Murilo Mendes, por Guignard
O POETA/PROFETA DA BAGUNÇA TRANSCENDENTE
[ sobre MURILO MENDES ]
Por JOSÉ PAULO PAES
Publicado originariamehte na página "Cultura" de O Estado de S. Paulo de 20/4/1996.
"Qual em si mesmo enfim a eternidade o muda". É de supor que a eternidade prometida por Mallarmé ao destinatário do seu soneto-epitáfio fosse, não a do bronze ou discurso embalsamadores, mas a da memória viva de gerações de leitores. Entende-se, por outro lado, a indispensabilidade da morte para a fixação do si-mesmo de um poeta, teoricamente passível de modificação a cada novo poema que ele viesse a escrever. Contudo, nem todo poeta precisa esperar pelo último poema para afirmar a sua fisionomia própria, a sua marca de fábrica. Para nos restringirmos à prata de casa, Castro Alves afirmou-a bem antes, justificando-se assim a observação de Andrade Muricy, encampada por Mário de Andrade com a gota de vitríolo de que ele morreu na hora certa, pois não tinha nada mais que acrescentar à sua obra. Augusto dos Anjos também afirmou seu si-mesmo no Eu, a que os Outros poemas postumamente recolhidos pela piedade de Órris Soares nada trouxeram de diferencial.
Se um poeta deve seu quinhão de eternidade ou, melhor dizendo, de sobrevida, ao interesse dos leitores futuros, não será justo negar a estes o direito de definir o que entendem seja o si-mesmo dele. E a essa definição chegam intuitivamente a partir do momento em que começam a descobrir traços da dicção de um poeta na de outro, a ponto de poderem dizer consigo: "mas isto é Drummond!", "mas isto é Bandeira!", "mas isto é Murilo!". Tenho para mim que o meio mais expedito para se chegar ao lui-même de um poeta seja uma boa antologia. Como a que Luciana Stegagno Picchio organizou da poesia de Murilo Mendes para a série "Melhores poemas", dirigida por Edla van Steen e editada pela Global. Dentro das limitações de espaço a que teve de sujeitar-se, a organizadora dos recém-lançados Melhores poemas de Murilo Mendeslogrou realizar uma seleção de textos modelar, a que acrescentou um prefácio.
Nesse prefácio, Luciana Stegnano Picchio nos diz que, estando já fixado o texto definitivo da obra muriliana, é chegado o momento de "escolher o 'nosso' Murilo Mendes". E para essa escolha ela propicia ao leitor um bom itinerário ao pinçar, de cada uma das 17 coletâneas de poemas em que, de 1925 a 1974, o poeta foi recolhendo sua produção, algumas das peças mais características ou pedras de toque. Relendo agora, em compasso antológico, o Murilo com que desde 1946 venho me deleitando em primeiras edições ciumentamente guardadas, vejo que cedo lhe consegui intuir o si-mesmo. No meu livrinho de estreia, O aluno (1947), há uma "Muriliana" em que, sob a égide do pastiche, uma dicção ainda insegura de si murilianizava-se de caso pensado. Nisso, antecipava-se ela ao poeta de Convergência (1963-1965), que nessa coletânea se comprazeria em webernizar-se, joãocabralizar-se, francisponjar-se e mondrianizar-se.
No virtuosismo desse Murilo "do exílio sem regresso" de que fala Luciana Stegnano Picchio, voltado para "inovações vindas de toda a parte, mas especialmente de um Brasil experimental de poesia concreta e invenções cabralinas", não me parece estar o Murilo essencial, aquele cuja marca de fábrica se gravou indelevelmente no Modernismo brasileiro. Tal marca fez sua primeira e ainda hesitante aparição nos Poemas (1925-1929), ausentou-se da saborosa História do Brasil (1932), para reaparecer em O visionário (1930) e prolongar-se, por mais sete livros, até Sonetos brancos (1946-1948). A datação desses volumes cobre, pois, toda a década de 30 e boa parte da seguinte. Vale dizer: o período de surgimento das ditaduras totalitárias na Europa, período durante o qual os conflitos de interesses e ideologias se vão acirrando até o ponto de explosão, a II Guerra Mundial. Na caixa de ecos da poesia de Murilo Mendes, esse período conturbado se reflete em imagens apocalípticas que bem lhe exprimem a ominosa significância.
Para exprimi-la, Murilo talvez estivesse mais bem qualificado do que qualquer outro poeta da geração de 30. Isso porque não apenas soubera manter vivo o ímpeto da rebeldia de 22 como radicalizá-lo conforme cumpria. Pois o que era cosmopolitismo turístico ou nacionalismo pitoresco na poesia do Oswald e do Mário da fase primitivista vai-se essencializar, aprofundar e dramatizar — sem descambar no patético ou perder seu travo de humor modernista — na visada universal de O visionário e livros subsequentes. Neles ressalta com particular evidência aquela estrutura de base que Mário Praz considera específica da arte do século XX.1 Qual seja a interpenetração espacio-temporal, estrutura que a visão múltipla e simultânea do cubismo ilustra à perfeição. Através de Apollinaire sobretudo, a lição do cubismo cedo transitou da pintura para a poesia — e os "minutos de poesia" de Pau-Brasil, com sua minimização dos nexos gramaticais, suas elipses verbais e seus deslocamentos qualificativos, testemunham o influxo cubista no primitivismo de 22.
O efeito mais imediato provocado por um poema cubista no espírito do leitor é o de descontinuidade, em consequência não só da sua pletora de imagens e das suas elipses frequentes como da ausência de conexão lógica ou até mesmo gramatical entre os versos ou grupos de versos, cada um dos quais é como que um bloco autônomo de sentido. E, na sua obsessão do onírico, o surrealismo levaria às últimas consequências a ilogicidade posta em moda pela poesia cubista, cujo pendor construtivo pouco tinha a ver com a espontaneidade da escrita automática, muito embora fosse também Apollinaire o criador do termo "surrealismo".
Pode-se ver no "surrealismo lúcido" que Luciana Stegnano Picchio refere como típico de Murilo Mendes, um encontro da lucidez construtiva do cubismo, que ele aprendera dos modernistas de São Paulo, com a ilogicidade onírica do surrealismo, que o convívio com Ismael Nery nele acoroçoou logo depois. Esse encontro já dá sinal de si nos Poemas de 1925-1929, alguns dos quais começam a definir a dicção e as preocupações essenciais do poeta. "Os dois lados", por exemplo, ilustra um gosto pelas séries repetitivas ou anafóricas de itens mais ou menos desconexos que se vai reiterar nos livros posteriores. E em "O poeta na igreja" avulta o caráter dilemático do catolicismo muriliano, dividido entre a sedução do mundo das formas, onde a carnalidade feminina esplende ("seios decotados não me deixam ver a cruz"), e a eternidade das idéias a que o espírito deve aceder pela mediação da fé. Finalmente, em "Mapa", o poeta extravasa a sua consciência cósmica movimentando-se vertiginosamente no tempo e no espaço para estar presente "em todos os nascimentos e em todas as agonias", à espera de que o mundo mude de cara e a morte revele "o verdadeiro sentido das coisas". Para que essa consciência cósmica não incorra em nenhuma grandiloqiiência à Whitman, o poeta cuida de nela infundir o corretivo da irreverência modernista: do "seu quarto modesto da praia de Botafogo", propõe-se a inaugurar no mundo nada mais nada menos que "o estado de bagunça transcendente".
O visionário, de 1930, já é um livro plenamente muriliano. Num de seus poemas mais representativos, a figura da mulher ganha dimensões ciclópicas: o mundo começa "nos seios de Jandira", cujo braço esquerdo às vezes "desaparecia no caos"; em meio a uma paisagem de "anúncios luminosos", seu corpo se mecanizava, "seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas", enquanto ela esperava pelos "clarins do juízo final". Esse agigantamento do feminino num espaço povoado de signos da tecnologia moderna e perpassado pelo sopro da escatologia cristão-apocalíptica, dá a medida da originalidade com que Murilo Mendes irá utilizar pro domo suo, durante a fase mais marcante da sua produção poética, as virtualidades da interpenetração espacio-temporal que, de Joyce a Picasso, de Eliot a Stravinski, funda as poéticas da modernidade.
Tempo e eternidade, sob a divisa evangélica de "restaurar a poesia em Cristo", anuncia um "novo olhar" que, sem se deter mais na carnalidade, busca ir além dela, até o "amor essencial". A visada universalista desse novo olhar se afirma nos "vim" anafóricos de "Vocação do poeta" — um poeta nascido "para experimentar dúvidas e contradições", "afirmar o princípio eterno" de onde proveio e anunciar que "a palavra essencial de Jesus Cristo dominará as palavras do patrão e do operário". Esta última e dúplice referência mostra que os tempos modernos aparecem agora na poesia de Murilo não mais como exterioridade tecnológica mas como interioridade dramática, donde a antevisão utópica do dia em que "a voz dos homens abafará a voz da sirene e da máquina".
As peças de Os quatro elementos (1935) antologiadas por Luciana Stegnano Picchio ilustram a dicção em staccato tão caracteristicamente muriliana: verso ou pequenos grupos de versos de medida breve e de sentido autônomo, com verbos no presente do indicativo, em séries enumerativas sem conexão lógica entre os itens. Leia-se, a título de exemplo, estes versos de "O poeta marítimo":
A noite vem de Bornéu
Clotilde se enrola no astracã
A tempestade lava os ombros da pedra
O grande navio ancora nos peixes dourados (...)
A sereia enrola o mar com o rabo
Como seu título adverte, A poesia em pânico, de 1936-1937, vai radicalizar o "estado de bagunça transcendente" que, desde o livro de estréia, seu autor inaugurara na poesia brasileira. O casamento dos contrários a que essa "bagunça" aspira transluz na perspetiva apocalípica por que contempla o mundo já então se precipitando na loucura da guerra: "Bordéis e igrejas, maternidades e cemitérios levantam-se no ar para o bem e para o mal". Ou então: "Quem são estes velhos que andam de velocípede? Quem são estes bebês empunhando machados?". Os tempos históricos se baralham caleidoscopicamente, a ponto de Madalena esperar pelo poeta num porão da Idade Média; por sua vez, as imagens ganham uma assustadora nitidez de pesadelo:
Um manequim assassina um homem por amor.
Sete pianos ululam na extensão do asfalto.
A própria Igreja aparece ao restaurador da "poesia em Cristo" como um espaço de aporias:
A igreja toda em curvas avança para mim,
Enlaçando-me com ternura — mas quer me asfixiar.
Com um braço me indica o seio e o paraíso,
Com outro braço me convoca para o inferno. (...)
Suas palavras são chicotadas para mim, rebelde.
(...) Aponta-me a mãe de seu Criador, Musa das musas,
Acusando-me porque exaltei acima dela a mutável Berenice.
(...) Não posso sair da igreja nem lutar com ela
Que um dia me absolverá
Na sua ternura totalitária e cruel.
Os dois adjetivos que rematam essa "Igreja mulher" remetem diretamente para o clima da época em que o poema foi escrito. Um tempo de totalitarismos e crueldades cujas trevas começam a ser atravessadas de quando em quando pelo sol da utopia em As metamorfoses (1938-1941).
A primeira edição desse livro pelo qual tenho particular afeição traz quatro ilustrações de página inteira feitas por Portinari. Nelas, soube o ilustrador captar bem os entretons de certas imagens iterativas que amainam o desespero da quadra guerreira ao contrapor-lhes figurações de esperança. Como a da amada de rosto de "lua moça" que abandona "o reino dos homens bárbaros que fuzilam,crianças com bonecas ao colo" para, de mãos dadas com o amante, atravessar a criação agarrados ambos à cauda de um cometa. Ou então da "doce Armilavda" vinda, com seu nome de exótica sonoridade, dos dias dos jogos de bilboquê para assistir ao espetáculo de tiranos retalhando "partituras de sinfonias austríacas" e de "crianças e velhos metralhados" na China. Ou ainda os míticos cavalos azuis "de uma antiga raça companheira do homem" que, embora tenham sido substituídos "pelos cavalos mecânicos" e atirados pelo mesmo homem ao "abismo da história", galopam no rumo do horizonte para despertar "os clarins da alvorada".
A atualidade das premonições apocalípicas que dividem terreno com as utópicas em As metamorfoses reponta sobretudo em "1941", poema cuja primeira estrofe diz profeticamente:
Adeus ilustre Europa
Os poemas de Donne, as sonatas de Scarlatti
Agitam os braços pedindo socorro:
Chegam os bárbaros de motocicleta,
Matando as fontes em que todos nós bebemos.
Quem não reconhece nesses bárbaros de motocicleta o arquétipo daqueles batedores das distopias do futuro cujo próximo advento os filmes de ficção científica da televisão não se cansam de anunciar?
Não passe tampouco sem registro uma peculiaridade da metafórica de Murilo Mendes que ressalta com frequência em As metamorfoses, embora já estivesse presente nos seus livros anteriores. Refiro-me àquela inversão do trajeto normal da metáfora, a qual, em vez de ir buscar ao mundo natural ou cósmico, como de hábito, símiles para exprimir aspectos do mundo humano ("teus olhos são duas estrelas"), toma deste símiles para exprimir aspectos daquele. Tal inversão foi estudada por Gerard Genette na poesia barroca, cuja afinidade com a poesia moderna ele não se esquece de acentuar. Uma e outra têm predileção pelos efeitos de surpresa, e os conseguem pelo recurso ao caráter hiperbólico das metáforas de trajeto invertido, que aproximam "por uma espécie de intrusão, realidades naturalmente distanciadas dentro do contraste e da descontinuidade".2 Intrusão e distanciamento que tais são perceptíveis em lances metafóricos de As metamorfoses, a exemplo de "A manhã veste a camisa" ou "Conto as estrelas pelos dedos, faltam várias ao trabalho. Desmontam o universo-manequim". Em ambos os lances, a desmesura do cósmico assume a pequenez humana do vestuário, do emprego e da vitrine.
A poesia modernista de 22-28 usou e abusou da metáfora de trajeto invertido. Notadamente Cobra Norato, com as suas saborosas animizações da selva amazônica: "Rios magros obrigados a trabalhar", "Aqui é a escola das árvores. Estão estudando geometria", "O céu tapa o rosto", e assim por diante. Mas nisso Raul Bopp estava apenas sendo fiel ao espírito da matéria folclórica em que se inspirava: desde suas raízes totêmicas, tal matéria traduz a intimidade estabelecida entre o mundo do homem e o mundo da natureza pela analógica do pensamento selvagem. Se bem possa ter aprendido dos modernistas históricos seus antecessores imediatos a técnica da metáfora de trajeto invertido, Murilo Mendes lhe deu sentido diverso. Ao fazer dela recurso de base do processo de interpenetração espácio-temporal a que a sua poesia cedo se aplicou, ele lhe infundiu reverberações metafísicas. Pois é preciso ter sempre presente que o centro magnético dessa poesia é a fé católica e, malgrado os assomos de rebeldia, a obediência à sua Igreja.
Uma fé e uma igreja que, por multisseculares, atam por um elo de copresença seus vários passados ao seu presente vivo, do mesmo passo em que, com seu providencialismo, consorciam o humano e o cósmico, o indivíduo e a divindade por um nexo consubstancial. Para representar tudo isso é que a poesia em Cristo de Murilo Mendes explora com tanta pertinência as virtualidade da interpenetração espacio-temporal e da metáfora de trajeto invertido. O hiperbolismo desse tipo de metáfora é uma rua de mão dupla. Tanto traz para a medida do humano a desmesura do cósmico-divino quando amplia aquela até as escala desta, renovando assim o casamento do céu e da terra já celebrado por um visionário do século XVIII. Todavia, inimigo feroz do industrialismo, William Blake excluía de sua utopia as máquinas dos tempos modernos. Já Murilo Mendes as leva em conta nos instantâneos apocalípticos da sua bagunça transcendente, proclamando Deus-Cristo não só o criador do sol, das estrelas, dos frutos e das flores mas também dos cinemas, das locomotivas e dos submarinos.
Não sei de outro poeta católico que se tivesse empenhado com tanto poder de convencimento em enquadrar no conflituoso espaço-tempo da modernidade os dogmas intemporais da sua fé. Em Murilo, o renouveau católico brasileiro ganha uma radicalidade que o estrema do conser-vadorismo, quando não do aberto reacionarismo, dos seus corifeus. Daí ser no mínimo de estranhar tivesse escapado o verdadeiro sentido dessa radicalidade a um crítico tão perceptivo quanto Mário de Andrade. A propósito de A poesia em pânico, escrevia Mário reprobativamente: "a atitude desenvolta que o poeta usa nos seus poemas para com a religião, além de um não raro mau gosto, desmoraliza as imagens permanentes, veste de modas temporárias as ver-dades que se querem eternas, fixa anacronicamente numa região do tempo e do espaço o Catolicismo, que ser quer universal por definição."3
O Murilo essencial cujo percurso se tentou aqui traçar em sumaríssimas pinceladas reaparece em Mundo enigma, de 1942, e Poesia liberdade, de 1943-1945. Os Sonetos brancos, quando mais não fosse pelo cultivo dessa forma fixa reposta em circulação por vários poetas da geração de 45, aponta para uma mudança de rumos que Contemplação de Ouro Preto confirma: diga-o a sua peça de resistência, o encantador "Romance da visitação" de versos metrificados e rimados. Por fim, Convergência, de 1963-1965, com as suas elocubrações metapoéticas em torno da palavra e não mais da Palavra, nos traz um Murilo ainda inventivo, virtuoso mesmo, se quiserem. Mas, perdoem-me, não é mais o "meu" Murilo.
1. PRAZ, Mário. Literatura e artes visuais, trad. de J. P. Paes, São Paulo: Cultrix, 1982, cap. VII, "Interpenetração espacial e temporal".
2. GENETTE, Gérard Genette. Figuras. Trad. de I. F. Mantoanelli. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 240.
3. ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins, s.d., p. 42