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Federico Garcia Lorca, retrato por Fabrizio Cassetta

Sexo e morte em García Lorca.

Ou Lorca como poeta maldito

 

 

Elga Pérez Laborde

 

 

Extraído de

PÉREZ-LABORDE, Elga, orgLorca Total. Textos sobre a poesía e o teatro de Federico García Lorca aos 80 anos de sua morte comemorada no Brasil – 1898-1936.  Campinas, SP: Pontes Editores, 2017. 227 P. 16X23 CM.    ISBN 978-85-7113-895-7   Ex. bibl. Antonio Miranda

        

A literatura espanhola não se caracteriza por ter poetas malditos. Federico García Lorca é uma das exceções. A história registra alguns poucos e notáveis escritores que entram nessa categoria: Francisco de Quevedo, Ramón del Valle-Inclán, criador do esperpento, linha estética da distorção, muito hispânica e ligada ao grotesco e ao barroco. Comunga dessa mesma tendência Goya, com suas gravuras e pinturas negras. Todos eles artistas irreverentes, cada um em suas respectivas épocas, que se atreveram a enfrentar com sua arte a estrutura da sociedade espanhola, mediatizada sempre pelo religioso, pelos tabus da honra, pelos atavismos e pela repressão. Francisco Umbral, autor de Lorca, poeta maldito (1977), atribui essa escassez de malditos ao fato de a sociedade espanhola não ter sido suficientemente forte para suportar em seu seio os anticorpos que são os malditos. "E como não poderia suportá-los não os produz" (1977, p. 12).

         Para Umbral, Lorca reúne em si três condições-chave do criador maldito: fixação estética e humana nos poderes demoníacos, heterodoxia sexual e morte trágica e prematura. O chamado "duende" andaluz, tão ligado a Lorca, representa uma forma convencionalmente simpática do luciferino. Umbral escreve: "Andaluzia é Federico e Federico é Andaluzia. Andaluzia e Federico, entre tanta luz do Sul, vivem na sombra" (1977, p. 13). Umbral refere-se aos autores que entenderam (ou não entenderam) o mundo como caos, como desordem, como contingência. "Andaluzia é terra e alma essencialmente dionisíaca.(1) Vive de conjurar a escuridão, o telúrico, de provocar o mistério, a magia. Andaluzia, como toda região e etnia muito religiosa, vive do demónio, que tem se revelado como duende" (p. 13).

         A heterodoxia sexual, que Umbral vai chamar depois de pansexualismo de Lorca, o situa de forma radical, profunda e secretamente à margem da sociedade em que vive, ainda que ele se tenha mostrado sempre como uma figura muito sociável e querida por seus amigos e colegas do mundo da arte. Sua época não permitia em absoluto a integração do indivíduo quando este tinha ou vivia uma tragédia sexual íntima. E por último, seu assassinato marcou seu destino de maldito.

         Tentar entender sua obra de poeta do mal ou poeta maldito nos conduz a considerar sua vida e seus conflitos interiores como fatores determinantes que o levaram a se sensibilizar com as três grandes agrupações postergadas, marginalizadas pela sociedade: os ciganos, os negros e os homossexuais.

Lorca em Granada está com os ciganos frente à Guarda Civil, frente à ordem estabelecida. Lorca em Nova York está com os negros, está com o Harlem frente à Wall Street. Lorca em sua Ode a Walt Whitman e em seus Sonetos do amor escuro, livro póstumo, mítico e inédito, canta à paixão que não se atreve a dizer seu nome. Lorca é, radicalmente, um homem do contra (UMBRAL, 1977, p. 14).

                           

Porém, o poeta se salva por meio de seu trabalho criativo ao transformá-lo em obra de arte e de seu espírito de criança, que, como assinala Freud, é a chave de todo artista e sobre o qual há diversas opiniões dos poetas que o conheceram mais de perto. Uma breve síntese de sua vida permite observar o processo evolutivo que experimentam seu sentido estético e sua expressão poética. Lorca nasce em Fuentevaqueros, Granada, em 1898, e morre tragicamente em 1936, no início da Guerra Civil. Estuda Filosofia, Letras e Direito. Em 1919 chega à Residência de estudantes de Madri, onde mora até 1928. Desse período surge a imagem de Lorca como "señorito" madrileno andaluz, que toca piano, canta, compõe poemas, recita, improvisa, diverte e surpreende seus companheiros da Residência. Em 1930 viaja aos Estados Unidos. O fruto dessa viagem é Poeta em Nova York, no qual o espírito lírico andaluz e musical, sob o incentivo de Manuel de Falla e Juan Ramón Jiménez, se revela de repente como um grande inconformista social e como um poeta de vanguarda surrealista. Poeta em Nova York tem seu precedente e irmão gêmeo no Romancero gitano. São livros gêmeos nos quais se louvam duas raças malditas. A diferença está na forma, que não é tão díspar, salvo a métrica, segundo aponta Umbral.

 

O magnetismo dos ciganos

 

         Explica-se a atração de Lorca pelos ciganos sob diversos pontos de vista. O estudo de Umbral aponta alguns, considerados os mais importantes: atração pelo esoterismo da raça, atração puramente sexual, simpatia reivindicativa, vagamente político-social, por uma raça discriminada. Seguramente – observa Umbral – todos esses motivos e muitos outros, irracionais na maioria, estão ligados a sua obsessão pelo cigano, o que confirmaria sua vocação de poeta maldito. Lorca identifica no cigano seu próprio anarquismo pessoal, mais profundo, mais radical, mais absoluto. O que ele também tem de postergado, de pária, de homem das margens da sociedade e suas normas. Lorca, "como todo poeta do partido do diabo" (UMBRAL, 1977, p. 77), sente-se subjugado pelo esoterismo dos ciganos e recria seus ritmos e mitos. São os ciganos os que fazem nascer o primeiro livro importante, definitivo do escritor, o Romancero gitano (1924-1927). "Ese fondo oscuro de gitanería que tiene Granada, ese fondo hormigueante, ritual, "noble y sucio", como decía  Maurois de todo el Oriente, sugestiona al poeta" (p. 77). No primeiro poema desse livro, "Romance de la luna, luna", os ciganos são "bronze e sonho". A lua, "pupila de Satã", como a tinha chamado o poeta num livro anterior, simboliza a morte que vem à fogueira (forja) e se leva uma criança cigana.

A atração puramente sexual de Lorca pelos ciganos aparece com muita força ao longo de sua obra e especialmente no Romancero. Ciganos e ciganas são mitificados sexualmente: desde os peitos de Soledad Montoya, que "gimen canciones redondas", até o perfil (ambivalência sexual ou pansexualismo de Lorca) de Antoñito el Camborio "viva moneda que nunca/ se volverá a repetir". A poderosa sexualidade do poeta polariza-se durante muito tempo de sua vida – adolescência e juventude – nos ciganos, porque, conforme afirma Umbral, "a libido –e quase da vergonha de dizer – de tão óbvio – não é senão uma sublimação do sexo pela imaginação e a imaginação nutre-se de exotismos" (1977, p. 79). Umbral é enfático nisto:

A imaginação, especialmente a imaginação em chamas pelo sexual, a libido, vive de buscar e queimar exotismos. Um corpo sempre é exótico para outro corpo, e logo deixa de sê-lo. Chamo exotismo sexual o que Machado chamava no amor "o essencialmente outro". O sexo busca sempre o essencialmente outro, o qual não é um princípio de heterossexualidade, como acreditava o bom dom Antonio, senão que o essencialmente outro não é necessariamente o outro sexo; o essencialmente outro é psicologicamente outro ser, exótico para aquele que o contempla, ainda quando seja do mesmo sexo (1977, p. 78).

 

         Ciganos e ciganas são exóticos para Lorca num profundo sentido e, portanto, atraem sua sexualidade em forma poderosa. São exóticos porque são outros, e o exótico queima sua libido.

 

Identificação com os negros

 

         Federico escreveu Poeta em Nova York entre 1929 e 1930 durante sua estada na Universidade de Columbia, assim como em sua seguinte viagem a Cuba. O livro foi publicado pela primeira vez em 1940, quatro anos após sua morte. García Lorca tinha deixado a Espanha em 1929 para dar conferências em Cuba e Nova York. Porém, especula-se que a viagem talvez fosse pretexto para sair do ambiente que lhe rodeava e lhe oprimia por causa de um fracasso sentimental e o conflito que sentia pela sua sexualidade. Lorca padeceu nessa época de uma profunda depressão.

O poeta morou em Nova York de 25 de junho de 1929 a 4 de março de 1930. Ele experimentou um verdadeiro impacto na sociedade norte-americana e sentiu desde o início de sua permanência uma profunda aversão pelo capitalismo e pela industrialização da sociedade moderna, assim como pelo trato dispensado à minoria negra. Com Poeta em Nova York Lorca lança um grito de horror, de denúncia contra a injustiça e a discriminação, contra a desumanização da sociedade moderna e a alienação do ser humano. A preocupação social do poeta, no dizer de Umbral, também permite desmentir uma suposta frivolidade atribuída a ele. Sua condição de maldito provém de uma etapa prévia de revolucionário, na qual a arte foi sua única arma, o que o lhe acompanhará durante a vida e esconde uma insatisfação mais profunda que a simplesmente social.

         Esoterismo, sexualismo e exotismo parecem conduzir a sensibilidade poética de Lorca para os negros, assim como o foi para os ciganos. Identifica-se com os negros por razões profundas de ordem política e social. Umbral destaca a maturidade alcançada pelo poeta, que percebe nos negros outra raça proscrita, como nos ciganos, o que o motiva a escrever um livro semelhante ao Romancero. Umbral questiona: até que ponto são semelhantes os poemas "políticos" de Romancero e os poemas dos negros?

 

Há, em princípio, um paralelismo de identificações – Lorca ama os ciganos, Lorca ama os negros –, um paralelismo de situação e um paralelismo de tratamento. Lorca é lírico quando canta o mundo negro e é épico quando canta o conflito negro, quando insulta o branco (1977, p. 116).

           

A diferença entre ambas as obras estaria apenas na forma, segundo Umbral, no fato de Lorca, nessa etapa de sua poesia, estar sob a influência da retórica surrealista e sob o impacto da realidade caótica e proteica norte-americana, que exigia outro tratamento literário. "Se Lorca houvesse escrito seus poemas de negros aproveitando, por exemplo, o ritmo e a percussão dessa raça para traduzi-los em poesia, a semelhança estética seria mais evidente". Lorca "nunca se parece tanto a si mesmo como quando escreve sobre os ciganos ou quando escreve sobre os negros" (UMBRAL, 1977, p. 116).

        

O pansexualismo de Lorca

          

         Umbral acredita que a libido lorquiana pode ser mais bem entendida como pansexualismo que como homossexualismo. Nesse conceito, pansexualismo ou pan-erotismo, o sexo é cantado pelo poeta em todas as suas versões e variantes, em todos os seus reinos, incluindo o reino vegetal, e constitui uma das chaves da intensa receptividade, da riqueza, da diversidade e da vitalidade de toda sua obra. O poeta trata o sexo como forma de conhecimento do ciclo da vida e da morte, onde tudo se metamorfoseia numa mecânica cruel e dramática. Lorca tem consciência desse dramatismo, para ele a natureza é trágica e funesta (UMBRAL, 1977, p. 135). 

 

Apenas um pan-erotismo em carne viva pode conectar continuamente com todos e cada um dos fenômenos sexuais em torno, ou, em todo caso, gostar e captar vivamente a plasticidade desses fenômenos. A natureza é bela porque é erótica. O que chamamos sensualidade não é senão sexualidade no ato. Atitude dos sentidos para se comunicar com o erotismo da natureza (UMBRAL, 1977, p. 135).

 

Nas palavras de Umbral, o sexo é a origem de um conhecimento estético e vital, que fica castrado na criatura humana, de sexualidade restrita ou reprimida. Ele apela a Rilke para afirmar que o sexo nas crianças está repartido por todo seu ser porque elas são inocentes. A perda da inocência, a malícia, reclui o sexo dentro de estritos limites fisiológicos. A comunhão infantil com a natureza seria uma comunhão sexual porque o sexo da criança, ainda não desenvolvido, vaga sutilmente por todo seu ser. "Esse pan-erotismo é a chave de uma grande receptividade dos sentidos, a chave da grande receptividade lorquiana, puro e amoral como nas crianças, pansexual como nas crianças" (1977, p. 135). Mas, Lorca também faz um canto a uma forma superior de homossexualidade que tem um precedente na Grécia e se integra num panteísmo ou pan-erotismo de algum modo grandioso. Lorca condena o vício escondido e servil, porém canta a liberdade total do sexo, a sexualidade-limite, gratuita, pura, sem interesse na reprodução: a homossexualidade.

Todas essas reflexões de Umbral em torno do pansexualismo de Lorca conduzem a uma melhor compreensão do canto ao erotismo masculino na "Ode a Walt Whitman", ao que qualifica como "um possível inferno ou paraíso de homossexualidade na atmosfera fabril cruenta de Nova York: Nova York de lodo, Nova York de arame e de morte" (1977, p. 136). O poeta canta essa homossexualidade exercida numa natureza pansexual, sobre o confuso e vasto atlas dos Estados Unidos. E logo o canto ao gigante:

 

Ni un solo momento, viejo hermoso Walt Whitman,

he dejado de ver tu barba llena de mariposas,

ni tus hombros de pana gastados por la luna,

ni tus muslos de Apolo virginal,

ni tu voz como una columna de ceniza;

anciano hermoso como la niebla

que gemías igual que un pájaro

con el sexo atravesado por una aguja,

enemigo del sátiro,

enemigo de la vid

y amante de los cuerpos bajo la burda tela.

(LORCA, apud UMBRAL, 1977, p. 136)

 

A citação desses versos da "Ode" sugere o clima do Romancero, e Umbral destaca ainda que enquanto neste se paganiza o sacro, na "Ode" sacraliza-se o pagão.

 

A tragédia social

                                Consagrado como poeta com o Romancero e instituída a República espanhola, Lorca funda La Barraca, pequeno teatro universitário que levará pela Espanha suas peças e os grandes clássicos. Sua paixão pelo teatro como meio de comunicação e veículo de ideias e sentimentos supera sua inclinação pela lírica. Ele prefere o dramático e o sentido social do teatro. Nesse rumo da tragédia social demonstra outra preocupação, que também incomoda o público, acostumado ao gênero menor da comédia Benaventina. A temática do seu teatro possui uma forte impregnação sexual. As tragédias rurais foram construídas em torno do caráter e da libido femininos. Lorca surpreende com sua dramaturgia profunda de paixões e frustrações femininas, com sua complexidade de problemas e conflitos psicológicos. Suas possibilidades dramáticas não perdem a atualidade porque tratam de temas eternos e aproveitam todo o caudal de conhecimento que Lorca tinha dos clássicos do teatro espanhol. Nele aparecem canções ligeiras apreendidas de Lope de Vega e ambiciosas parábolas estudadas em Calderón. 

Em cinco anos e meio, de 1930 a julho de 1936, escreveu quatro obras: Bodas de sangre, Yerma, Doña Rosita e La casa de Bernarda Alba. Conseguiu representar as três primeiras com grande sucesso. E, segundo ele mesmo declarou, esse teatro de boa qualidade poderia resultar rentável tanto no aspecto comercial quanto no aspecto social, porque o teatro "na sua essência mesma é parte integrante da vida do povo" (ELIZALDE, 1977, p. 217).

         Escreve e estreia em Madri Bodas de sangre, uma autêntica tragédia grega centrada na fatalidade de um amor irreprimível e proibido. Analisada de diversos pontos de vista pela crítica especializada aponta problemas dentro de uma luta entre o livre-arbítrio e o determinismo (ELIZALDE, 1977 p. 218). Nesse aspecto apresenta um nexo com a tradição dramática espanhola, elaborada especialmente em La vida es sueño, de Calderón. Também pode ser estudada sob o ponto de vista do amor, tema constante na trilogia rural e em toda a obra lorquiana. O amor que para Lorca é, mais que nada, força vital, impulso dionisíaco impossível de se resistir, seja qual for o disfarce que utilize. Ele o diz claramente numa cena do bosque. (LORCA apud ELIZALDE,1977, p. 218):

Que yo no tengo la culpa,

que la culpa es de la tierra

y de ese olor que te sale

de los pechos y las trenzas

         Instinto sexual, voz da terra, o amor exige o culto da carne, impõe-se triunfador e rompe normas e mandamentos. Amor que termina na peça do dramaturgo de modo trágico, fatal. No parecer de Elizalde, nesse drama popular não podemos procurar refinamentos nem complicações psicológicas. As personagens movem-se por instintos primários, e os temas são sempre elementares. Suas criaturas reduzem-se a puro sexo, e as funções do homem e da mulher limitam-se às genéticas de potência viril e fecundidade, respectivamente. A tragédia está focada na união ou na oposição dos sexos, movidos por leis cegas. São criaturas da terra, sujeitas à irracionalidade das leis telúricas, tal qual o animal ou o vegetal. Toda a obra está dentro de um determinismo que funciona em dois níveis: o biológico e o social.

         Bodas de sangre é a tragédia das mulheres. As três, mãe, noiva e sogra, movem os fios da ação. São elas que alimentam uma ilusão que dá sentido às suas vidas e são as que ao final ficarão sozinhas, vazias, fechadas, porém cheias de estoica resignação e passividade diante da desgraça. A faca, símbolo presente desde o início da tragédia, dá o clima para o desfecho das paixões.

         Yerma, a segunda da trilogia, apresenta o tema da esterilidade da mulher. Yerma, insegura de sua fecundidade, intui que todas as suas possibilidades estão condenadas ao fracasso. A própria palavra "yerma" (sinônimo de esterilidade, aridez) indica o conflito da mulher não fecundada, sobre o qual há diversas interpretações: frieza do marido, limitações religiosas, obsessão pela maternidade como puramente biológica ou como erotismo genético ou como desejo psicológico ou espiritual, e ainda, como representação do nascimento divino. Umbral escreveu que Yerma representa a tragédia da libido frustrada, e a protagonista, "o ser marginal, liminar, inútil, gratuito". Inclusive uma interpretação marxista viu na tragédia de Yerma a do povo espanhol frustrado e não fecundado (UMBRAL, 1977, p. 223).

         Elizalde ainda aponta três planos por meio do sentimento trágico de Yerma. O plano social: a mulher estéril, desprezada socialmente que carrega essa humilhação diante dos outros. Sob o aspecto familiar, também a esterilidade constitui um drama, principalmente nos povos agrícolas. A falta de filhos privava a família de braços úteis para o trabalho do campo e da casa. E, finalmente, também uma tragédia no plano da vida sexual. O motivo da esterilidade de Yerma pode ser ou sua falta de amor pelo marido, pois se casou com um homem escolhido por seu pai, ou pode ser por culpa do marido. Talvez a culpa seja dos dois. Eles não têm relações íntimas sinceras. Naquele lar não existe o calor do amor. É um lar vazio. Yerma sai descalça para que o contato com a terra a faça fecunda, segundo reza a crendice popular. Ela é obcecada por ter um filho, casou-se apenas para isso, não concebe o matrimônio como amor ao homem, e Lorca coloca na sua boca toda a poesia. Enquanto Juan, o homem, sente o contrário, vive satisfeito com o amor da mulher e não pensa em ter filhos. A discrepância constitui o nó da obra, e suas raízes encontram-se na Idade Média. A velha conjuradora fala para ela que não amar o marido pode ser a causa de não conceber. Yerma vai à romaria. A velha culpa o marido e lhe propõe ter uma relação íntima com seu filho. 

         A obra conjuga duas ações de fundo: a esterilidade e a infidelidade conjugal. A romaria ou peregrinação, de origem pagã e orgiástico bacântica, responde finalmente ao rito da fertilidade. Como em todas as peças de Lorca, o sentido da honra percorre a obra e está sempre latente e/ou presente. Tema recorrente na literatura clássica espanhola em geral.

         A casa de Bernarda Alba, terceira da trilogia,obra-prima de Lorca  encenada apenas depois de sua morte, menos lírica e de maior dramatismo, mostra o drama das mulheres nos povoados da Espanha, segundo ele mesmo confessou, como um documento fotográfico. Trata-se de uma realidade estilizada e simplificada, encarnada na poesia dramática. De certa forma representa a visão trágica da Espanha. Escrita pouco antes da Guerra Civil parece emanar o sangue que seria derramado no solo da família espanhola. O assunto é a luta entre o princípio de autoridade e o princípio de liberdade encarnado no instinto sexual. Autoridade fundamentada numa moral social negativa, Bernarda apropria-se da moral do povo, da qual se serve como instrumento para impor seu instinto de poder, sua vontade de domínio, inclusive sobre as leis da natureza. A autoridade herdada do marido faz-se intolerável, e seu instinto maternal distorcido converte-se em antimaternal, destruindo suas filhas. Elizalde destaca o fato de que na tragédia lorquiana os homens foram eliminados, mas eles estão presentes no sangue e nas bocas dessas mulheres atormentadas e reprimidas. Maria Josefa, a avó, tem muita força como personagem simbólico importante. Representa a liberdade de expressão. Como está louca, diz o que se lhe passa pela cabeça. Nas filhas de Bernarda prevalecem como regra moral os instintos sexuais. O dramaturgo coloca a ideia do corpo como força poderosa. Suas almas foram subjugadas pelo corpo. O corpo que expressa o desejo sexual. Mas Bernarda mantém suas filhas incomunicáveis com os homens. Toda sua energia é dedicada a anular a vontade de suas filhas e criadas. Bernarda não tem traços femininos, poderia ser perfeitamente representada por um homem.

         Em geral, Lorca recria os costumes do seu povo. Observando suas obsessões literárias, podemos ver os mesmos temas: o sexo e a morte como elementos essenciais de suas obras teatrais e poéticas. Ou, como diz Umbral: talvez sequer se trate desses dois temas, senão, de um terceiro, misterioso e sem nome, como resultante dos dois. Seu livro Lorca, poeta maldito, cuja leitura motivou esta pesquisa, poderia ter tido o título de "Sexo y muerte en García Lorca", como comenta no capítulo 3 (p. 44), mas ele optou pelo primeiro e definitivo título. Então, foi aproveitado para esta apresentação.

         Para encerrar, uma homenagem de Violeta Parra(2), pesquisadora popular, cantora do humano e do divino que, como ele, universalizou a voz de povo e cujo centenário é comemorado neste ano de 2017:

 

Así el mundo quedó en duelo

y está llorando a porfía

por Federico García

con un doliente pañuelo;

no pueden hallar consuelo

las almas con tal hazaña.

¡Qué luto para la España,

qué vergüenza en el planeta

de haber matado a un poeta

nacido de sus entrañas!

 

 

Referências bibliográficas

 

ELIZALDE, Ignacio. Temas y tendencias del teatro actual. Madrid: Editorial Planeta, 1977.

GARCÍA LORCA, Federico. Obras completas. Madrid: Aguilar, 1960.

PÉREZ-LABORDE, Elga. Além do bem o do mal. Federico García Lorca. Revista Universa, v. 6, 3 de outubro de 1998. Brasília: Editora Universa; Universidade Católica de Brasília.

UMBRAL, Francisco. Lorca, poeta maldito. Barcelona: Editorial Bruguera, 1977.

https://www.youtube.com/watch?v=xQ74phe97Fw&sns=em

 

 

Página publicada em outubro de 2017. PORTAL DE POESIA IBERO-AMERICANA. Seção ENSAIOS.  Ano 14, No. 51 (Setembro-Outubro 2017) Brasília, DF. ISSN 2447-1178

 

(1)

Na mitologia grega, Apolo e Dionísio são ambos filhos de Zeus. Apolo é o deus da razão e o racional, enquanto Dionísio é o deus da loucura e do caos. O apolíneo é o lado da razão e do raciocínio lógico. O dionisíaco é o lado do caos e apela para as emoções e os instintos. O conteúdo de todas as grandes tragédias é baseado na tensão criada pela interação entre esses dois.

(2)

Violeta Parra, la gran matriarca de la Nueva Canción chilena, dejó un gran número de canciones inéditas; entre ellas había una serie de canciones que dejó grabadas en París entre 1961 y 1963 y que fueron recopiladas en un álbum póstumo, en 1971, bajo el título Canciones reencontradas en París. Entre ellas se encontraba esta canción, "Rodríguez y Recabarren" o, más conocida con el título de sus posteriores reediciones, "Un río de sangre (corre)". En esta canción, Violeta hace un recorrido a través de un grupo de mártires revolucionarios, como Manuel Rodríguez, héroe de la resistencia independentista chilena; Luis Emilio Recabarren, político chileno considerado el padre del movimiento revolucionario obrero de Chile, y que se suicidó; el guerrillero argentino Ángel Vicente Peñazola"El Chacho"; Emiliano Zapata; el independentista congoleño Patrice Lumumba, cuyo asesinato conmocionó al mundo; y, finalmente, al gran poeta andaluz Federico García Lorca, asesinado, tal día como hoy en 1936, por las fuerzas reaccionarias, en cuya muerte Violeta simboliza la muerte de todo un pueblo. Así era Violeta, como Lorca: tan popular que es universal. Canciones reencontradas en París (Violeta Parra) [1971]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xQ74phe97Fw&sns=em>. Acesso em: 09/03/2017.


 

 

 
 
 
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