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O CANTO DAS ROCHAS: ESPANTO E HAICAI

por Gustavo Bernardo*

 

 

Extraído de

POESIA SEMPRE.  Ano 12. Número 18. Setembro 2004. Revista trimestral de poesia.  Editor Luciano Trigo.   Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2004.  Ilus.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

Era uma vez, há muito tempo, num lugar muito distante... assim começam as histórias que driblam o tempo, situando-se nas coordenadas imaginárias de passado tão antigo que, paradoxalmente, "parece que foi ontem". Neste lugar, os poetas são conhecidos como vates, porque fazem vaticínios, enquanto os narradores são conhecidos como aedos e, acompanhando-se à lira, cantam composições épicas.

Vates e aedos debatem-se com a língua porque precisam encontrar uma única forma de dizerem com precisão o que querem dizer. Para tanto, recorrem a formulações alusivas e ambíguas, de modo a que ouvintes e leitores percebam em suas palavras o que querem, ou precisam, ler e ouvir. Apenas dessa maneira paradoxal, através da ambiguidade, comunica-se o que não se pode comunicar: a verdade de cada um.

Semelhante esforço de precisão depende de um esforço equivalente de concisão, para não se dizer nem mais nem menos do que é preciso ser dito. No entanto, a própria língua resiste à pretensão. 0 gesto de dizer ou escrever sugere o movimento de tentar encher com uma jarra cheia d água. do alto da cabeça, pequena caneca no chão: se o fazemos com bastante cuidado, até acertamos a caneca, que todavia transborda muito antes de ser preenchida. A palavra, como a água, revela-se tão pletórica quanto insuficiente. "Não era bem isso o que eu queria dizer", reclamam, desanimados, depois de uma discussão, ambos os namorados, porque, na verdade, nunca dizemos, ou sequer sabemos, o que queríamos dizer: sempre se fala mais — "eu não disse isso!" — e menos — "você ainda não me entendeu!" — quando não se fala em versos.

Isso acontece porque a língua cotidiana não admite seu caráter pletórico e incompleto, enquanto a poesia parte desse reconhecimento. Por se reconhecer excessiva e incompleta, "a poesia aumenta o território do pensável, mas não diminui o território do impensável", como já o disse Vilém Flusser. A poesia alarga o horizonte sensível, mas não resolve qualquer mistério. Em outras palavras, se sempre precisamos de outras palavras: faz-se poesia não para resolver os enigmas, mas sim para protegê-los. -

A poesia, em si mesma enigmática, procura formalmente a concisão máxima, cortando-se em versos e ampliando o branco da página que a cerca. Talvez por isso façam tanto sucesso, no Ocidente, os poemas orientais do tipo haicai (ou haiku), usualmente reconhecidos como os menores poemas do mundo. Segundo Masuda Goga, o haicai é o poema conciso por definição, formado de 17 sílabas distribuídas em três versos, na ordem 5-7-5, sem rima nem título.

0 poeta que faz haicais (em japonês, um haijin) deve procurar a simplicidade cotidiana, recusando retórica grandiloquente ou piegas. Como o zen, precisa evitar o raciocínio para poder captar o instante e a transitoriedade "em seu núcleo de eternidade". 0 haikai não explica, não discursa — apenas, sugere. A sugestão dos pequenos e poucos versos atua como uma espécie de antídoto contra os "ismos": subjetivismo, sentimentalismo, intelectualismo. 0 haicai não expressa juízos ou sentenças, mas sim contrasta dois elementos sem conexão lógica aparente, cabendo ao leitor reconciliá-los em novo plano de significado. Antes de ajuizar, esse tipo de poesia suspende o juízo, tal qual os antigos céticos.

 

 

Paulo Leminski: ironia como forma

de resistir à tirania dos sentidos.

 

Poemas que devoram o tempo

 

Não é objetivo deste pequeno ensaio fazer uma história do haicai; bons trabalhos já o fizeram, como o volume organizado por Paulo Franchetti, Elza Doi e Luiz Dantas (Haikai: antologia e história. Campinas: Editora da Unicamp, 1996) e o livro de Masuda Goga (O haikai no Brasil. São Paulo: Oriento, 1988). Quero, no entanto, chamar a atenção para a estreita relação entre esse tipo de poesia e as aporias do tempo com que nos defrontamos. Os vaticínios desses vates, ao falarem daquele passado tão antigo, pré-histórico (isto é, pré-língua), apontam para um futuro muito desejado: aquele em que se reencontrará o outro e a si mesmo. Assim, como o uróboro, seus poemas devoram a própria boca. o próprio estômago — o próprio tempo.

 

Nossos sentidos apreendem o espaço, mas não podem perceber o tempo.

 

Racionalmente, sabemos que somos mortais, mas não vivenciamos nosso nascimento nem vivenciaremos nossa morte. No íntimo, acreditamo-nos imortais, sabendo igualmente que isso não está certo. Por isso, não nos achamos no espelho, como mostra o haicai do uruguaio Mário Benedetti (Rincon de haikus. Buenos Aires: Sudamericana, 2000):

 

desde el espejo

mis ojos no me miran

miran al tiempo

 

Procura-se o que não se pode encontrar ou reconhecer: o passar do tempo. Em consequência, o mais conhecido poeta japonês, Matsuo Bashô, definirá haicai como "simplesmente o que está sucedendo neste lugar, neste momento" — uma outra maneira de dizer do espanto de existir. Essa definição toma forma no poema mais conhecido de Bashô, que leio em tradução de Jorge Braga (O gosto solitário do orvalho. Lisboa: Assírio e

Uvim, 1986):

 

o velho tanque
uma rã mergulha
dentro de
si

 

Toda tradução é perigosa travessia, o que se agrava quando se traduzem poemas, e mais se agrava quando se o faz de uma língua isolante, como o japonês, para uma língua flexionai, como o português. Franchetti, Doi e Dantas apresentam o mesmo poema no original (em romaji, isto é, no alfabeto latino), propondo a seguir tradução bem diferente da de Jorge Braga:

 

furu-ike ya
kawazu tohikomu
mizu no oto

 

o velho tanque
— uma rã mergulha,
barulho de água

 

Segundo Adriana Lisboa (que estuda japonês com a intenção de escrever um romance com Bashô como personagem), furu ike é, literalmente, "velho lago". Ya é uma palavra de corte, ou kireji, menos do que uma exclamação e mais do que uma vírgula. Pode-se traduzir ya por um travessão. Kawazu tobikomu diz da "rã que salta-e-cai" (Haroldo de Campos traduziu como "salCtomba"), enquanto mizu no oto é "barulho de água" (oto — barulho, mizu = água).

Logo, a versão de Franchetti. Doi e Dantas é bem mais próxima ao original, enquanto a versão do português Jorge Braga implica já uma interpretação ocidental, explicitando a sugestão do poema. Entretanto, essa tradução, ou traição, me interessa: o mergulho do animal anfíbio no velho tanque aponta para a simbiose entre o ser e o seu meio, remetendo, sim, para a busca líquida do passado, do lugar de onde todos viemos. 0 barulho na água falaria menos do som, antes desse (eterno) retorno, não apenas da rã como também da própria água do lago-tanque, que se moveria para os lados e para cima, mas logo permaneceria de novo plácida, no mesmo lugar, indicando o encontro do animal consigo mesmo.

Há ainda uma terceira versão, de Olga Savary, que traduziu 0 livro dos hai-kais (São Paulo: Iluminuras, 1987):

 

sobre o tanque
morto um ruído de rã
submergindo

 

Esta versão quer enfatizar o contraste dos versos, opondo não o "velho tanque", mas sim o "tanque morto", à vida contida no mergulho da rã que, assim, faria renascer o tanque — o ambiente. Pela mesma razão, opta por "submergindo" ao invés de "mergulhar", como que aprofundando o mergulho na água — na origem.

0 confronto de traduções remete àquele contraste de versos e significados que obriga o leitor a reconciliar sentido e realidade em outro plano. Esse estranho plano, por sua vez, remete a outro paradoxo da poesia: escrevem-se versos para se pedir silêncio. Cada poema pede para ser lido à sua vez, guardando-se silêncio de voz e de mente um pouco antes, um tanto depois. Esse silêncio é o tema do que me parece o mais belo dos haicais, também de Bashô, encontrado em versões, respectivamente, de Olga Savary e Jorge Braga:

 

imensa calma
penetrando as rochas
o canto das cigarras

silencio:
as cigarras escutam
o canto das rochas

 

Aqui, suspeito que a versão de Savary também seja mais próxima ao original. Em nota, ela ainda sugere uma segunda opção: "imensa calma  filtrando pela rocha  o ruído das cigarras". As duas imagens são imprevistas e felizes, contrastando uma calma intensa com um canto igualmente intenso, tanto que penetra a rocha, ou a rocha o filtra. Aversão de Jorge Braga, porém e novamente, ao atribuir o canto às rochas e a escuta às cigarras, não apenas inverte os atributos como amplia, se isso é possível, a intensidade do silêncio. Sugere, assim, nessa nova traição, excelente exercício zen: sentar-se para escutar o canto de uma pedra. Ou melhor: sentar-se. como uma cigarra, pa¬ra escutar o canto de uma pedra.

 

Iluminação nascida do paradoxo 

0 que se quer com esse tipo de exercício "maluco", ou melhor, ilógico? Mais ou menos o que se quer com a escrita e a leitura de poemas de apenas três versos: num sentido consequente, ocidental, nada; num sentido pedagogicamente antigo, propriamente oriental, uma iluminação. Pode-se dizer, também, uma epifania, uma revelação; em termos japoneses, um momento de satori. Como dirá Alberto Marsicano, outro tradutor de Bashô, o haicai é "o olho do furacão, o profundo toque de um gongo de bronze, o iridescente relâmpago que inesperadamente reluz na escuridão da noite. 0 haicai é o satori, o despertar zen que repentinamente surge no caminho".

Mal comparando, o satori equivaleria ao insight, melhor dizendo, ao "soco no peito", ao espanto por existir, quando o mundo de repente se reorganiza e outra perspectiva se apresenta para quem vê a si mesmo também como outro. Um poema de Mário Benedetti parece partir exatamente do silêncio em que se escuta o canto da rocha:

 

hay pocas cosas
tan ensordecedoras
como el silencio

 

Dessa iluminação que não se adquire nem se conquista, mas nos surge do reconhecimento do paradoxo, trata novo poema de Bashô, que encontro apenas na versão de Jorge Braga:

 

narciso e biombo
um o outro ilumina
branco no branco

 

O poema não mostra ou esconde, nem mostra e esconde, mas sim mostra ao es­conder e esconde ao mostrar, como de resto fazem os nossos melhores lapsos, atos falhos e versos. Não à toa um humo­rista, Millôr Fernandes, chegou a publicar um livro de haicais (Hai-kais. Porto Alegre: L&PM, 1997). Dois dos seus poe­mas, em particular, esmeram-se em sus­pender o juízo sobre o mundo, portanto, em suspender o sentido:

 

o cético sábio
sorri
só com um lábio

nada tem nexo
tudo é apenas
um reflexo

 

Não se pode sorrir "só com um lábio", assim como não se pode sorrir "pra den­tro" — mas é assim que o cético irónico sabe sorrir. Sorrir com um lábio só equi­vale ao "meio-sorriso", termo que designa não uma expressão facial, que não seria possível (ou seria apenas uma careta), mas sim um sorriso leve, ou fino, pelo qual manifesta-se complacência, amarga e divertida, com o mundo e consigo mes­mo. Sorrir com um lábio só parece partir de célebre koan (enigma) zen, pelo qual se pergunta como se pode bater palmas com uma mão apenas. Por essa lógica in­terrogativa, cética e sábia, nada teria nexo simplesmente porque todo nexo é um re­flexo (e uma rima) de quem atribui, ao mundo, nexo (e, quiçá, sexo).

 

Essa ironia, forma de resistir à tirania do sentido, tem de ser, ao mesmo tempo, auto-ironia, como explicitam haicais de Paulo Leminski (O ex-estranho. São Paulo: Iluminuras, 2001). Enquanto o pri­meiro, que mostro abaixo, cifra uma espécie de estética do arrepio e flerta com o abismo, o segundo, ao lado, quebra a própria forma poética e acrescenta dois ver-sos, recuperando o Descartes original (aquele que disse dubito ergo sum antes de afirmar cogito ergo sum) e demonstrando que as certezas nos traem, porque as dúvidas é que nos constituem:

 

não houve sim que eu dissesse
que não fosse o começo
de um esse o esse
 

nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé

certezas o vento leva

só dúvidas continuam de pé

 

Para terminar, retorno a haicai mais convencional, nem por isso menos pertur-bador. A perturbação que ele propõe é vi-sual e delicada, provocando aquele sorriso com um só lábio. Alice Ruiz (Desorientais. São Paulo: Iluminuras, 1996), aqui, desenha uma cena que divide ao meio a noite, a lua e as perspectivas. A cena nos leva a ver (e pensar) como se fôssemos o que deveras somos: não menos do que dois, isto é, não menos do que eu e outro, ou seja, apenas, sombra de nós mesmos.

Vejamos: 

varal vazio
um só fio
lua ao meio.

  

*GUSTAVO BERNARDO é professor de teoria da literatura na Uerj e autor dos ensaios A dúvida de Flusser e A ficção cética.


 

 

 
 
 
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