PEDRO LYRA
Crítica literária por
HILDEBERTO BARBOSA FILHO
Extraído de
BARBOSA FILHO, Hildeberto. Letras cearenses. Fortaleza, CE: Acauã, 2004. 103 p. (Coleção Ensaio Tupiniquim, n. 6) 14,5x20 cm. ISBN 85-237-0541-4 Ex. bibl. de Antonio Miranda
Em uma das suas dez famosas cartas a Franz Kappus, Rainer Maria Rilke, poeta tcheco do começo do século, aconselha-o a evitar a temática do amor, considerada por ele, o autor de Elegias de Duino, bastante difícil, sobretudo para os principiantes. A conselhos como este, todavia, faz ouvido de mercador o poeta Pedro Lyra, com Desafio/uma poética do amor, publicado pela Tempo Brasileiro em 1991.
Diferentemente de Poema Postal (1970), que radicaliza a pesquisa de vanguarda em tomo da sintaxe icônico-poética, e de Decisão (1983), que se constitui na base discursiva de uma poesia participante, referencial, denotativa, o novo livro de Pedro Lyra vem recuperar inventivamente as raízes do lirismo português, com apoio sobremodo numa palavra de alto poder conotativo e de surpreendentes efeitos metafóricos, sem contar, particularmente, com a adoção ousadamente renovada do soneto.
A motivação central, ou melhor, a única motivação, é o amor, o amor em suas múltiplas formas, ambivalências, oscilações, sinuosidades. Nesse sentido, o lirismo de Pedro Lyra tende a dar continuidade as vozes de um Sá de Miranda, Camões, Francisco Manuel de Melo, Filinto Elísio, Bocage, Florbela, Pessoa e os brasileiros Bilac, Cruz e Sousa, Vinícius, Drummond, Jorge de Lima, Dante Milano, Nauro Machado, entre outros. Naturalmente, no poeta cearense, com uma especificidade que permeia, unitariamente, toda a estrutura deste livro/poema, Desafio, ou seja, a fragmentação, o desmantelamento, a desconvencionalização do soneto sem que, no entanto, resulte destruída ou pulverizada a sua forma básica. Diría que a inquietação que está na origem do processo inventivo deste poeta, haja vista as linguagens plurais dos trabalhos anteriores, ainda permanece movendo-o principalmente, agora, no âmbito dos chamados “códigos técnico-literários”, pois, do modo esfacelado do soneto, extraímos um metro, um ritmo, uma cadência e uma acentuação extremamente variados.
Há nos sonetos de Pedro Lyra toda uma ocupação espacial da palavra sem que se perca, contudo, a discursividade, a maneira quase silogística de formular o dizer. Penso que Desafio, em que pese a diversidade temática, sintetiza, em certo sentido, as técnicas de construção que presidem a visualidade da poesia de vanguarda e a discursividade de uma poética política, referencial, participante, ambas fundadoras dos seus projetos poéticos anteriores. Muda-se a temática, mas o esforço de reinvenção dos códigos me mostra o poeta em outros espaços, ora nos espaços líricos, mas ainda o mesmo poeta.
Se Pedro Lyra recupera o lirismo e explica toda uma poética do sentimento amoroso, o faz com o amparo de uma racionalidade, de uma consciência compositiva, de um sentido de construção que define muito bem a lírica de um Edgar Allan Poe e de um Charles Baudelaire. Isto é, o poeta cearense vem precisamente dessa tradição. Uma tradição para a qual a poesia não se esgota só no sentimento, mas alcança o pensamento, a técnica, o artesanato. Não fosse assim, como conceber passagens como estas: “Eu sou um que trocou o egoísmo de amar / pelo egoísmo maior de não amar / suspenso / entre receios de entrega e receios de perda. / E hoje busca em vão, no silêncio dos ecos, / as palavras de vida / que só disse nas metáforas / os gestos de carinho / que só fez em intenção”. (Soneto de Confissão XV/p. 133).
Outro traço que responde pelo lirismo intelectual de Desafio está na sua estrutura dialógica. A sequência de sonetos, perfazendo um total de 180, tece intemamente um intertexto onde a voz do eu poético se multiplica, fazendo ecoar vozes alheias advindas do texto lírico de Camões, Pessoa, Bandeira, Drummond, entre tantos clássicos, românticos e modernos. A “Folha de créditos”, logo no início, indica as possibilidades polifônicas e ideativas que atravessa o livro de Pedro Lyra.
Mas todo este investimento nos níveis lingüísticos e estruturais, responsável pelo redimensionamento do soneto, não teria sentido se a ele não correspondesse também todo um redimensionamento da temática amorosa. E é aqui, pelo menos para mim, onde se encontra o ponto culminante desta poética. O jogo da forma, o lúdico das dissonâncias vérsicas, o tecido das imagens se põem em perfeita sintonia (forma/fundo = Isomorfia) com o jogo do amor, com o lúdico que está na base de sua relação, com o poliedro imagético que distende os seus caminhos: do amor se realizando, nascendo; do amor enciumado, perdido, distante, traumatizado, impossível, exclusivo, frustrado, enfim, de como é e de como poderá ser o amor, apreendido em “Soneto do amor final” p. 54, como “Síntese / somatório / transcendência / dos outros todos, nele concentrados / e nele em ânsia e fúria revividos / num agora total / sem nada em tomo: / é só combustão um fim de estrada / que mais que as coisas, finda sua memória / largando-o sem motivo / deslocado / das emoções, dos olhos ou das mãos”. E para que não se perca o jogo da iconicidade, vou citar o restante como no original:
A vida se resume e esgota nele:
voragem e agonia, flama e cinza deixa um resto a
cumprir sem mais viver.
É o melhor de todos, porque é todos.
O último, portanto iniludível.
Depois a queda, um susto, um raio.
Nada.
É este o poeta que das plagas lusitanas retira a permanência iluminada desse canto. Um canto novo, lírico, amoroso... Um canto que, enraizado numa poética de tradição sentimental, não cai, contudo, no lugar comum, na afetação, no estereótipo da lágrima ou do soluço, vícios tão comuns na história da lírica brasileira.
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Poesia cearense contemporânea.
Página publicada em fevereiro de 2012
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