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Sobre Antonio Miranda
 
 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

SOBRE O HAIKAI
(a partir de poemas de ISSA - (1763-1827)

 

                                  por DÉCIO PIGNATARI

 

       Nasceu na aldeia de Kashiwabara, localizada na atual região de
Nagano, então sob a jurisdição de Edo (hoje, Tóquio), xogunato
do clã Tokugawa, última manifestação do poder do feudalismo
nipônico: em 1867, teria lugar a Restauração Meji, que indus-   
trializou o país, numa ação histórica que provocaria um verda-
deiro terremoto sócio-econômico, político e cultural, de onde
surgiria o Japão moderno  (os atuais soberanos pertencem à
 
Dinastia Meiji). Órfão de mãe, sofreu durante muito tempo a
hostilidade da madrasta e do meio-irmão; no fim da vida, re-
conquistou a propriedade paterna no torrão natal, só para ver
a sua casa desaparecer num incêndio (morreria pouco tempo
depois). Casou-se três vezes, foi professor, perambulou pelo
Japão, sofreu vários ataques de paralisia. Seu desleixo pessoal
e sua rudeza são lendários. Suas obras foram publicadas sob o
título genérico de Diários. Com Bashô (1644-940 e Buson (1715
-83), forma a grande tríade do haicaísmo clássico.  

       
O haicai é composto de três verso, no esquema 5-7-5 sílabas;
o tanka, segundo o esquema 5-7-5-7-7 sílabas — lembrando
que todas as sílabas são consideradas (tal como no grego e no
latim, de resto),  diferentemente  do que ocorre em português
poético-versificado,  em que apenas são levadas em conta as
sílabas até o acento tônico final de cada verso. Traduzo dois
       tankas e dou versões experimentais de um haikai, segundo
uma sugestão, talvez involuntária, de Lewis Mackenzie, que
coloca em linha única, ao final do livro, os poemas ideograma-
tizados.

Todos os ideogramas têm um único som, monossilábico, além
disso, não possuem sinônimos. A montagem dos significados
advém de um sutil jogo combinatório, tal um jogo de cartas de
baralho: a lei interna que comanda a formação desse ícone
estrutural rebate-se na norma externa, que comanda a sintaxe.
O sistema seria um tanto plano e limitado, não fossem dois
recursos subsidiários, se é que assim podemos considera-los:
a caligrafia e o jogo de modulações em altura e acento, que
neutralizam a redundância visual, de um lado, e o excesso de
sons semelhantes, paronomásticos ou trocadilhescos (dos
quais, aliás, os poetas chineses e japoneses tiram grande
partido), embora o sistema nipônico de escrita, desde o tempo
de Issa, utilize um sistema fonético paralelo, um silabário
(como dizem os portugueses), chamado hiracaná. Claro é que
cabe ao poeta buscar os acordos e desacordos entre sub-
sistemas, dentro da langue geral, o que, em termos jakobiso-
nianos, na direasção do fenômeno poético, seria uma hesitação
entre som, sentido e visualidade.  Trata-se, pois, de algo assim
como uma partitura desenhada (obviamente, canções envolvem
um terceiro subsistema, de notações musicais).

        Convém lembrar, ainda, que os japoneses importaram o corpo
ideogrâmico básico dos chineses, atribuindo a cada ideograma,
no entanto, um som diverso, dessa forma, a acepção “léxica”

de um ideograma japonês (canji) pode ser buscado num dicio-
nário chinês, e vice-versa, descontado o variável acervo de
obsolescência e de aquisições ou formações novas. Para finali-
zar, observo que os sons japoneses estão mais próximos de
nós, pois além de monossilábicos, apresentam a característica
de cada som ser formado por uma consoante seguida de vogal.
Não só nenhum som é estranho ao sistema fônico se fonético
da língua portuguesa (à exceção do fonema aspirado), como o
sistema se abeira ainda mais da vertente brasileira da língua,
com sua tendência à vocalização e seu mal-estar ante conso-
antes mudas: assim entre nós, por exemplo, abrupto tende a
virar “abrúpito” (“abirupito”, diriam os japoneses, para os
quais Brasil visr “Burajiru” e strike (greve) vira “isturaicu”.
Lembremo-nos do que costumamos fazer com o o e o i, que
tendem a virar i e u: “minimu” (o que nos aproximaria do
romeno...). Quanto ao chinês, apresenta fonemas não existen-
tes em português, como o chamado ü francês. A métrica do
sânscrito Rigveda) e do canada também é silábica; a caligra-
fia não é de magna relevância, embora não destituída de
importância. Fundamental é a base estrutural de raízes multis-
significantes, que as aproxima de línguas aglutinantes, ou com
traços de aglutinação, como o tupi e o alemão. Mas aqui não
me aventurei sequer meio passo: apoiei-me em versões em
inglês.

No âmbito dos acasos e opções pessoais, Issa é um caso bas-
tante pessoal. Nos inícios dos anos 70, creio, defrontei-me com
um haicai, numa revista americana de grande circulação;
impressionado com o que vi ou inferi, fiz uma versão, que pu-   bliquei em revista, mas não incluí na minha edição de poemas
coligidos (incluí o arquifamoso haicai da rã, de Bashô, onde
busquei um espelhamento  Ying-Yang), imaginando, um dia,
poder consultar o original.Em 1988, em Quioteo, fui a um
recital de Allen Guinsberg: havia jovens pendurados até no
lustre; findo o espetáculo, retiravam-se todos, felizes, nadei
contra a maré, pulei para cima do palco, fui dar um abraço no
beat-poet. Ele perguntou: “Que você está fazendo aqui?” Esno-
bei: “Traduzindo Issa, com originais, tradução, transcrições
fonéticas e reproduções ideogrâmicas, e me pus a traduzir
Issa, ou alguém muito parecido (minha ignorância do japonês
continua a mesma), sempre sob o influxo do haicai dos patos,
que refiz e ora publico, junto com quase duas dezenas de
outros.

        Minha abordagem é semiótica e “semiótica”. O haicai é uma
joia grafônica lapidada, não apenas no espaço, mas no tempo:
nela busquei mais este do que aquele. É o esplendor da secun-
didade peirceana, no universo poético:    é o aqui-e-agora do
homem e do signo, mas é algo diverso do carpe-diem horaciano
ou de Omar Khayyam, segundo a versão de Fritzgerald, uma
dessas inspiradas traduções-versões que se transformam em
originais (as traduções de Augusto de Campos são de nível A).
Não se trará apenas da relação entre o permanente e o contin-
gente, com um ponto de mutação (Kireji), que pode correspon-
der a um Ying-Yang. Sim, fala-se do tempo que passa e da bre-
vidade da vida; mas, aqui, no haicai, a rã que salta ou a borbo-
leta que esvoação são também gente e não falam apenas da
brevidade da vida, mas do seu maravilhamento, da especifici-
dade inexplicável das coisas se dos eventos naturais e huma-
nos.

        A vida é uma faísca num suposto universo natural durável (ou
seja, que se desenvolve em outro “timing”), mas, sem ela,
não haveria universo algum, quem sabe.  “Como é breve a
bela noite de verão” (dizem os jovens, dizem os homens —
e Issa também!). Nesse Issa também  (Hito mo Issa), cabe um
universo de melancolia e ironia — Issa que já não é jovem, Issa
que não se identifica com os homens — a resposta-exclamação
passa de resposta, é pergunta ontológica: quem é Issa? Assim,
com as coisas e os bichos: de quem ou de que está falando o
poeta? Veja-se o haicai dos patos, o que me abriu a porta
issana: chuva de primavera, trovões, patos festejam no lago;
prepara-se a festa da estação, onde o pato é o prato tradicio-
nal; caçadores, pelas margens, disparam suas espingardas
de tiros de chumbo, estes se confundem com os pingos de
chuva, o espocar das armas com os trovões; os patos ainda
não atingidos continuam a festejar, ignorantes, como nós, da
impending death. A mais bela lapidação tempória de Issa é a
da graça da borboleta que esvoaça, rápida, pela brevidade da
vida do poeta e dos homens. O kireji do haicai  corresponde à
epifania joyciana e ao ferrão assassino do epigrama de Marcial,
mas esta revelação do poema, joia sígnica reveladora de uma
arte teopóetica (ainda hoje, as pessoas não compreendem que
o Japão é uma teotecnocracia...). Do macro ao micro, e vice-
versa, a disciplina da tensão e da contenção, lua e sol sígnicos
erguendo-se continuamente no horizonte. Enquanto, de minha
parte, vou de uma taodução a uma zemiótica.

 

        [Depois de ler o texto acima, de nosso grande Pignatari, é hora
e rever os haicais de Issa para reinterpretar...]

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