memórias autobiográficas de Confissões de um Poeta e O Aluno Relapso.
Mesmo restringindo-nos a esse território, não lograríamos examinar-lhe todos os acidentes. A poesia de Ledo Ivo apresenta, quanto ao tom e à temática, vastíssimo espectro, cuja análise não tenho a ilusão de esgotar. Nela encontramos o humor, algumas vezes pesado, e a irreverência (como em “O Gato do Vigário”, de Curral de Peixe), a ironia, a sátira, o epigrama (como em O Soldado Raso); o erotismo (difuso do começo ao fim); a poesia social (como em “A Cartilha”, primeira parte de Estação Central); bichos de toda ordem, do verme à raposa, do goiamum ao gavião, como parte de sua natureza ou como elementos simbólicos; o mar, tela constante (o físico –o oceano, os maçaiós ou maceiós de suas Alagoas– e o alegórico ou simbólico, representando a totalidade, Deus, a eternidade); crença e descrença, predominantemente esta; a vida e a morte, em suma.
O Poeta é cônscio de sua multiplicidade. Sabe de seus caminhos. Uma síntese dos seus temas e estratagemas ele mesmo a dá, em “O Poeta e os Críticos” (Curral de Peixe), glosando os comentadores de sua poesia. Transcrevo-a, a título de panorama preliminar, em que por certo se inserirão os tópicos que pretendo abordar:
Poeta da noite e do sonho
que ousa interrogar Deus
sem nem mesmo conhecê-lo
direito por linhas tortas,
assim foi estampilhado
por um crítico sagaz.
Mas um outro proclamou:
És poeta da claridade
e o sol que trazes perturba
os meus olhos fatigados.
Um terceiro o definiu
como o poeta do amor
e do corpo feminino
que freme na escuridão
como rosa atravessada.
Um resenhista apressado
o limitou aos navios
que ele viu quando menino
no azulverde mar azul
da península natal.
À luz do estruturalismo
um professor garantiu:
Sei ler a tua linguagem.
Teus peixes e caranguejos
são metáforas falazes.
Não me engana o teu império
de maceiós e alagoas
nem a luz do teu farol.
Não me ilude o goiamum
que sorrateiro atravessa
a água negra dos teus mangues.
Digo, mesmo que te zangues,
que a morte é tua matéria.
Um poema de tua lavra
é chave de cemitério.
E aquele crítico atento
às suas portas fechadas
e às suas folhas caídas
chamou-lhe poeta do tempo
e das ilusões perdidas
e invocava como prova
a fria cinza nascida
de uma fogueira no bosque.
Um crítico o festejava
pelos seus versos lacônicos
enquanto outro o censurava
pelo seu ritmo oceânico.
Pela noite rodeado
ou sob o sol caminhando
o ledo poeta aturdido
por tantas doutas versões
perguntava aos seus botões
ou indagava às estrelas
que brilham mesmo ao céu claro
só para quem sabe vê-las:
O que digo quando digo?
Por quem falo quando falo?
Já que os críticos divergem
no tamanho do meu metro
sou parco ou sou excessivo
quando entoo minha canção?
Onde começo e termino?
Quem sou? Quem fui? Quem serei?
Porque sou um e sou vários,
ora vivo dividido,
ora morto esquartejado?
Eu sou eu ou sou o outro,
esse guerreiro ardiloso
que, oculto em mim, me combate
na batalha desigual?
Tantas perguntas, e o dia
como uma nuvem passava!
Só o vento lhe respondia
no silêncio do céu mudo:
– És como eu sou. Nada sei.
Sopro noite e dia. E é tudo.
Com As Imaginações, abriu-se ao poeta pouco mais que adolescente uma porta de ouro. “Estréia deslumbrante” – assim o saudou Mário de Andrade; e no coro dos encômios vinham nomes da altitude de Adonias Filho, Afonso Arinos, Lúcio Cardoso, Murilo Mendes, Otávio de Faria, Roger Bastide, Sérgio Milliet, a que se seguiram Álvaro Lins, Antônio Cândido e, à medida que os livros se sucediam, tantos e tantos outros de comparável porte.
Depois de As Imaginações vieram a lume Ode e Elegia, Acontecimento do Soneto, Ode ao Crepúsculo, A Jaula, Ode à Noite, Cântico, Ode Equatorial, Linguagem, Um Brasileiro em Paris, O Rei da Europa. Então surge Magias. Faço esta pausa porque divido a obra poética de Ledo Ivo em antes e depois de Magias. Em pouco veremos por quê. Mas a obra continua: Os Amantes Sonoros, Estação Central, Finisterra, O Soldado Raso, A Noite Misteriosa, Calabar, Mar Oceano, Crepúsculo Civil, Curral de Peixe, O Rumor da Noite, Plenilúnio, reunidos pela Topbooks numa impensável brochura de 1 099 páginas – Poesia Completa (1940-2004). Enfim, como fecho provisório, Réquiem (Contra Capa, Rio de Janeiro, 2008). Provisório porque já surgem novidades, a exemplo de Mormaço, lançado por essa editora em começos de 2013, mas primeiro conhecido na versão espanhola, Calima, de 2011. Destaco, neste passo, a homenagem de Antonio Miranda, que publicou em 2012, em Brasília, com o selo Editora Poexílio, por ele criado, o livro Poesia Breve, em edição impressa de trinta exemplares e na forma de e-book, reunindo trinta poemas de Ledo Ivo e nove ilustrações de Zenilton de Jesus Gayoso Miranda, mais estudo crítico de Antonio Carlos Secchin.
Os livros da primeira parte estadeiam uma poética do excesso e banham-se em águas de um certo surrealismo. (Bem o disse Ivan Junqueira no excelente antelóquio a Poesia Completa.) Não, decerto, de um surrealismo ortodoxo (se é lícito o sintagma, que cheira a oximoro...). O Autor não pratica a escrita automática pura e simples, mas parece fora de dúvida que o espontaneísmo agita nesse barco os seus estandartes, embora o consciente não deixe de aí exercer, ao fim e ao cabo, a sua vigilância, diria mesmo o seu comando.
Com “excesso”, no caso, quer-se aludir à desenfreada volúpia verbal, à riqueza polissemântica de seu discurso, e não apenas à extensão, ao volume dos versos. Ronaldo Costa Fernandes, em rico ensaio publicado na Revista Brasileira (n.º 56, 2008), salienta, referindo-se à acusação de prolixidade, que “o problema não é a extensão do verso, mas sua vacuidade ou não”, para afirmar que neste “poeta caudaloso”, “fluvial, com muitos igarapés” e “afluentes”, isso “que poderia ser defeito é virtude”.
Nesta rubrica, tirando-nos um pouco do sério, chama a atenção outro tipo de excesso, o dos “excessos de linguagem”. O Poeta não tem papas na língua, e não hesita em usar palavrinhas como puteiro, puta, viado (que ele grafa assim mesmo, com i), fanchono, etc...
Excesso e automatismo são mais compatíveis com o verso livre do que com o medido. A isometria, contudo, não significa abolição do excesso nem do automatismo. O senso métrico torna-se no poeta uma segunda natureza; ao metrificar, não faz ele uma operação mental laboriosa, nem sequer, às vezes, consciente; mas deixa fluir naturalmente canalizada a sua fonte. O mesmo digo da rima. Ledo, em seus inícios, dá nítida preferência à liberdade versífica, mas o metro não está ausente. Assim é que, ainda em Acontecimento do Soneto, o excessivo e o surreal continuam presentes. Tanto que vou preferir dar como exemplo dessa dupla face o “Soneto à Nadadora”:
A meus olhos terrestres, teu sorriso,
conquanto existes, fruta de esplendor,
não se assemelha às ondas, mas à flor
pelo acaso deposta onde é preciso.
Entendes o equinócio, no indiviso
sulco de luz dormida. E é meu temor
que te desgaste o sol, com seu fulgor
persuasivo e sonoro como um riso.
O verde condenável das piscinas
no cântico braçal desenha os prantos
que a noite oferta à fímbria de teus cílios.
Conformada às marés, como as ondinas,
dás a manhã aos céus, e os acalantos
de teus pés frios soam como idílios.
Podemos sentir-nos tentados a explicar ocorrências como a do adjetivo “condenável”, no primeiro terceto. Certamente faríamos vistosos malabarismos, talvez conseguíssemos algum grau de persuasão. Mas a verdade é que ele aí está porque aí caiu, porque assim saiu, e o que resta ao leitor é aceitar e, na conformidade da própria medida, fruir o obscuro poder de sugestão do sintagma.
Diga-se, de passagem, que o Poeta não é inflexível quanto à regularidade métrica. Com freqüência inicia o poema em verso de medida determinada e de repente quebra-o. Não que tivesse alguma dificuldade em manter o metro, ele tudo sabia dos elementos de sua arte. Parece que era de seu temperamento contrariar os padrões, desrespeitar as medidas, sair dos trilhos. Semelhante prática, além do gosto do excesso e do apelo ao surreal, o afasta léguas do parnasianismo que se lhe queira imputar, como a outros arrolados entre os da Geração de 45.
A característica primeiro referida, o excesso, o Poeta mesmo a reconhecia, como no fragmento final de “O Desembarque”, poema em prosa de Mar Oceano:
Meu reino é o excesso, esse rival incomparável do rigor e da medida.
Ou como nos versos iniciais de “Promontório” (Curral de Peixe):
Sempre busquei a profusão das chuvas
e celebrei o excesso.
É esse um traço mais perceptível nos poemas da primeira fase; a partir de Linguagem, mais acentuadamente a partir de Um Brasileiro em Paris, que lhe é como um prolongamento, começa ele a infletir para um controle maior do jorro poético; em Magias, o grande divisor de águas (e, para mim, o seu livro maior, o que apresenta o mais numeroso e consistente bloco de poemas notáveis), atinge o equilíbrio ideal entre fluxo e contenção. O Poeta amadurece. É uma sensível mudança, mas não lhe desfigura a essência. O jorro continua.
Poema que bem revela essa mudança é “O Coração da Realidade”, de Linguagem:
Estive, estou e estarei
no coração da realidade,
perto da mulher que dorme,
junto do homem que morre,
próximo à criança que chora.
Para que eu cante, os dias são momentâneos
e o céu é o anúncio de um pássaro.
Não me afastarei daqui,
da vida que é minha pátria,
e passa como as águias no sul
e permanece como os vulcões extintos
que um dia vomitam sono e primavera.
Minha canção é como a veia aberta
ou uma raiz central dentro da terra.
Não me afastarei daqui, não trairei jamais
o centro maduro de todos os meus dias.
Somente aqui os minutos mudam como praias
e o dia é um lugar de encontro, como as praças,
e o cristal pesa como a beleza
no chão que cheira à criação do mundo.
Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.
Bebo a hora que é água; refugio-me na estância
quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,
e estou livre, sinto-me final, definitivo
como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz
e todas as coisas que são o centro, o coração
da realidade que escorre como lágrimas.
A transcendência não é o lugar do Poeta (nem o êxtase, nem a música). Seu lugar são as coisas, os seres, os fatos e os atos. Embora ele os transcenda...
Numa quadra de “Nenhum Anjo” (Magias) ele parece desmentir a inspiração e, conseqüentemente, penso, descartar o surrealismo a que nos temos referido. Diz ele:
Nem de vista nem de chapéu
conheço o sobrenatural
sócio com direito à metade
de minhas minas de cristal.
A suspirante divindade
não tem em mim seu porta-voz.
De nenhum rio celestial
eu me proclamaria a foz.
Sim, dir-se-ia, ele já não crê em bruxas; mas que las hay, ¡las hay!, reconhece logo na abertura de O Soldado Raso:
A INSPIRAÇÃO
Não creio na inspiração
essa bruxa radiosa
que sopra a canção
e te faz alegre ou triste.
Mas que ela existe, existe!
Ledo é um enamorado da linguagem (que nomina um de seus livros), o que fica de logo patente na já assinalada relação volúpica entre o Poeta e as palavras. Adora uma vagabundagem pelos seus campos, chegando a tematizar no poema acidentes como a metáfora, o anacoluto, a diérese (título de poema em Curral de Peixe). Senhor de grande vocabulário, aprecia a combinação de palavras díspares, nisso incluída a adjetivação improvável, como a registrada no soneto acima transcrito. Assim como domina as técnicas, domina o idioma em que se move, a ponto de dizer Wilson Martins que “possui como poucos em nossa literatura contemporânea a faculdade de reunir estranhamente suas palavras, despertando efeitos novos, revelando belezas desconhecidas, enriquecendo a capacidade de expressão da língua”. Na mesma linha de pensamento, Sérgio Buarque de Holanda enfatiza que, em sua poesia, “as palavras, através de combinações por vezes insólitas, adquirem uma ductilidade e, ao mesmo tempo, uma tensão emotiva ainda raras em nossa literatura”. (Transcritos das orelhas de Finisterra, José Olympio, 1972.) Não é de admirar que poeta de tão amplo domínio resvale, eventualmente, para o clássico de um soneto primoroso como este “O Endereço da Noite”, de O Rumor da Noite:
Agora que anoitece é que amanheço
como se o meu depois fosse o meu antes
e os anos sucumbissem nos instantes
sem que vou perecendo e não pereço.
Embora a noite caia, não conheço
o endereço da noite, e os habitantes
de sua casa, nem os navegantes
da nave que foi sempre cova e berço.
Só os mortos estão livres da morte,
sem porta aberta e sem o portaló
do navio que é partida e perdimento.
Quando a sorte é lançada, não há sorte.
O que era vida e amor se muda em pó
e o próprio pó se muda em nada e em vento.
Tempo e eternidade –para usar o binômio de Jorge de Lima e Murilo Mendes, poetas com os quais Ledo Ivo tem afinidades– freqüentam do início ao fim esta poesia inquieta, de envolta com sua grande obsessão: Deus.
O silêncio de Deus. Os caminhos de Deus. A desnecessidade de Deus. A necessidade de Deus. O incômodo de Deus. A procura de Deus.
Vale a pena uma olhada nalguns pontos desse caminho tortuoso.
Nos primeiros livros Deus é apenas um coadjuvante bem-comportado, quase um figurante. De repente, em Finisterra, dá sinal de si e “é como os morcegos: / voando à noite entre os espaços estrelados / procura chupar o sangue dos homens / que enegrecem os dias com os seus pecados” (“Nossa Senhora das Correntes”). Adiante, em “Os Anjos da Igreja do Rosário”, “uma luz vermelha / no sacrário escuro / guarda o coração / do Deus invisível / que suspende os anjos / e deforma os homens”. Já surge, então, como um personagem incômodo, mas ainda não se tornou protagonista. Em A Noite Misteriosa, torna-se objeto de dúvida na boca de um “Soneto Erradio”: “Não sei se sou a caça ou o caçador. / .... Não sei se Deus existe ou se é, na tarde, /como o barco que passa sob a ponte, / e seja apenas um rumor de fonte / a água da sede que em meus lábios arde.” E é nesse livro que assume o primeiro plano: toda a seção terceira, “Vida de Sempre”, lhe pertence. São 32 poemas seguidos em que lhe cabe a parte principal. E Ele aí, multíplice, é “algo cintilante / como a cauda de um cometa”, “o esquilo que atravessa a estrada / o musgo que esverdeia o portão / a flor aberta antes do tempo / no jardim onde as cobras se esconderam”. Torna-se dramático e é “O Intruso” que se esconde “no estábulo” ou “no porão junto aos ratos”; ou assume, antiteticamente, desde o papel do “galpão onde nos abrigamos” até o do “animal que avança sobre nós / no pesadelo”. Vive entre bichos repugnantes ou peçonhentos, rasteja como um verme e “anda na lama como um goiamum”, oculta-se “no pântano, / entre os borrachudos”: protesto do Poeta ante os abismos da Vida, que não pode compreender? E “está em nada” e “está em tudo”. Liricamente, “Deus e dois são cinco / na tabuada / do mais puro amor”; e só Ele “limpa e lava / tudo com a água / da límpida cisterna / que é a vida eterna”; mas “não cheira a incenso. / É no estrume fresco / e na alga viscosa / que devemos ver / os sinais divinos / com os olhos de quando / éramos meninos”. Mesmo tratando de Autor/Ator de tão majestoso porte, não deixa de fazer piada: Em “O Pecado Original”, por terem Adão e Eva comido o fruto proibido é que hoje “pagamos os motéis com o suor do nosso rosto”. Entre aceitação e recusa, entre sinceridade absoluta e algo de pose, entre pureza e humor, Deus é o fio de seu drama, num conjunto poemático de grande força.
Nos livros seguintes, Deus continuará desempenhando um impressionante papel. Em Mar Oceano, assusta-o um “Deus cruel que envenena os fungos” e cujos embaixadores “são formigas, corujas, ratos e morcegos”. O Poeta, que em “O Turista” (Deus é o “grande turista”) declarava invejar “as gaivotas / que bicam a água cinzenta / – as gaivotas que não precisam de Deus”, em Rumor da Noite dirá: “Não preciso de nada. / Só preciso de Deus” (“A Necessidade”). Esse Deus que “é o silêncio / que habita as galáxias” (“O Refém”, de Crepúsculo Civil). Em “Interpelação”, páginas adiante, Deus diz: “Eu sou a Linguagem.”
A procura de Deus é o mergulho ontológico. Indagar do divino é perquirir o sentido da vida. É esse o caminho de angústia do poeta Ledo Ivo. E é um dos veios mais opulentos de sua cornucópica poesia.
Para coroamento desta vertente, leiamos os dois poemas que dialeticamente encerram Plenilúnio:
UMA BUSCA INCESSANTE
Ainda não desisti de encontrar Deus.
Desconfio que o gavião o esconde em suas asas
e os sonhos o abrigam nas dobras de sua oculta sabedoria.
Às vezes, um grito dilacera o espaço estival
da várzea que divide as minhas florestas.
Então sou inclinado a acreditar que ouvi
o grito de Deus, após o longo silêncio.
Deixo de pisar a formiga negra que avança
numa saliência da estrada em declive
e me envolve a percepção de que consegui evitar
a morte de Deus, em um de seus disfarces.
Dedico o dia inteiro à procura incansável
e de repente a noite cai: a noite negra como uma formiga.
Deus passeia incólume entre as constelações.
O DESEJO
Não quero a eternidade,
a trama interminável
de uma roca que fia
um dia após um dia
na duração perpétua.
Quero ser o que passa:
a leve nuvem branca
que se desfaz no espaço,
a fumaça de um jato
no céu vazio e claro.
Não me agrada ou seduz
viver após viver.
Antes quero o relâmpago
que rasga o céu sombrio,
uma folha de álamo
no chão de uma viagem
e a chuva momentânea
que cai sobre as cidades.
Prefiro um vôo de pássaro
a tudo o que é eterno.
A tudo o que é durável
prefiro o perecível:
a sombra fugidia
o dia luminoso
dos narcisos e rosas;
os instantes que regem,
na noite indecorosa,
o amor dos amantes,
seus gritos e gemidos;
a pétala fugaz
ferida pelo outono.
Contenta-me o trajeto
entre uma porta aberta
e uma porta fechada
em plena madrugada
ou na manhã mais cândida.
O meu Deus é relâmpago,
o breve resplendor
antes do grande sono.
Recuso-me a durar
e a permanecer.
Nasci para não ser
e ser o que não é
após tanto sonhar
e após tanto viver.
Em 2004 falece a esposa do Poeta, Maria Leda. Dessa perda resulta o Réquiem, belo volume ricamente ilustrado com pinturas de Gonçalo Ivo, filho do casal, e um desenho de Gianguido Bonfanti. Nesse poema quase final, a dor impera. Desarvoradamente o começa: “Aqui estou, à espera do silêncio.” Sob o alude da dor como que cessa a busca: “Nada sabemos, a não ser que há uma noite / pura e vazia à nossa espera. Uma noite intocável / além do fogo e do gelo, e de qualquer esperança.” E prossegue, em fundo lamento: “Somente a morte ensina que os anjos não existem. // Tudo o que perdi, perdi para sempre”, até chegar ao termo desamparado de seu “longo caminho entre dois nadas”. Reivindico, porém, para fecho entre dúbio e luminoso da jornada –a do Poeta e a nossa– estas palavras de nauta que insiste em manter os olhos descerrados ante o Encoberto Mar:
.... e agora, diante do oceano exato e visível, diante do
grande mar prosódico,
nada sei sobre a travessia.
Após tantas viagens, esta é a última fronteira
que me cabe transpor. *
Brasília, 23 de maio de 2013.
* Finda a leitura/releitura da obra poética de Ledo Ivo, ocorre-me relacionar, embora sem pretensão de fazer-lhe a antologia, outros poemas dentre os que mais me impressionaram:
As Imaginações – Esmeralda
Ode e Elegia – Elegia
Cântico – Vogante
Linguagem – O Homem Vivo (especialmente pelo final), A Janela sem Traves, Soneto do Jogador
Um Brasileiro em Paris – A Visão, O Viajante
Magias – Soneto dos Trinta e Cinco Anos, O Galho, Magia, A Origem do Sal, Soneto do Empinador de Papagaio, Realeza, Ofício da Mortalha, A Aranha, Soneto dos Candeios, O Amanhecer das Criaturas, Marola, O Caminhante Sibilino, Notícia do Sábado Magro (especialmente pelo dístico final), O Fim da Aventura
Estação Central – A Volta, O Dever
Finisterra – O Caçador
A Noite Misteriosa – Devolução, O Fedegoso, Agência Candelária, O Segredo, Confissão, O Olhar de Deus, Condição para Aceitar
Mar Oceano – A Clareira, A Flecha, Desaparição, A René Descartes
Crepúsculo Civil – Arraiada, A Clandestina, O Amante Aplicado
Curral de Peixe – Desembarcando em Londres, O Ignorante, A Crepitação, A Queimada, O Peixe, Jaraguá, O Girassol, A Volta ao Lar
O Rumor da Noite – Uma Janela no Campo, As Pontes de Roma, Água e Alegria, Noturno, Revisitando a Praça Quinze, O Anjo Calado, O Silêncio da Madrugada, O Tambor, Soneto da Enseada
Plenilúnio – Soneto da Neve, Sombra Perdida, As Palavras Banidas, Mesmo quando Sozinho.
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