POESIA E FILOSOFIA EM NIETZSCHE
por Ronaldes de Melo e Souza
Extraído de
POESIA SEMPRE. Revista semestral de poesia. Ano 8 Numero 13 Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional. Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 2000. Editor executivo: Ivan Junqueira. Ex. bibl. Antonio Miranda
Metafisicamente determinada como sistema que se ensina, a filosofia se contrapõe à poesia, alegando que o saber poético não possui a consistência epistemológica do saber teórico. Poeticamente concebida como filosofar que se aprende, a filosofia se potencializa no intercâmbio dialógico com a poesia, reconhecendo que o poetar é pensante e que o pensar é poético. Ao defender a supremacia do pensar poético sobre o pensar teórico, Nietzsche argumenta e sustenta que as intuições originais dos filósofos anteriores à tradição ontoteológica da metafísica são as mais elevadas e mais puras já alcançadas e experimentadas na civilização ocidental, sobretudo porque compartilham a visão trágico-dionisíaca do mundo.1 Os filósofos trágicos (die tragischen Philosophen) são os pensadores que compreendem a natureza (physis) como a cifra dionisíaca do duplo domínio da vida e da morte ou do ser e do nada. Exaltando a tensão heraclítica dos contrários, a exegese nietzschiana da philosophia enquanto physiologia culmina na assertiva de que o mundo é o jogo de Zeus, ou, fisiologicamente expresso, o jogo do fogo consigo mesmo; somente nesse sentido, o uno é, ao mesmo tempo, o múltiplo.2 O aclínio e o declínio do pensamento são atribuídos a duas mundividências: uma trágica, de Anaximandro e outros fisiólogos, e outra teórica, de Platão e todos os filósofos posteriores.
Num dos fragmentos póstumos de Nietzsche, destaca-se o enunciado subsequente: Anaximandro. Visão trágica do mundo. Tragédia. (Anaximander. Tragische Weltbetrachtung. Tragodie)? O fim da época trágica do pensamento inaugurado por Anaximandro ocorre com a separação platônica do ser e do devir. Com Platão inicia-se a depreciação da vida sensível através da valorização da ideia do Bem, e o homem trágico é substituído pelo homem teórico. O antigo mundo sucumbe com o advento do homem teórico: An dem Anthropos theoretikós geht die antike Welt zu Grunde. O elemento apolíneo se separa do dionisíaco e, consequentemente, ambos degeneram. Doravante, a consciência e o apetite cego se contrapõem como poderes antagônicos, que se confrontam enraivecidos e exasperados num mesmo organismo.4
Como filósofo trágico é que Nietzsche renega Platão, o protótipo do filósofo teórico. A desconstrução nietzschiana da estrutura arquitetônica da metafísica platônica pode ser figurada no teorigrama subsequente: o ser, o superno inteligível = o mundo verdadeiro; o devir, o inferno sensível = o mundo aparente.
Cumpre observar que a inversão dos extremos contrapolares não atinge o esquema conceitual da separação platônica, mas tão-somente transmuta o platonismo no positivismo. O subjectum qua positum apenas se desloca de um lugar superior para outro inferior. A grande façanha da inversão nietzschiana do platonismo consiste em provar que a refutação do mundo verdadeiro acarreta a confutação do mundo aparente. A essência inteligível e a aparência sensível não têm valor próprio e absoluto. Se o ser absoluto não persiste, o relativo devir não subsiste. Incipit Zarathoustra. Incipit tragoedia. Momentaneamente detida no impulso de se ultrapassar, a vida ditirambicamente decantada não se efetiva senão em ritmo de transe, e o pensamento só se consuma na consciência de que o ser somente é enquanto devém. Antes de se haver com objetos e de perseguir objetivos, a vida experimenta diretamente a si mesma como atividade essencialmente poética de gestação e autoplasmação. Em sua evolução e revolução permanente, neutraliza e dissolve a pretensa imutabilidade dos princípios a priori, reinterpretando continuamente a si mesma na mobilidade pura do ser que devém e do devir que é. Criando e recriando as categorias com que se interpreta, a vida é a poematização do seu próprio sentido. O mundo se torna infinitamente interpretável, e o pensador não se legitima senão quando se converte no poeta que celebra a ronda perpétua do movimento vital. Concebendo a força morfogenética da poesia trágica como projeto instituidor dos novos paradigmas, medidas e valores do mundo ritmado no eterno retorno do mesmo, Nietzsche caracteriza a visão poética como a forma privilegiada do conhecimento compatível com a essência radicalmente deveniente da experiência existencial.5
Amor fati é o ditame nietzschiano da celebração dionisíaca do drama da vida e da trama da morte. A experiência patética do anverso vital e do reverso mortal do destino que se apresenta e se ausenta na fuga perpétua do tempo constitui a ciência poética do homem que se transumaniza ( Úbermensch) ao suplantar a inflexão inercial do espírito do ressentimento, do clamor e da vingança contra o declínio ofuscante da mortalidade, que fatalmente sucede ao fulgurante aclínio da vitalidade. A instância temporal só se explica na constância do incessante trânsito da hora atual. Ser significa não cessar de aparecer e desaparecer na essência e na evanescência dos momentos devenientes. De acordo com a doutrina do eterno retorno do mesmo, somente está literalmente morto aquele que, ao passar, petrifica-se no passado, enclausurando-se no cárcere do que foi (defunctus). A redenção ou recapitulação do destino implica a superação do espírito da vingança, que se apossa do homem alienado na impotência de uma alma cativa que inutilmente se agita e se exaspera contra o passar do tempo finalmente coagulado no passado ou petrificado como o magma depois da erupção. No discurso acerca "Da redenção", Zaratustra ensina que a vingança é, já de si, a aversão da vontade contra o fluxo do tempo e o seu ter sido vivido e perdido no grão nulo do que foi (Also sprach Zarathustra, "Von der Erlsung”). Dessa rebelião do espírito contra a mortalidade terrestre decorre a ficção metafísica da imortalidade celeste, e o mundo sublunar se transforma no vale das lágrimas do acovardados e dos ressentidos. Na procura e desenvoltura da inquebrantável coragem de livremente assumir o seu destino efetivamente mortal é que se assegura ao homem a possibilidade de habitar poeticamente o lugar pátrio de sua residência na Terra. Poesia não é a maior eficiência, mas sim a menor resistência à finitude radical do ritmo de transe da palavra no tempo.
Rejeitando o conhecimento compendiado no dualismo que se estabelece entre a sabedoria do comedimento (sophrosyne) e a euforia da desmesura (hybris), o mandamento do eterno retorno do mesmo se perfaz na gaia ciência de uma paideia poética em que o nada excessivo da ordem apolínea é neutralizado pela desordem dionisíaca da transcensão de todo e qualquer limite proposto e imposto à experiência humana. O prólogo de Zaratustra sentencia que o homem é algo que deve ser superado. Que o homem seja redimido da vingança constitui o ditame dionisíaco do poeta que se converte no artista de sua própria vida ao combater e vencer as potências imanentizadoras da sua propulsão transcendente. Proclamando-se o sacerdote de uma mistagogia lúdico-poética, o cantor do destino tragicamente assumido se define na confissão de que somente acreditaria num deus que soubesse dançar e na profissão de fé do escritor radicalmente comprometido com a rubra legenda do corpo sanguíneo da vida e que, por isso mesmo, de tudo que lê não aprecia senão o que se escreve com o êxtase diluvial da paixão vital: "Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito" (Schreibe mit Blut und du wirst erfahren, dasz Blut Geist ist, em Also sprach Zarathustra, "Vom Lesen und Schreiben"). Escritor é quem se toma o leitor da verdade que justifica a vida que se forma na vontade de potência e se transforma no eterno retorno do mesmo, continuamente criando e recriando a si mesma. A verdade é correção e adequação, não como visão noética da idealidade do espírito, mas enquanto suscitação poética e justificação patética do corpejante gesto de baile da excessividade dionisíaca da vida. Nesse sentido é que a verdade nietzschiana se caracteriza como justiça (Gerechtigkeit).
No magistério da vontade de potência, a infinitude da eternidade e a finitude da temporalidade coexistem na transfinitude do eterno retorno do mesmo. A concepção nietzschiana do tempo lhe advém da visão e do enigma do portal da eternidade como umbral da temporalidade (Also sprach Zarathustra, "Vom Gesicht und Ratsel"). Ao espírito da gravidade, cujo argumento ironicamente refratário à possibilidade da propulsão transcendente da existência humana se traduz na assertiva pretensamente peremptória de que tudo o que sobe tem de cair, Zaratustra categoricamente retruca: "tu não conheces o meu pensamento abissal! (du kennst meinen abgrundlichen Gedanken nicht.”). Exortando o antagonista a contemplar um portal, o mestre do eterno retorno lhe explica que ele tem duas faces e que dois caminhos, ainda não totalmente percorridos por ninguém, nele se reúnem. Símbolo da liminaridade ritual ou iniciática, uma face do portal se volta retrospectivamente para a senda que leva ao futuro. As duas vias que se encontram e se desencontram no momento simbolizado no pórtico são igualmente infinitas, porque a primeira não tem início e a segunda não tem fim. Se alguém seguir adiante, as duas veredas do destino irão contradizer-se eternamente? A esta pergunta provocativa, o entendimento demasiado humano do espírito da gravidade replica que tudo o que é reto mente, porque toda verdade é curva, sendo o próprio tempo um círculo.
Profundamente agastado com a imaginação meramente formal dessa pretensiosa decifração do enigma do tempo, que se limita simplesmente a uma figuração geométrica, Zaratustra reclama uma meditação que não se resolva na substituição simplória de uma representação linear por outra circular. O conhecimento essencial consiste na visão do pensamento abissal: "Ver abismos não é o próprio ver? (Ist Sehen nicht selber- Abgriinde sehen?). A percepção de duas direções simétricas e opostas, que só podem coincidir na circunferência de um círculo, é tão-somente a consequência da inflexão inercial do espírito da gravidade. O tempo não é o círculo em que tudo gira e regira na tediosa monotonia da incessante repetição de uma mesma substância ocorrente ou transcorrente. O pensamento abissal implica o reconhecimento real de que a matéria vertente da temporalidade é sem fundamento (Abgrund). Não há causa primeira nem fim último. Destituída de uma causalidade primordial e de uma finalidade terminal, a idéia de uma substância que se repete torna-se paradoxal ou irreal. O pórtico do momento simboliza, portanto, a essência do tempo que se verticaliza no ritmo de transe ascensional e descensional do aclínio vital e do declínio mortal. Separar (se parere) significa engendrar-se. O moto perpétuo da temporalidade é o anel da eternidade do devir da vida que se consagra na celebração da sua própria excessividade (Annulus aetemitatis).
O enigma do tempo culmina na visão do pastor que se transumaniza e se salva, mordendo a cabeça de uma cobra que lhe penetra a garganta. Liberto do remorso da vida estrangulada pelo sentimento da irreversibilidade do passado, o homem adquire o dom de dançar para além da cinza das horas. Esse pastor não é senão o autor do eterno retorno de si para si mesmo, o boukólos, o bubulcus, o boieiro, o sacerdote órfico-dionisíaco, que se encaminha para o encontro orquestral com o coração selvagem da vida, devolvendo-se à verdadeira morada da sua alma. Por isso mesmo ele reaparece convalescente e rodeado de seus animais queridos, uma águia e uma serpente, que simbolizam, respectivamente, o coelum-pater e a tellus-mater, compreendidos como a transcedência celeste e a transdescendência terrestre (Also sprach Zarathoustra, "Der Genesende"). Esses são os companheiros que o reconhecem como o mestre do eterno retorno, o primeiro a ensinar a doutrina de que há um grande ano do devir que verte e reverte sempre de novo (imtner weider), porque o próprio tempo, como jogo dionisíaco do mundo, é que torna e retorna, e não simplesmente uma substância no tempo. Eternamente gira a roda do ser (ewig rollt das Rad des Seins). Compaginado no ensinamento de Zaratustra, o ser eterno da filosofia se transmuta no eterno ser da poesia.
Notas
1. NIETZSCHE, Friedrich. Nachgelassene Fragmente, Herbst 1869-1872. In: Nietzsche Werke (Walter de Gruyter),
Bd. III, 3, 409.
2. . Diephilosophie im tragischen Zeitalter der Griechen. In: Nietzsche Werke (Walter de Gruyter, 1972), Bd.-
III, 2, 322.
3. . Nachgelassene Fragmente, Sommer 1872-Ende 1874. In: Nietszche Werke (Walter de Gruyter, 1978), Bd.
III, 4, 37.
4. . Herbst 1869-Herbst 1872. In: Nietszche Werke (Walter de Gruyter, 1978), Bd. III, 3, 146.
5. . Die Geburt der Tragodie. In: Nietszche Werke (Walter de Gruyter, 1972), Bd. III, 1.
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