SÃO FERNANDO BEIRA-MAR: RELEITURA DA TRADIÇÃO MEDIEVAL NA POÉTICA DE  ANTONIO MIRANDA 
                    
                  Valter Gomes Dias Junior (UFPB) 
   DOUTOR EM LETRAS 
                    
                  IN: Seminário de Estudos Medievais da Paraíba (3 : 2015 : João Pessoa-PB.). Anais do III Seminário de Estudos Medievais da  Paraíba e II Jornada Gênero e Literatura, em 10 e 11 de junho de 2015 /  Organizadora: Ana Cláudia Félix Gualberto.-- João Pessoa: Editora da UFPB,  2015. 385p. ISBN: 978-85-237-1152-8 1.  
                    
                   Introdução 
                           O passado não se distancia completamente  do que é proposto, na contemporaneidade, através das produções artísticas.  Referimo-nos à aproximação existente entre a literatura da Idade Média e a da  Modernidade. É interessante observarmos a adjacência desta para com aquela. Daí  interrogarmos: Que motivos provêm de poetas e prosadores, artistas de maneira  geral, para absorverem e rediscutirem, em suas obras, tendências estéticas de  um longínquo passado? Que características estabelecem o liame entre esses  tempos? Esse diálogo proporciona novidades artístico-literárias no presente?  Dentro dessa perspectiva de mudanças, podemos visualizar o nascimento de outra  categoria literária? A ação do artista da palavra contemporâneo nos condiciona  a todas essas reflexões, quando ele edifica uma escritura cuja intenção  temática é ausente de limites. Com isso, o literato almeja a transformação pelo  viés da modernização. Propomo-nos, através deste estudo, a responder a essas  indagações através de uma leitura de duas canções da obra Cantigas de Escárnio  e Maldizer – São Fernando Beira-Mar (2004), de Antonio Miranda1 (1940 - ). Este  poeta possui contribuições literárias assaz dinâmicas, plurais e  surpreendentes; possibilitando, assim, leituras diversificadas sobre sua  poesia. 
                            No que tange à seleção de poemas da obra  mencionada, vemos, a partir do título, a existência de referências ao estilo  das Cantigas de Escárnio e Maldizer do medievo. As cantigas são modalidades  poéticas oriundas da fusão entre a poesia e a canção, por isso seu caráter  poético e musical. Conforme Massaud Moisés (1969, p. 25), “a cantiga de  escárnio conteria sátira indireta, realizada por intermédio do sarcasmo, a  zombaria e uma linguagem de sentido ambíguo”. Já “a cantiga de maldizer encerraria  sátira direta, agressiva, contundente, e lançaria mão duma linguagem objetiva  sem disfarce algum”, (Idem, ibidem) onde o eu poético pode também utilizar  vocabulários de baixo de calão. Esses critérios estão bem inseridos nas linhas  poéticas de São Fernando Beira-Mar (2004). Todavia, a relação existente entre esse estilo e essa obra mirandiana  não sugere exclusivamente a recriação das cantigas medievais para este século  XXI.  
                           O  poeta hauriu as características intrínsecas dessas canções e compôs uma releitura  desses poemas inserindo-a em nossa modernidade através do gênero da Antipoesia.  Elga Pérez-Laborde, em seu estudo A poesia sem limites de Antonio Miranda  (2007), aponta para esta mesma ligação entre esses vieses poéticos: A imagem do  Brasil emerge mais crua e violenta em São Fernando Beira-Mar, o poemário que  identificou genericamente como “Cantigas de escárnio e maldizer”, remetendo-se  ao medievo e ao mesmo tempo à crônica policial misturada aos aconteceres  políticos, de onde também pode ser alimentada a antipoesia, mostrando um  pathos, um quadro patético, das neurotizadas metrópoles de América. Assim nos  leva do riso aos prantos (2007, p. 35. Grifos do autor). A citação recupera a  postura ácida das Cantigas de Escárnio e Maldizer no momento em que a autora  interpreta o poemário mencionado apontando um Brasil mais violento, fazendo uso  de uma linguagem mais crua, através da qual a atuação dos políticos é  severamente criticada, ironizada e, mormente, desmascarada. Com isso, a  antipoesia é construída apontando as problemáticas do quotidiano da mesma forma  como as crônicas policiais pontuadas no exposto. O referente estilo poético é  bastante condizente para retratar ações geradoras de um universo assaz  conflituoso. Esse contexto desvenda o ambiente patológico que a autora pontua.  As verdades, nessa obra, são fortemente denunciadas sem serem esbarradas em  restrições.  
                  A fim de explorarmos mais as  estruturas que fundamentam o gênero da antipoesia, abriremos um tópico sobre o  mesmo.  
                  1 Antônio Lisboa Carvalho de Miranda é  maranhense, nascido em 05 de agosto de 1940, poeta, prosador, dramaturgo e  escultor. É membro da Academia de Letras do Distrito Federal. É professor  aposentado da Universidade de Brasília, com Doutorado em Ciência da Comunicação  pela USP (1987), Mestrado em Biblioteconomia na Lougborough University of  Technology – LUT – Inglaterra (1975). Sua formação em Bibliotecologia é da  Universidad Central de Venezuela, UCV, Venezuela (1970). Em 26 de novembro de  2014, foi eleito Professor Emérito da Universidade de Brasília. 372  
                  A Antipoesia na Contemporaneidade  Literária Bastantes foram as inovações que emergiram no cenário artístico  durante o século XX. As expectativas de mudanças armazenadas sobre esse período  refletem o desejo de busca dos artistas por modernizar, lançar propostas que  viessem a explorar e retratar o mundo em todas as suas diversidades.  Vivenciando esse mesmo comportamento, o poeta chileno Nicanor Parra (1914 - )  publicou Poemas y Antipoemas (1954) o  qual, celeremente, cativou a opinião da crítica especializada e também de  renomados poetas contemporâneos como Pablo Neruda. Através desse livro, a  antipoesia, enquanto nova poética moderna, adentrou o cenário literário  latino-americano. Em seu estudo crítico  Para una poética de la (anti)poesía (1988), René de Costa destaca: “Poemas y antipoemas, al publicarse en  1954,revolucionará la poesía, la  manera de poetizar en todo el mundo hispanoparlante. Tanto, que el propio  Neruda adoptará el tono y los procedimientos de la antipoesía en Estravagario (1958)”2 (2011, p. 14. Os  negritos são do autor). O exposto contextualiza nossas asserções sobre quão  cativante foi e ainda é a antipoesia no cenário da Literatura latino-americana,  principalmente, entre grandes poetas consagrados. É devido a Nicanor Parra toda  a técnica de teorização e argumentação sobre essa modalidade artística, mas as  características inerentes a esse estilo já ocorriam na poesia. 
                   Elga Pérez-Laborde assevera: “é provável que a  antipoesia tenha existido sempre, desde que bufões e trovadores, repentistas  medievais, contavam uma história cantada em versos espontâneos, para informar e  divertir” (2004, p. 131). A afirmação, além de defender o surgimento da  antipoesia num período bem anterior a 1954, interliga essa prática artística às  produções medievais. Isso proporciona também mais um entendimento da releitura  que Antonio Miranda fez da obra, em estudo neste trabalho, com as cantigas de  escárnio e maldizer. Ambos estilos poéticos aproximam-se por serem  fundamentados na contradição e na satirização, apontando, dessa forma, a  dessacralização de “comportamentos” e “regras”. Todavia, a antipoesia não deixa  de ser uma novidade na Literatura Latino-amerciana, uma vez que conceitos foram  estabelecidos sobre a mesma. “La antipoesía distorsiona la forma interior de  géneros históricamente bien definidos, destruyendo su encanto y belleza  mediante la presencia degradada de lo real, un temple agresivo y neurótico y un  yo desrealizado, múltiple y contradictorio” 3 (CARRASCO, 1999, p. 30).  Depreendemos que a antipoesia parte inicialmente do discurso de negação. Ela  rompe com os padrões bem comportados e sistematicamente organizados da lírica  tradicional. 
                   Se a finalidade é inovar, então, ela não se  adequará a pudores ou a um vernáculo cujo uso aponta para a sofisticação. O eu  deste sujeito antipoético apresenta-se contraditório, múltiplo e desrealizado  devido às complexidades e problemáticas que atingem o mundo onde o indivíduo  está inserido. O recém-referenciado crítico aprofunda mais suas percepções  sobre a antipoesia elencando os traços constitutivos que a compõem: “el  lenguaje coloquial, la oralidad, la narratividad, la parodia, el prosaísmo, la  despersonalización del hablante, la ironía, el humor negro, los recursos de la  publicidad, los graffiti, el objet trouvé, el collage, la referencia a lo  cotidiano, el hablar popular” 4 (Idem, p. 29. Os negritos são do autor). Esse  perfil delineia bem a ruptura que os antipoetas declaram ao lirismo polido.  Essas características foram hauridas por Antonio Miranda em muitos de seus  livros; mas, para este momento, relacioná-las-emos à obra São Fernando Beira Mar (2004). Leitura dos Antipoemas de Antonio  Miranda Os versos de Cantigas de Escárnio e Maldizer – São Fernando Beira Mar  (2004) receberam críticas de apreciação e de arguta análise. Isso demonstra o  impacto que a mencionada obra literária causou entre os críticos de poesia e  também alguns artistas da palavra. Dentre eles, citamos a contribuição do  diplomata, poeta e dramaturgo A. B. Mendes Cadaxa:  
                  2 Tradução Livre: “Poemas e  antipoemas, ao publicar-se em 1954, revolucionará a poesia, a maneira de  poetizar em todo o mundo hispano-falante. Tanto que o próprio Neruda adotará o  tom e os procedimentos da antipoesia em Estravagario (1958)” (COSTA, 2011, p.  14. Grifos do autor).  
                  3 Tradução Livre: “A antipoesia  distorce a forma interior de gêneros historicamente bem definidos, destruindo  seu encanto e beleza mediante a presença degradada do real, um temperamento  agressivo e neurótico e um eu não realizado, múltiplo e contraditório”  (CARRASCO, 1999, p. 30).  
                  4 Idem: “a linguagem coloquial, a  oralidade, a narratividade, a paródia, o prosaísmo, a despersonalização do  falante, a ironia, o humor negro, os recursos da publicidade, os grafites, o  objeto encontrado, a colagem, a referência ao cotidiano e o falar popular”  (Idem, p. 29. Grifos do autor). “São Fernando Beira-Mar”, tremendo libelo sobre  o Brasil de hoje, um verdadeiro círculo de Dante, onde pululam todas as  podridões que nos cercam. Permito-me sugerir o seu envio a membros selecionados  do Executivo, Legislativo e Judiciário. Quem sabe um deputado ou senador terá  coragem de lê-lo em plenário e pedir sua inserção nos Anais do Congresso  (CADAXA apud MIRANDA, 2004, p. 15). O exposto inicia comparando o texto  mirandiano à primeira parte de A Divina  Comédia (1472), de Dante Alighieri; isto é, o Inferno, cuja divisão se dá  em nove círculos. Em ambas as obras, as podridões que circunvizinham e  comportam os seres humanos são desmascaradas. O crítico sugere o envio dessas  linhas antipoéticas a seletivos membros dos três poderes governamentais para  justamente colocá-los frente aos seus aviltamentos. A leitura pública desse  material mais a possibilidade da inserção do mesmo nos Anais do Congresso  Nacional documentariam os graves erros ocorridos neste espaço. O comentário, no  todo, é tão crítico e satírico quanto o próprio texto de São Fernando Beira-Mar (2004). A fim de visualizarmos esses  critérios através dos antipoemas, selecionamos duas das sete cantigas contidas  nesta obra. Encetemos pela de número três: 
                   Oh náusea, oh nojo! Sangue mais que sangue,  vômito mais que vômito. /  O senhor  delegado reclama a sua parte. / Fezes mais que fezes! O senhor deputado rende a  sua homenagem. / As covas revelam os seus segredos /  os lixos desbordam e as fossas abertas /  mostram os seus mortos putrefactos. / O  senhor vigário o líder comunitário o dirigente sindical. /  As nuvens seguem indiferentes as chuvas caem  ácidas / os valões transbordam águas estagnadas / os pântanos poluídos  pestilentes. / Anjos raivosos estupram monjas e drag-queens eufóricos /  comemoram o carnaval fora de época. / Reivindicam-se terras públicas enquanto  deputados retóricos / aumentam os impostos e os próprios salários. / Estandartes  exibem São Fernando de camiseta e bermuda / na procissão dos deserdados.  / Por isso é feriado, dia santo.  
                  (MIRANDA, 2004, p. 6-7. Grifos do  autor)  
                  A antipoesia, neste texto,  manifesta-se inicialmente no plano visual. A forma não se vincula ao padrão  estético de um poema tradicional. As onze estrofes não estão definidas pelo  mesmo número de linhas poéticas; elas principiam por monósticos e terminam com  quartetos e todas constituídas de versos livres. Esse fato se coaduna à  mensagem do texto pelo fato de a voz enunciadora proferir livremente aquilo que  pensa e vê. A linguagem destituída de pudor e com fortes expressões de  repugnância interliga-nos ao coloquialismo e a oralidade que são típicos da  antipoesia. A referência às ações de sujeitos diversos, devido à presença  constante de verbos, faz emergir o gênero da narração, o qual se funde à  poesia. Postura essa comum na edificação da antipoesia.  
                  O eu antipoético relata comportamentos  e feitos, os quais apontam para a sua insatisfação e seu estado desrealizado e  contraditório diante dos fatos citados. Há uma isotopia de abjeção que perpassa  todo o poema. Erige-se uma simbolicidade com termos fortes a fim de gerar  mal-estar e indignação no leitor. O primeiro verso, ao ser findado por uma  exclamação, aguçou as qualidades sígnicas dos substantivos “náusea” e “nojo” a  fim de gerar uma indisposição com a situação. Isso vem, logo em seguida, a  proporcionar o sangue e o vômito. Esses dois signos, através da figura  sintática da anáfora, realçam a ideia de nojo e de abjeção que está apenas  começando, porque “o senhor delegado reclama a sua parte”, o que é metáfora de  corrupção, e a mesma é também iconicamente metaforizada pela quarta estrofe  “fezes mais que fezes!”. Seria como se o poder legal dessa nação não passasse  de excremento, de estados deformantes e abjetos. O primeiro terceto exemplifica  essa podridão.  
                  A iconicidade prosopopeica do inicial  verso dessa estrofe nos apresenta o grau de violência a que se pode acometer o  outro: “As covas revelam os seus segredos”. Hipoteticamente, é possível  imaginarmos o que de tão secreto elas ocultavam. A frase “os lixos desbordam”  não se trata apenas de uma referência ao excesso de sujeira, mas também a quem  vergonhosamente a promove ao ponto de tornar-se tão visível e “as fossas  abertas”, “mostram os seus mortos putrefactos” sugerem interessantes leituras.  Na primeira sentença sígnica, a palavra “aberta” propõe revelação, o  desmascaramento daquilo que se encontrava abscôndito e por tratar-se de uma  “fossa” a noção de tamanho ganha uma proporção significativa, porque, ao ser  descerrada, a surpresa torna-se aparente e, necessariamente, gerando um mal-estar  com os “mortos putrefactos”.  
                  Quem foram os autores destes atos?  Quem proporcionou intensa podridão? Quão natural é a revelação desse contexto  pelos telejornais e também pelo jornal impresso! Hipoteticamente, os sujeitos  citados, na sétima estrofe, posicionar-se-iam como as vítimas e como os  sinalizadores do espaço onde os crimes ocorreriam: a igreja, a comunidade  pública e o sindicato. Já é notório sabermos que grandes criminosos ocupam  copiosos espaços de liderança, sobretudo, no governo. O eu antipoético joga com  as palavras e com as ideias de forma a identificarmos a linguagem  caleidoscópica mirandiana. Da sétima à oitava estrofes, há um deslocamento de  personagens. A voz poética animiza a natureza, ao mencionar que “as nuvens  seguem indiferentes”, e mostra um quadro caótico em que o espaço brasileiro se  transformou: “os pântanos poluídos pestilentes”.  
                  A imagem do estupro relatada na nona  estrofe é altamente marcante, por tratar-se de uma violência forte e  inesquecível. É o que a nação brasileira sofre, e deduzimos que não é apenas  fisicamente, porém, moralmente também. Os vocábulos “anjos” e “monjas” são  seres que se aproximam por habitarem o mesmo universo religioso. É natural, no  universo católico religioso que estas, já que são muito devotas, possuam uma  relação de dependência com aqueles, que são seres divinos. Além disso, os anjos  sempre foram considerados guardiões celestiais, por isso ser fortemente  chocante o ato de eles estuprarem as monjas. Entendemos que a presença de um  vínculo ou de uma proximidade possibilita a agressão. A relação de dependência  de um para com o outro facilita a dominação e a violência, em alguns momentos,  devido ao agressor conhecer a vítima. E mesmo que não haja adjacência entre  ambos, haverá, com certeza, uma relação de poder onde o agressor, por ser mais  forte, controla, manipula e violenta. 
                   Na penúltima estrofe, vemos um exemplo desse  desmando arbitrário. Deputados retóricos, ou seja, aqueles detentores de um  discurso bonito, mas de ações feias, aumentam os impostos da população por ter  domínio sobre ela e, consequentemente, os mesmos avultam seus salários  beneficiando-se do dinheiro público. O jogo de antíteses estabelecido entre  explorador e explorado deste quarteto apresenta o universo injusto, desleal e  desumano sob o qual a população está subordinada. Para ampliar bem mais essa  realidade, é exibido São Fernando como ícone da transgressão e da ilegalidade.  Há uma abdutiva analogia entre este e Fernandinho Beira-Mar, um dos maiores  traficantes de armas e drogas da América Latina. O fato de ele estar sendo  apresentado sob estandartes leva-nos a sugerir que a ilicitude ocupa uma  posição de destaque. Esse perfil de ilegalidade será sentido também nas  cantigas ulteriores. Observemos como ele se materializa através da sexta  canção: 
                   É a gosma ulcerante, a saliva viscosa, / é o  escarro ácido, o catarro curtido. / O ministro compra novas viaturas e há  suspeita de super-faturamento. / É o caminho viciado, a norma paralisante, / é  a lei invocada para deter a própria lei. / O ministro forma um grupo de  trabalho para discutir matéria já decidida./  É o subterfúgio, o sub-reptício, o simulacro,/   é a procrastinação, o ato falho, arrepio  da lei. / Comissões de inquérito, auditorias surdas e mudas, / grupos-tarefa,  consultorias./  O ministro pode ser  substituído / está com prazo de validade vencido.  
                  (MIRANDA, 2004, p. 12)  
                  As sete estrofes deste antipoema dão  continuidade aos desmascaramentos das improbidades ocorridas no âmbito  legislativo. A anáfora do verbo ser em terceira pessoa do singular, recorrente  em mais de uma estância, elenca orações assindéticas que demarcam o que é  presenciado pelo relator. Mais uma vez a isotopia de abjeção manifesta-se em  todo o texto, expondo a indignação daquele que expõe a problemática. Os signos  gosma, saliva, escarro e catarro pertencem a um universo semântico propulsores  de repugnância e quando estes termos são adjetivados, respectivamente, pelos  vocábulos ulcerante, viscosa, ácido e curtido, ocorre uma intensificação do  estado de repulsa sentido por quem profere e lê esse contexto. Essas sentenças  posicionam-se como iconicidades metafóricas da ilegalidade denunciada. Elas  podem referir-se anaforicamente ao conteúdo criticado nas cantigas anteriores e  reportar-se cataforicamente aos versos posteriores. Esse vocabulário é bem  próprio da natureza da antipoesia. Nessas linhas, percebemos que essas imagens  de aversão ganham um destaque com a recorrência da aliteração do fonema  fricativo /s/ materializado nas consoantes “s” e “c” das palavras “gosma”,  “ulcerante”, “saliva”, “viscosa”, “escarro” e “ácido”. 
                   Os versos “O ministro compra novas viaturas”,  “e há suspeita de super-faturamento” é uma denúncia de que a nação é regida por  maus governantes. Essa realidade faz urgir mudanças para que as suspeitas  tornem-se fatos provados. Todavia, consoante a voz enunciadora, as modificações  estão difíceis: “É o caminho viciado, a norma paralisante,”, “é a lei invocada  para deter a própria lei.”, “O ministro forma um grupo de trabalho”, “para  discutir matéria já decidida.”. Quão conflitante é este universo! A corrupção,  a ilegalidade e a imoralidade viraram um vício; pior, uma lei natural, onde se  é preciso invocar a lei para deter a mesma, a qual paralisa e fragiliza cada  vez mais vítimas desse sistema. Percebamos que o signo “caminho” designa  orientação. Hipoteticamente, a extensão certa e esperada a ser percorrida, mas  no caso deste antipoema, ele gera desorientação, problematização, sérias  consequências àqueles que sofrem ao deparar-se com esse percurso viciado. Esses  versos serão metaforizados pelas duas linhas antipoéticas seguintes: “É o  subterfúgio, o sub-reptício, o simulacro,”, “é a procrastinação, o ato falho, o  arrepio da lei.”.  
                  Vemos que esses signos verbais geram a  isotopia de ilicitude discutida e exposta no antipoema. O subterfúgio é a  estratégia dissimulada, a escapatória; o sub-reptício é a clandestinidade, o  uso dos meios ilícitos; o simulacro é a imitação, o fingimento, o embuste. A  procrastinação é o adiamento. O que está sendo prolongado? Certamente, o  emprego da correção gerando o empenho delongado da amoralidade, isto é, a  ausência da aplicação da lei, dos padrões realmente corretos. E a ilegalidade  gera, possivelmente, o ato falho, o arrepio da lei que persistem ainda na  contemporaneidade. Esteticamente, a ideia de evasão proposta nessa estrofe  une-se à fuga do ar promovida pela aliteração da fricção do fonema /s/  materializada nas consoantes “s”, “c” e “ç” dos vocábulos “suterfúgio”,  “sub-reptício”, “simulacro” e “procrastinação”. Que outros comportamentos são  delatados neste antipoema? “Comissões de inquérito, auditorias surdas”, “e  mudas, grupos-tarefa, consultorias.”, isto é, elegem-se investigadores que nada  de concreto irão averiguar, uma vez que as auditorias e consultorias contratadas  não passarão de um subterfúgio para mostrar à população que algo é feito para  se contrapor às ações ilícitas geradas pelos governantes. Então, ante essa  problemática, a voz enunciadora possui um olhar para o ministro destituindo-o  de sua condição humana para metaforicamente coisificá-lo no momento em que  profere “O ministro pode ser substituído”, “está com prazo de validade  vencido.”. Essa fala também surge como sugestão de mudança para um porvir  melhor. Realmente, essa é a postura a ser tomada, visando, com isso, à  correção.  
                  Diante de toda essa arguição,  depreendemos que a obra Cantigas de Escárnio e Maldizer – São Fernando  Beira-Mar (2004) é uma composição poética que possui um olhar crítico, social e  político sobre a realidade brasileira. E tal visão, ao ser edificada sob as  características da antipoesia, forneceu ao texto um caráter esteticamente  moderno, que é um caminho importante a ser trilhado quando se almeja construir  Literatura Contemporânea. Enfim, essas linhas antipoéticas mais toda a produção  literária de Antonio Miranda têm muito a contribuir com os estudos sobre  Literatura Brasileira e, principalmente, posicionam-se como mais uma proposta  de conceber arte moderna dentro da diversidade do cenário literário  latino-americano. 
                    
                   Referências  
                  CARRASCO,  Iván. Para leer a Nicanor Parra. Santiago: Ediciones  
           Universidad  Nacional Andrés Bello, 1999.  
                    COSTA, René de. Para una Poética de la anti(poesía). In: PARRA, Nicanor.  
           Poemas y antipoemas. 9. ed., Madrid:  CATEDRA Letras Hispánicas,  
           2011.  
                    MIRANDA, Antonio. São Fernando Beira-Mar.  Brasília: Thesaurus, 2004.  
           (Cantigas  de escárnio e maldizer) 
                    MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa  através dos textos. 2. ed., São  
           Paulo:  Cultrix, 1969.  
                    PÉREZ-LABORDE, Elga. A Questão Teórica do  Esperpento e sua Projeção  
           Estética:  Variações Esperpênticas da Idade Média ao Século XXI.  
           (Tese  de Doutorado Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em  
           Literatura).  Brasília, 2004. 
   ____________. A poesia sem limites de Antonio Miranda. In: MIRANDA. Antonio.  Poesia no PortaRetrato. Brasília: Thesaurus, 2007, p. 3-37. 
                    
                    
                  Página publicada em outubro de 2016
                
  |