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RUY ESPINHEIRA FILHO: PAIXÃO E PRAZER DA POESIA

 

 

por FLORISVALDO MATTOS

 

* Resenha do livro Sob o céu de Samarcanda: poemas, de Ruy Espinheira Filho. (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil/Fundação Biblioteca Nacional, 2009.)

 

 

Em um elegante e alusivo texto que lhe serve de "orelha", Marco Lucchesi sintetiza e nos apresenta Sob o céu de Samarcanda, o novo livro de Ruy Espinheira Filho - "o corpo transparente da palavra assumida numa geografia aberta" reunindo nada menos que 73 poemas, sobre os quais não seria demasiado dizer, mesmo com risco de pleonasmo, que, mais do que se mantém, prossegue o autor na "linha coerente e ascendente" que deu a Alexei Bueno o direito de considerá-lo, desde o seu primeiro livro, Heléboro (*1974), "um dos maiores poetas líricos brasileiros da segunda metade do século XX".

 

Nada disso me surpreende, nem a evocação de uma cidade remota, onde mergulham energias e alquimias líricas que só a memória de um artista verdadeiro restaura, seja a Samarcanda visitada por Ornar Khayyam, ao luziluzente embalo de sonho e vinho, fosse "a cidade santa de Bizâncio", para onde velejava Yeats, mesmo que não fosse mais terra para ancião, mas convicto de que alguém, ao despertar, podería ouvir o seu canto "do que passou, ou passa, ou há de vir".

Mas, Ruy Espinheira Filho mal completa 67 iluminados anos e, com este, soma uma dezena e meia de livros de poesia publicados, com o espírito aceso e aberto à vida, ao tempo, aos sonhos e a uma irrefreável força de criar, que o autoriza a professar, e legitimamente proclamar, como o fez certa feita, a sua condição de escritor profissional: "Literatura é, para mim, vida [...] tudo que toca a minha literatura toca a minha vida, pois é dela, da minha vida, que é feita a minha literatura." Enfim, um profissional de literatura que, embora sujeito à circunstância da luta pela vida, entrega-se à atividade literária com ardor e fé.

 

Nada disso também me surpreende, desde que, de muito, acompanho a sucessividade ascendente desse criador contumaz, que o faz merecedor de apreciável fortuna crítica, a começar do seu primeiro livro, quando Antônio Brasileiro já o tinha como seu poeta preferido, "após Drummond e Pessoa", o que, lógico, o põe entre grandes da primeira metade do século passado. Na realidade, desde As sombras luminosas, com que empalmou o Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Souza (1981), não lhe têm faltado credenciados julgamentos a cada livro que publica. Logo em seguida a esta láurea, Antônio Carlos de Brito, o saudoso Cacaso (1944-1989). o apontava como uma referência importante na renovação que então se vinha processando no lirismo brasileiro, confirmada a cada obra e a cada mostra de eficaz e requintada técnica. E se deve a Ivan Junqueira, autor do melhor ensaio sobre sua poesia, uma frase lapidar que envaidecería poeta de qualquer latitude, ao confessar, após a leitura de seu Julgado do vento (1979), não ter encontrado ali "um único poema que se possa quahfíear sequer de frágil".

 

É justamente este consagrado poeta e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, que dedica um penetrante ensaio (0 fio de Dédalo. Rio de Janeiro: Record, 1998) de análise de toda a poesia de Ruy Espinheira Filho, até então, em que a define como portadora, em sua vertente primeira e mais funda, de uma espécie de lirismo elegíaco, pela evidente atuação representada por uma "obsessiva e confessa vocação do pretérito", a lhe marcar o ritmo poemático, sem lhe negar, a par de uma severa competência formal e confortável governo das estruturas rítmicas, a funda coerência interna de toda sua obra.

Aí se encontra a pedra de toque de quase toda a poesia de Ruy Espinheira Filho, o papel que nela desempenham a memória e o tempo em seu trajeto criativo. A meu ver, isto se deve a uma poesia que fala do homem e ao homem se destina. Vinda do fundo da infância e da adolescência, em cidades vividas e sentidas, essa arqueologia da memória configura, refigura e transfigura experiências que projetam e conformam, em sonho ou vigília, a essência da vida do poeta. Sempre profundo, o rio heraclitiano em que se banha lhe franqueia margens ao marulho de suas águas jamais tranquilas.

 

Como neste vigoroso e latejante Sol o céu de Samarcanda, onde já de iníck o aprendizado perplexo de si mesmo se Como neste vigoroso e latejante Sol o céu de Samarcanda, onde já de iníck o aprendizado perplexo de si mesmo se insinua pela displicente presença de un passarinho - o bem-te-vi, cujo trinado lhe ensina de que se compõe o dia, conquanto, alerta, ele próprio suspeite: "se o tempo passar um pouco, / nada mais que um pouco, logo / não estarei mais aqui" ("Canção do efêmero com passarinho e brisa").

 

Essa latente pulsação do tempo age como um implacável dínamo a mover as engrenagens da memória, como forma de ver, sentir e interpretar o mundo com todas as inexoráveis potencialidades do ser, do ser homem estupefato com o transcorrer das horas, dias e anos, e com coisas e pessoas, que viveram e morreram, mas que permanecem na recordação. E é a palavra o motor que faz com que se mova esse cosmo vital.

 

Borges remonta a uma afirmativa de Oscar Wilde, segundo o qual "um homem* em cada instante de sua vida, é tudo o que foi e tudo o que será, todo seu passado e todo seu futuro". Evocando a poesia de Ruy Espinheira Filho, digo eu, se válido esse ditame, a persistência da memória avulta-se como fator dominante sobre a realidade. No entanto, por maior festa e alegria que insinue o ato de recordar, não há como não perceber nesses trânsitos do existir um travo de melancolia, ainda mais quando se impõem as regulagens sensíveis da maturidade. E Sob o céu de Samarcanda é obra de um lirismo maduro, tanto no pensar quanto no fazer.

 

Paixão e prazer norteiam a reflexão e a artesania verbal deste poeta; ambas juntam, num só amálgama, amor e consciência de um mesmo agir. Ele mesmo, o poeta, já o dissera judiciosamente, recordando Mário de Andrade, que "a arte vai além das técnicas empregadas, é obra do artista, arte feita sempre com "carne, sangue, espírito e tumulto de amor". Eu mesmo, sem possuir as agudezas críticas dos que o têm enaltecido, o qualifiquei como um mestre em transformar o cotidiano dos homens em matéria de eternidade e palavras em realidade. Todos reconhecem e exaltam a sua excelência no manejo das palavras e na construção de um estilo próprio.

 

Apreciando sua Elegia de agosto e outros poemas (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005), André Seffrin analisa percucientemente e exalta o seu processo criativo, a propósito de seus sonetos.

 

"O que é o poema para este autor? É principalmente uma iluminação, uma epifania, uma abertura da temporalidade por meio da palavra, um túnel que interliga tempos." Tal manejo de forma também fascjnou esse exigente crítico, como uma exuberante prova de naturalidade, a mesma que percorre toda a gama construtiva da poesia de Ruy Espinheira Filho. "Tudo nele é matéria, e os seus jogos inusitados, a sua habilidade técnica, não procuram apenas atrair, mas conquistar. Conquistam e magnetizam o caminho do leitor", assevera Seffrin, ao defrontar-se nessa instrumentação lúcida com poemas desnudados de pompas e "adereços farfalhantes", longe de acessórios e eventuais adornos.

 

Esta forma natural de expressar o pensamento, sem logicamente prescindir das habilidades técnicas, fez Ivan Junqueira reportar-se à célebre definição de poesia exortada por William Wordsworth, que via no ato poético "o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos, que tem sua origem na emoção recolhida num estado de tranquilidade". Ruy é, no fundo, ideário como uma forma de libertação da alma. Assim Junqueira o vê como que enlaçado às reminiscências de sua infância e adolescência - todas ainda talvez mourejando nos espaços e tempos das duas cidades que dormitam em seu íntimo, Poções e Jequié, no sudeste baiano -, a sentir e criar, como Wordsworth, "emotion recollected in tranquility", aí provavelmente flagrando "o segredo, ou o sortilégio, da grande poesia, aquela em que fundo e forma são uma coisa só".

 

O que é, de alguma maneira, para usar uma cogitação estética de Anderson Braga Horta, pensar a poesia como a arte de criar ou de captar a beleza por meio da palavra, expressada numa estrutura verbal facilmente decifrável, como o faz Ruy Espinheira Filho. Sabe- se que só a emoção permite a ocorrência de tal fenômeno, quando o poeta intencionalmente busca idéias para suas palavras, em associação com os ritmos que elege - seus singulares atributos de tradutor do discurso cotidiano, com isso fazendo renascer e reconhecer- se a si próprio, como ensina Paul Valéry, tratando da linguagem poética em estudo sobre a lírica de Virgílio (lar ia tio ns sur les Bucoliques, 1944).

 

Consciência idêntica se manifesta nos versos com que Espinheira ordena este seu Sob o céu de Samarcanda, onde não se encontram, repetindo a observação de Ivan Junqueira, rastros de fragilidade artesanal, mesmo na lúdica experiência com a poesia de cordel, narrando, em  quadras de redondilha, um drama rural que não faria feio em sessões de repente de qualquer feira do interior do Nordeste ("Romance do Sapo Seco: uma história de assombros"), de que não se ausenta a agilidade da narrativa no encadeamento rítmico, a confundir-se com os trejeitos que conduzem ao desfecho de uma bem imaginada tragicomédia criminal.

 

Neste livro, todos os poemas praticamente cumprem o papel luminar de transmitir e despertar emoção em quem os leia, pela naturalidade com que o poeta transita por variadas estruturas rítmicas, sejam versos medidos ou não, formas curtas ou decassilábicas, ou até alexandrinos, reafirmando entre outras habilidades a de sonetista, que levou André Seffrin a lhe atribuir o poder de nos colocar "novamente no esplendor do gênero", sempre um desafio a quem a ele se aventure. Neste item, eu próprio o emparelho com o melhor Vinicius de Moraes, enredado nas contendas do amor ou mesmo quando encara e decifra tramas do labirinto existencial.

 

E se facilmente todos projetam estados emocionais, destaco alguns que mais de perto tocam a minha sensibilidade, desde os que persistem na recorrência de temas em que subsistem poderosamente a memória, os sonhos e lugares percorridos em tempos de infância e adolescência, aos que imprimem força mítica na evocação de personagens e geografias de passados próximos ou distantes. Seja quando maneja em tranquila transparência lírica a técnica do soneto, como em "Soneto de uma luz" ("Foi ali que morri, naquele dia./ Lembro que estavas, como sempre, bela,/ na mesma luz de ti, cálida, aquela/ que me acordou do que me adormecia/ a vida. [...]".

 

Seja quando persiste em reincidências temáticas, e a memória assume foros de metalinguagem em proposta de subjetiva autodefinição, como em "O que somos", tomando o verso curto (redondilha maior) como instrumento, em dísticos ("Críticos dizem do poeta:/ um lavrador de nós mesmos, recordamos // nosso enredo nas batalhas./ as bandeiras, as mortalhas, // as trevas, as claridades,/ os olvidos, as saudades... [...]").

Ou na fluência do rio existencial, heraclitiano sempre, em face a um duro escrutínio de vertiginoso passar do tempo, porém, ante o descer da "noite absoluta", reacende-se, para a vida logo revigorada, a "alma nova", que lhe desvenda outro amanhecer, como no "Soneto de velhice e almas", que vale transcrever de corpo inteiro:

 

Também no corpo, sim. Mas sobretudo

é na alma que me sinto envelhecer.
          Ouço-a cantar canções de adormecer
          e me parece que, por fim, já tudo

 

está cumprido. Em breve serei mudo,
          e surdo e cego... Todo amanhecer
          se foi. Não há futuros. Vai descer
          logo a noite absoluta sobre tudo.

 

Mas, felizmente, a alma que me fala
          não é a única no meu enredo.
          Visto-me de outra, a anterior se cala.

 

E, de alma nova, sou diverso, ledo,
          ouvindo a voz serena que me fala
          que para adormecer ainda é cedo.

 

Aí, o que se delineava senda de amargura e fatalidade de repente ressumbra como potência de claridade, em novo despertar para a vida.

 

Há outro poema que se transluz em hino à soberania da emoção. É quando abruptamente se põe a deslindar ou vislumbrar, em clave de sutil e comiserada crítica, o outro lado da poética de João Cabral de Melo Neto, arrancando-o do avesso da construção racional que atravessa o mundo refletido em seu frio espelho. Este poema é a denúncia, em tom de sincero lamento, de uma poética esterilizadora da expressão verbal artística, que a corrói até lhe dar uma feição de óssea geometria. E tudo isso expondo o contrário da natureza íntima do poeta, no caso João Cabral, como entende Ruy Espin heira Filho nos nove quartetos em redondilha de "0 avesso e o espesso", onde começa sentenciando com incontido amargor:

Desconforta-me o poeta
escrever em tom avesso
à vida — dizendo o sangue
ser, mais do que o sonho, espesso.

Sucedeu que preferira
pedras, coisas, linha reta,
o que o levara a exilar
de si um outro poeta,

o seu avesso: um do verso
sem pudor de ser poesia
feita de coisas do homem
além da pele do dia.

Confrontado com esta opção-exílio em que, na sua visão, se perdera o autor de 0 engenheiro (1945), Psicologia da composição (1947) e 0 cão sem plumas (1950) - obras que mais refletem a marca racionalista da poética do pernambucano -, de renúncia à emoção e ao sonho, em favor de uma espécie de mineralização do mundo real, distante da vida, em que "o processo de exigência formal é levado ao ápice por uma lógica implacável", onde "a forma chega a converter-se em matéria", obrigando o leitor a defrontar-se com uma poesia da poesia, dominada pela técnica poética, como assinalam Ángel Crespo e Pilar Gómez Bedate (Realidad y forma en la poesia de Cabral de Melo, Madri, 1962), com versos lapidares, mas sentidos, Espinheira Filho deplora que ninguém tenha vindo "para romper esse espesso/ em que se fechava o poeta/ nesse mundo pelo avesso".

 

Ou seja, como a evocar a sólida crença de Calderón de La Barca ou Jorge Luis Borges na prodigiosa força dos sonhos:

 

Para ensinar-lhe que o sonho
          é que faz o sangue espesso,
          e a pedra, e a coisa, e a lâmina,
          e de tudo isso o avesso;

 

que nada há mais do que o sonho,
          até mesmo em seu avesso,
          pois tudo é um sonho num sonho
          que sonha - sem fim, de espesso —

 

sonhos do Mundo e de Vida,
          e o espesso mais espesso
          em que - vastos, abraçados
          — sonham Deus e Seu Avesso.

 

Não há confissão mais cabal e lídima por uma opção estética.

 

Tocam-me também o íntimo na obra poemas que evocam personagens, lugares e cenários de épocas passadas, mesmo que transpirem a laboriosa quietude de uma biblioteca ou a plácida textura das páginas de um livro, como a recuperar signos remotos, que o poeta elege como lanternas para clarear sendas à poesia dentro de noite vasta; ou sóis, em paraísos de manhãs e oásis. Nesta moldura se encaixa o poema que dá nome ao livro, "Sob o céu de Samarcanda", que, em cenário de sonho e deleite, abre a Omar Khayyam as portas de uma antiga cidade do Uzbequistão, erguida no século V, onde se diz estaria enterrado Tamerlão (1336-1405), herdeiro de Gengis Khan. O autor reconhece e ouve o poeta, "embora/ nunca o houvesse visto antes", tampouco a invocada urbe: "O céu, sob o qual falava,/ cintilante, só podia/ ser o céu de Samarcanda [...]".

 

Ali ouviu o poeta do Rubayat, sem nada entender, porém, "de sua densa algaravia", ficou-lhe a saudade "daquele sagrado instante/ e a esperança de que o mundo/ dos sonhos traga outro sonho", que lhe penetre na mente, "guardando altas lições/ de ciência e poesia", aquelas mesmas que na voz de Omar Khayyam "brilhavam, luziluziam,/ como a suntuosa ciranda/ de astros, estrelas, mistérios/ no amplo céu de Samarcanda".

 

Essas imaginadas cenas e cenários de passado semelham as cogitações de outro extraordinario mas esquecido poeta baiano, Sosígenes Costa, quando em poemas de alta urdidura simbolista evoca terras e personagens longínquos - o rei Salomão, a rainha de Sabá, Salomé, São João, o imperador Tibério e o tetrarca infeliz filho de Herodes, entre outras figuras que emergem das brumas de outras civilizações e ficções.

 

Nesta mesma diligente clave de restauração de episódios do passado, situa-se o poema que conta a trágica história de Plínio o Velho (23-79), abatido na erupção do Vesúvio, que sepultou Pompeia, calcada no relato com toques imaginários de uma carta de Plínio o Moço (62-113) a Tácito, escrita 25 anos depois. Trata-se de uma peça em que Ruy Espinheira Filho expõe toda sua capacidade e limpidez no manejo do verso livre, explorando em toda extensão e intensidade o potencial de significação e ritmo das palavras, com cativante distribuídos por cinco capítulos, com a fluência a reger o ritmo da leitura.

 

É uma saborosa e reflexiva incursão pela seletividade do espírito e os rígidos códigos do culto ao heroísmo que governam a moral romana. O poema narra o insucesso de Plínio o Velho, que, vestido em sua túnica de ceticismo estoico, parece descrente e indiferente às hecatombes do trágico, mas logo submerso pela fúria da nubem inusitata. O poeta flagra esse heroísmo de conotações épicas, com ressonâncias camonianas, quando "era o nono dia/ antes das calendas de setembro" e, comandando a frota de barcos, "Plínio o Velho apenas estava/ em Miseno/ posto em sossego."

 

E prossegue a narração, à base de relato de Plínio o Moço: o horror se instala em cenário dominado pela misteriosa nuvem em forma de árvore, com Plínio o Velho querendo "ver de perto/ a nubem inusitata\ movido por douta ciência e curioso ardor. Mas a nuvem e os abalos sísmicos que se seguiram foram mais fortes.

 

E lá se foi

até que começaram a vir

pedras e cinzas sobre as naves

[...]

Sem nada desconfiar

do engano de sua ciência.

Sem nada pressentir

da morte à sua espera

Na praia. [...]

 

Aquele ilustre

Ali

no sono da morte

desamparado pela ciência

e pelos deuses
         
que nenhum deles o advertira das fúrias
          da Terra [...]

 

         O insigne homem, dito o mais culto do Império Romano, fora de repente colhido por vicissitudes que a natureza revoltada impunha aos mortais, pavoroso mistério, assemelhado ao de cenas representadas em um templo de Cartago, que tocaram o espírito de Eneias e o fizeram recordar com desventura a destruição de Troia - "Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia Langunt (Virgílio, Eneida, v. 462). A maneira do grego Konstantinos Kaváfis e favorecido por idêntica emoção que flui em estado de tranquilidade, e tendo como chave somente a poesia, Ruy Espinheira Filho restaura o célebre episódio e, verso a verso, desvenda longínquo mistério das coisas em fúria, que toda a ciência de Plínio o Velho não fora então capaz de decifrar.

 

         Por fim, encerram o livro os "Sete poemas de outra era", que o poeta antecipa com uma nota de sincera prova de seu respeito à técnica e de gentileza para com o leitor, onde esclarece que os escrevera, julgando fossem prosas, por escritas "originalrnente, de margem a margem das páginas", mas que, ao relê-las, percebera mais se tratarem de poemas que de prosas: "de outra era, sem dúvida, mas poemas".

 

         Não havia necessidade de tal zelo, posto que basta a leitura para cimentar a convicção de que são todos realmente poemas. Embora se conheça a sua desenvoltura e brilho no trato com a prosa, em artigos, ensaios, crônicas, contos ou romances, sabe-se que a sua melhor e mais confortável condição se última no próprio ato de escrever, o que ele, num poema de raro tom  que "sonha que escreve;/ escreve que sonha;/ quando sonha, escreve", destino e vocação, que convenceram Miguel Sanches Neto, comentando o livro, de que "o poeta escreve com o intuito de criar um espaço linguístico luminoso", pelo qual Ruy Espinheira Filho, digo eu, incessante e desenvoltamente transita.

 

         É o que ocorre nesses sete poemas que concluem o livro, consumando- se em todos eles as vertentes por que andeja o seu poder criativo. Espinheira Filho não se acanha a confessar-se um profissional da literatura, porque esta é, para ele, vida. Mesmo ante os desvios que o árido cotidiano venha lhe impor, tudo o que este poeta escreva terá de ser, em essência e por fatalidade, sempre forçosamente poesia, e poesia expressa em poemas, mesmo que sob máscaras linguísticas. É ele quem afiança, no mesmo poema citado: "quando escreve, sonha;/ tudo é o mesmo sonho/ fala em sonho, escreve". Não há que invocar teorias estéticas, posto que basta estar-se atento ao ritmo das frases, isto é, à sua musicalidade, sugerido pela própria estrutura e significado das palavras, sem mesmo descurar-se da métrica. A leitura comprova que o encadeamento poemático norteia-se nessa direção: não é poema em prosa nem tampouco prosa poética; é poesia mesmo, sublime e verdadeira.

 

         No primeiro poema ("Graal"), em que o poeta não se furta, com presumível surrealismo de inspiração liliputiana, a espalhar por versos e estrofes termos e formas exóticas, que fogem ao cotidiano dialetal e ao plano da sintaxe e da semântica comuns (albiônicas, ventoim, róridos, lúnicas, estou em ônix, sombras úmbrias, trúdinas, diamância, grusmam, lacustram, tigrino, quelônio, diatomáceas, iguanos), estão claros a construção e o andamento poemático da forma verbal.

 

Hoje, zurzindo azul,
 as ondas albiônicas espumam
em meu peito. Venta
em ventoim. Rumoram
falanges, alfanges. Direi, sim,
de como e quando grusmam
palomas; decifrarei
os róridos de junho; revelarei
as dunas lúnicas. Não
me compreendem? Amanhã,
amanhã serão inconsoláveis
os que se abrigam
no opaco.

 

         Além das intencionais asperezas e da forma intrigante, atomizadora do real, à maneira do francês Henri Miehaux, na verdade aí se denunciam expressões forjadas na cadência das palavras, em que se podem até perceber incursões de métrica, incluso interna.

 

         Em tom evocativo de narrativas infantis, personagens, lugares e cenários de um tempo imaginado ou vivido, neste e noutros poemas, a ciência do processo criativo faz supor que, embora não intencionalmente, ah, na concepção poética, até parecem viger lições do velho Ezra Pound, seja por sempre se dirigir diretamente à "coisa", subjetiva ou objetiva; seja no uso de palavras carregadas de significação; seja pela nítida atenção dada à cadência musical das palavras - enfim, poesia com autoridade construtiva e sinceridade de emissão.

 

         Do ponto de vista conceitual, recorrendo à memória, ao tempo e aos sonhos, sente-se que o universo moral e sentimental desses poemas trava uma guerra latente contra o niilismo e responde por uma necessidade de reintegração total do ser humano e de luta por conter ou eliminar a sua fragmentação numa sociedade e numa época propensas à esterilização da vida, ao desperdício e ao vazio; enfim, um combate à passividade e à exaltação da vida material, em detrimento das forças do espírito, um libelo contra o fragmentário e o descontínuo. Mais uns que outros, a tônica da expressão lírica segue por esses caminhos e propósitos restauradores da humanidade no homem, conferindo a esses poemas a primazia de clímax inapelável e conclusivo de todo o livro, o que corrobora o último poema do conjunto, "A ilha Maria", um hino ao amor total finalmente encontrado e vivido, de humanização que se transfere de lugar para pessoa, através da mulher amada: "A ilha Maria é a mais bela de todas./ A mulher Maria é a mais bela de todas./ Nas areias da primeira/ e nos braços da segunda/ quero estar ainda esta noite."

 

         Seja em Samarcanda ou fosse em Bizâncio, em Ítaca ou na terra dos cimérios, fosse em Pasárgada ou na Atlântida, seja fazendo ressoar o ouro e a prata do lirismo de poetas verdadeiros (Pessoa, John Donne, Bandeira, Drummond, Borges, Sosígenes Costa), Ruy Espinheira Filho firmou seu posto na crista da atual poesia brasileira com forte noção de modernidade lírica, distanciando-se das distorções e hipertrofias que, com frequência, a assolam e rebaixam, sob múltiplas capas de justificação estética, conseguindo-o pela imorredoura capacidade de mergulhar, como perscrutou Cid Seixas, "nos desvãos da memória, para de lá "retirar o lirismo pessoal e transferível", isto é, "o tempo morto que não se perde", guardado vivo no espírito.

 

         Neste livro, assumindo e construindo uma poesia cujo lirismo alça-se a uma altitude que a toma imune às degradações e desumanizações do presente, Ruy Espinheira Filho prossegue no luminoso caminho de busca e captação da beleza, montando estruturas verbais, de que brotam o poema como expressão de vida e a poesia como trânsito de eternidade, com que, na plenitude de suas intuições sensíveis e domínio de variados recursos poéticos, ergue a sua própria grandeza.

 

         Após penetrar-se no universo de sua arte e fruir-se o que ela tem de poderoso e comunicativo, não seria exagero dizer- se que a forma e a crença com que se devota a escrever poesia fazem de sua obra a melhor tradutora, entre nós, do que proclama este famoso verso do inglês John Keats: "Beauty is truth, truth is beauty— that is all, Beleza é verdade, verdade é beleza —

é tudo...

 

 

 

Página publicada em fevereiro de 2018

 

 


 

 

 
 
 
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