O ENIGMÁTICO SOUSÂNDRADE OU
O ENIGMA DE SUA DECIFRAÇÃO?
Por LUIZA LOBO
Extraído de
POESIA SEMPRE - Ano 6 – Número 9 - Rio de Janeiro - Março 1998. Fundação BIBLIOTECA NACIONAL – Departamento Nacional do Livro - Ministério da Cultura. Editor Geral: Antonio Carlos Secchin. Ex. bibl. Antonio Miranda
O maranhense Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902) é um poeta de ampla e importante produção que no entanto corre o risco de ficar conhecido por uma só obra, O guesa; ou pior, por apenas dois trechos cómicos escritos em versos limerick (os conhecidos "Inferno de Taturema" (Canto II) e "Inferno de Wall Street" (Canto X), insertos neste imenso poema épico de 350 páginas.
As diferentes formas de assinar o nome, Sousa Andrade, Souza-Andrade, Souzandrade e finalmente Sousândrade, como se tornou conhecido no final da vida em São Luís, devem-se a seu desejo, como ele próprio explicava, de ter um nome com idêntica acentuação proparoxítona e idêntico número de letras ao de seu muito admirado Shakespeare (ver Frederick Williams, Sousândrade: vida e obra). Desde 1857 começou a se dedicar ao grande sonho de escrever o grande poema épico e sua principal obra, O guesa. Seu fascínio pela linguagem também o fez mudar constantemente sua denominação: Guesa errante, no momento da publicação dos primeiros fragmentos no Semanário Maranhense, em 1856, e nas duas edições nova-iorquinas parciais de Nova York, em 1876 e 1877; depois, O guesa, na edição londrina de 1884, quase meio século após iniciar o projeto, em constante revisão, co¬mo ocorreu com Whitman em Folhas de relva; finalmente, pouco antes de morrer, publica um último complemento: as novas estrofes de cunho republicano de "O guesa, o Zac". Explica-se o epíteto "Zac": o índio muísca colombiano, visto como herói da América, chegara a sacerdote máximo de seu povo e religião. Explica-se também o afã do poeta em sempre aperfeiçoar-se: O guesa representa o périplo do herói subjetivo, romântico, autobiográfico, que caminha por três continentes, e que está sempre complementando seus versos a cada minuto de vida. Sua preocupação com o existencial é tão forte que cada canto se inicia com uma data que sinala uma fase de sua vida (ver meu Épica e modernidade em Sousândrade).
Trata-se então de um excêntrico! — dirão alguns. Sim, na medida em que O guesa é uma tentativa quase louca de inovar, em todos os aspectos, a épica romântica, como se fosse uma paidéia da cultura maranhense. São Luís, terra do tradutor de Virgílio e Homero, Odorico Mendes (1799-1864), trazia, graças ao lucro com o plantio do arroz e algodão, companhias inteiras de ópera vindas da Europa.
O guesa acaba sendo penalizado com a minguada recepção que merece por empregar tantas intertextualidades e fontes. A comparação com o modernismo de Pound, nos Cantos (ver Re-visão de Sousândrade, de Augusto e Haroldo de Campos, 1964, 2.ed. revista), acaba por limitar o conhecimento de sua obra a apenas um ângulo, os dois fragmentos cómicos dos cantos II e X, em detrimento de sua concepção geral. O guesa é obra originalíssima dentro do panorama da literatura brasileira e universal no sentido de tecer-se como uma rede de apropriações e de intertextualidades, de um modo avassaladoramente pioneiro com relação a seu tempo. O guesa reúne, através de citações e apropriações textuais, a Teogonia, de Hesíodo, a Odisseia, de Homero, o Cântico dos cânticos, de Salomão, a Farsália, de Lucano, Os lusíadas, de Camões, o Childe Harold, de Byron, o Atta Troll, de Heine, referências a Gonçalves Dias, citações de Castro Alves, Lamartine, Emerson e Whitman, entre muitos outros autores. Opondo-se à idéia de que a obra literária é sagrada, Sousândrade incorporou no poema recursos gráficos próprios da imprensa — alguns empregados apenas em 1897 por Mallarmé em "Um lance de dados jamais abolirá o acaso". Sousândrade tornou-se moderno e cosmopolita muito antes de Pound. Num lampejo da polifonia, o poeta introduz em seu longo poema diversos sinais tipográficos que representam diferentes vozes poéticas: o eu subjetivo da épica romântica é apresentado pelas aspas, o narrador externo o é pelo texto sem marcação, os diferentes personagens dos dois trechos em limerick são indicados, como no texto para teatro, por um, dois ou três travessões —, entre muitos outros recursos inovadores.
Os dois trechos acima referidos rompem com o cânone épico ao introduzir versos curtos e cómicos, inovando na forma como no locus onde se dá a descida no Inferno, que passa a ser a floresta amazônica (Canto II) e a balbúrdia de Wall Street, onde se situa a Bolsa de Valores de Nova York (Canto X). Tal inovação já havia sido ensaiada por românticos como Heine, em Atta Troll, por Goethe, no início do Segundo Fausto, e por Espronceda, em "El diablo mundo", no entanto dentro de poemas líricos e dramáticos. Entretanto, a ruptura torna-se muito mais ousada se considerar-se a grandiosidade do poema épico, e mais revolucionária e desconstrutora se torna a utilização dos irreverentes versos em limerick. Evidencia-se o grande projeto de carnavalizaçâo a que se lançou conscientemente o poeta, terminando por abraçar o simbolismo metafórico, imagético e repleto de inovações formais, na rima e na métrica, e por trocar as influências portuguesas típicas dos poetas brasileiros tradicionais por outras, mais incomuns, como a incorporação do limerick — um verso popular inglês. O nonsense daí derivado foi acrescido às palavras, muitas das quais rimou com o tupi-guarani, latim, francês e inglês.
Então sua obra é puro nonsense! — poderão exclamar outros. Foi isso o que atraiu o poeta para a irreverência dos versos em limerick que atacam a um tempo o imperador do Brasil e os grandes políticos norte-americanos, permitindo-lhe inserir, através deste verso popular, os fatos que lia nos jornais de Nova York, onde viveu de 1871 a 1884, estocando, a torto e a direito, tanto o monarquismo quanto a democracia e a República.
Sousândrade foi vítima de seu destino de romântico nascido na província distante do eixo da corte; cedo órfão dos pais, antimonarquista num país ainda longe de obter a autonomia e a República, sonhador original que esbarra no anonimato do auto-exílio na Europa e em Nova York. Melhor recepção teria obtido fixando-se em Coimbra ou Lisboa. Mas aí já não seria mais o ousado, o pretensioso, o licencioso, o cidadão do mundo Joaquim de Souza Andrade.
Trata-se de um poeta hermético - insistem - repleto de referências enigmáticas, incompreensíveis. O hermetismo de seus versos, eivados de referências intertextuais e amplas leituras, esbarra, sempre, no problema da recepção. Publica em português em Nova York e Londres, pois odeia o imperador e a monarquia brasileira. Não tem a sorte de Domingos Gonçalves de Magalhães, cujos Suspiros poéticos e saudades contaram com o financiamento e beneplácito do imperador. Ou de Gonçalves Dias, cujas obras obtinham o mesmo empenho do imperador, cumprido o ritual de elogio e aceitação, típico da sociedade de subserviência e troca de favores herdada da colónia, ao que o outro maranhense não queria submeter-se. Problema de recepção que permanece até hoje, uma vez que seus livros não estão disponíveis ao grande público, nem figuram nos manuais escolares. Fracassaram as tentativas de enquadrar Sousândrade nas provas de vestibular: ele resiste aos moldes dos estilos de época e géneros literários — percorreu-os todos, numa grande Stilvermischung.
A trajetória do poeta se torna, para comprovar este crescente alijamento de Sousândrade com relação ao público (o que, aliás, nunca o fez esmorecer), cada vez mais complexa e hermética, quiçá tresloucada, semelhantemente ao simbolista Pedro Kilkerry (1885-1917) ou ao precursor do teatro do nonsense, Qorpo Santo, os quais também alteraram a grafia de seus nomes. São versos de grandes profetas românticos, bodes expiatórios, incompreendidos, que portanto se querem incompreensíveis. Vê-se que a obra do autor se inicia com poemas ingénuos e de leitura transparente, no estilo de Casimiro de Abreu, em Harpas selvagens (1857). Mas, quarenta anos depois, após a proclamação da República, quando retorna ao Brasil, Sousândrade publica um poema político republicano intitulado Novo éden (1893), que é de leitura difícil, árida e repleta de referências pouco claras (como o título Helé, novo, em hebraico).
Mais uma vez, dirão seus detratores: poemas ilegíveis porque ruins. Mais uma vez se poderá afirmar: a estética não é o resultado do conhecimento, que só se obtém pela repetição da forma, pela memorização, até se criar um gosto e se constituir um cânone? Portanto, mais uma vez, é o problema da recepção de uma obra poética desconhecida num país que não soube reuni-la, republicá-la, valorizá-la, interpretá-la. O Finnegans Wake de Joyce continua sendo citado e respeitado, embora pouco lido; o Lance de dados é tido por obra-prima, apesar de sua polissemia ser tão infinita que soa hermética para os não-iniciados. Não faltará a nós a humildade, a intimidade com as letras e a ousadia da iniciação? Não estaremos acomodados com a leitura referencial e descritiva do outro — o famoso e bem-sucedido poeta épico que deixou, no entanto, Os timbiras inacabado? Poema calcado na ideia do índio como simulacro do branco, um índio "selvagem" mas dócil aos valores do outro, como é veiculado também na obra de Alencar. O cânone sempre se apoia na ideia de didatismo, de temor ao irreverente e de respeito aos códigos — conforme nos mostra Bakhtin em seu magistral estudo diacrónico sobre a formação dos géneros na literatura europeia, obedecendo aos ditames da Igreja Católica (ver A palavra poética em Dostoievski). Repetimos o sagrado Dias e repelimos o profano Sousândrade, cuja poesia era impossível de memorizar. Admiramos o político Alencar, que buscou a corte, e rejeitamos a voz do exílio ou da província, arauto solitário e absurdo da invenção. Não é por acaso que a obra completa e depurada de Gregório de Matos, outro poeta que possui muitas passagens e aspectos antididáticos e anticanônicos, ainda espera nos diversos códices.
Em contraste com a concepção linear, descarnada, idealizada de "I-juca pirama", que iguala a imagem do índio ao branco, Sousândrade empreende um projeto imenso e renovador de reescrita da épica brasileira romântica. Esta visa, por um lado, a recuperar o índio, não apenas no seu perfil amazônico, mas também como símbolo mítico das Américas, representado ora pela figura do inca dominado por Cortez, ora do guesa, menino a ser sacrificado em rituais muíscas, na Colômbia, com flechadas no coração: por outro lado, visa a compreender a história brasileira através da identificação subjetivista e romântica entre este índio da Amazónia e o destino do "poeta errante", nos moldes do Childe Harold, de Byron. Como os incas, ele também é um dos "inocentes filhos da Criação", um errante.
A partir deste duplo traçado, O guesa, entre outras obras do autor, constitui-se num poema pós-colonial antiépico, que traça o destino do continente dominado em seus diversos momentos: seja na festa do Taturema, seja na grande débâcle que é o encontro do poeta com a sociedade norte-americana. No final do poema, no Canto XII, ocorre a decepção com os costumes libertários e licenciosos que, aparentemente, chocam o personagem-narrador, através das figuras ousadas, coquetes, aventurescas e cosmopolitas das Leilas, Minnies e Lalas nova-iorquinas, assim como com a República e a democracia nos anos da política capitalista do laissez-faire.
A história do guesa não se limita ao mito local do sacrifício entre os muíscas, uma vez que o personagem se transforma no Cristo-Prometeu dos Lamartines românticos — o que já deveria bastar para inseri-lo entre os grandes poetas brasileiros. O tom externo e descritivo de seu plano épico empregando como temática as noções de independência, República e democracia norte-americanas alia-se ao tom intimista da voz autobiográfica do bardo romântico. A épica toma-se antiépica quando o grande périplo do herói redunda numa viagem de conhecimento interior, e os topói da viagem deslocam-se da Grécia para o trajeto da sua fazenda, em Tucumã, na província do Maranhão, para a corte do Rio de Janeiro; do transcurso para além-mar, em Paris, Londres (1856-57), via África, depois Caribe e Nova York (1871-1886), até o Chile e América Latina (1886), sempre em busca da prometida liberdade republicana. Este ambicioso périplo topográfico tem o seu correlato simbólico na ascese política de um Brasil monarquista e pós-colonial, que deseja atingir a modernidade e o cosmopolitismo do país do Norte. O sonho da imprensa livre, do poder democrático e do capitalismo financista com base na Bolsa de Valores (ver "Inferno de Wall Street"), logo se desfaz como projeto utópico e ideológico do poeta confrontado com a realidade.
O pharmakós ou bode expiatório — índio ou herói romântico, rebelde ou incompreendido — pode significar remédio ou veneno, este destilado após dois anos passados na Europa e quinze no exílio voluntário de Nova York. Permanece, no entanto, sua ambígua polissemia após o retorno do poeta a sua terra natal. Enquanto vendia pedras do muro de sua quinta da Vitória, herdada de antigos tempos de grandeza dos pais para as firmas de construção, já abandonado pela família, que se mudara para São Paulo, seguindo os novos ventos da modernização, mal se sustentando com algumas aulas de grego no liceu do governo, o poeta se transforma, como seu próprio personagem, em pharmakós, bode expiatório da carência de leitura e consequente falta de recepção. A partir de uma épica ao avesso e uma utopia política fracassada, que bem se retratam em sua vida e obra, talvez possamos perguntar àqueles críticos de Sousândrade que o leram: o problema estará na estética do texto, no domínio da técnica da versificação, na concepção original do poema e seu valor histórico, enfim, na sua qualidade intrínseca, ou na falta de sua leitura e ausência de público adequado, redundando tudo isso na repetição do cânone reverente ao já conhecido?
Página publicada em abril de 2018
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