Martim Cererê: polifonia e figuração de um épico da modernidade e da brasilidade
Jamesson Buarque *
*Doutor em estudos literários, é professor de teoria da literatura e ensino de literatura e autor de Novíssimo testamento (2004)
Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis (1) é um poema com vontade de ser genuinamente brasileiro, e pode, também, ser descrito como uma proposta de poema épico moderno nacional — de parâmetros sertanistas, regionalistas e indianistas. Seu autor, Cassiano Ricardo, buscou trazer para o cenário modernista brasileiro uma poesia que apresentasse, dir-se-ia, uma chave de como fazer um poema sobre a brasilidade, levantando a bandeira do país pelo canto sobre o autóctone, o branco e o negro. Para assumir essa bandeira, cumprir com aqueles parâmetros e propor-se como épico moderno, Martim Cererê foi montado em um vasto corpo polifônico e polissêmico (neste caso, via figuras simbólicas), como se consubstanciasse aquilo que é romanesco àquilo que é épico, imbricando-se no lírico. E, sobretudo, do que diz respeito ao épico que este ensaio se ocupa.
Diferentemente da tradição épica, ainda que assinalado por ela, uma vez que é narrativo-heróico e propõe o mito de fundação de um povo, Martim Cererê se vale de uma fluente polifonia. 0 épico, via de regra, corresponde à voz de um ethos que administra a voz das figuras (personagens, pessoas, heróis, deuses, etc.) em ação. As vozes em Martim Cererê, à guisa de uma estética da citação, comportam um conjunto bem amplo de discursos externos às figuras do poema. Cassiano Ricardo faz com que o ponto de vista da voz do sujeito-narrador de Martim Cererê seja convergente ao ponto de vista da voz de Barbosa Rodrigues — citado pelo poeta —, na epígrafe de abertura (MC, 1983, p. 2). O mesmo ocorre com o ponto de vista subjacente na voz dos bandeirantes — conforme a epígrafe do "Argumento” (MC, 1983, p. 3) —, considerando-se as tantas epígrafes, como as que dizem respeito a Couto de Magalhães (MC, 1983, p. 7), Camões (MC, 1983 p. 25; 35), Diogo Grasson Tinoco (sic) Apolônio Rhodio e Ovídio (MC, 1983, p. 46). O poeta também faz com que a voz do sujeito-narrador assuma juiz acerca do caráter das personagens, bem como lida com as vozes das personagens fora e dentro do poema — aventando uma interpretação do modo de ser do autóctone, do branco e do negro ao curso da história brasileira.
Essa polifonia, embora não seja própria da tradição épica, torna-se própria da mesma, porque funciona como montagem e revela uma memória vigorosa. A montagem é característica do épico, porque os textos inscritos nesse género estetizam, em síntese, um conglomerado de fatos históricos, lendários e/ou míticos de um povo. A memória, por sua vez, é o atributo do poeta cantor de um épico, visto que esse gênero produz textos em formato de monumento, para que seu povo não se esqueça do que foi nem do que fez — como diria o Zaratustra de Nietzsche: tanto para o bem quanto para o mal. Assim, a voz de Apolônio Rhodio se torna relevante para convocar a mitologia grega: "Jasão disse:/ — Volte quem quiser que eu, ou não tornarei à Grécia, ou levarei comigo o Tosão de Ouro" (MC, 1983, p. 46). Essa, julgamos, é uma convocação necessária, considerando-se o lugar da tradição grega no Ocidente, bem como a proposta de poema épico que é o Martin Cererê — cujo herói assume as vezes de avatar de Odisseu. Já a epígrafe do "Argumento” se destaca por fomentar um dos cernes do poema, demarcando os bandeirantes como elementos reais, exteriores ao texto, ao passo que ao mesmo tempo são elementos fictícios, como personagens fundamentais do enredo. Podemos pensar na demarcação de vozes externas, também, considerando algumas marcas de intertexto, como, por exemplo, a do movimento "O achamento'", que nos remete à carta de Caminha: "A terra é tão fermosa/ e de tanto arvoredo/ tamanho e tão basto/ que o homem não dá conta" (MC, 1983, p. 27).
Ainda diferentemente da tradição épica e também ainda assinalada na mesma, as personagens adensam a polifonia de Martim Cererê. Embora nos grandes épicos que fizeram escola no Brasil — Ilíada, Odisseia, A divina comédia e Os lusíadas - haja uma turba de personagens, estas estão sempre a serviço de um discurso unitário, de vozes bradando em uníssono. Há em tais épicos sempre uma dicotomia em relação ao ethos do poder: de um lado, os que serão vencedores; e do outro, os que serão vencidos. Em Martim Cererê, a turba de personagens é de vária origem em diálogo dentro do ethos do discurso de poder, mas promove uma vitória de vozes consubstanciadas, por força da miscigenação, desautomatizando o discurso unitário da tradição épica. A Uiara, Aimberê, o Carão, o Marinheiro (Martim), os gigantes de botas sete-léguas, o Santo Anchieta, Mãe-preta, Conimá, Zozé, Colomi, Ioiô, El-Rey e o Brasil-Menino (o próprio Martim Cererê) são algumas das tantas personagens das histórias e das lendas do Brasil. Animais das florestas, a própria Noite e o próprio Sol, um dragão e a lua (sic), o rio Tietê, o Sertão, e, como já se disse, personagens da mitologia grega, como Ulisses e Jasão, multiplicam a turba para dar corpo à vasta polifonia do poema.
Vale destacar que a voz de Camões é fundamental, porque os discursos que se articulam entre as vozes do sujeito-narrador e as demais do poema fazem Martim Cererê exprimir nítida proposta de um novo épico em língua portuguesa para a modernidade. Pela via dessa proposta, são tratados alguns feitos dos elementos humanos miscigenados para a formação do Brasil. Um bom exemplo é que toda a narração acerca das aventuras dos gigantes de botas sete-léguas, ao desbravarem o sertão oeste adentro, procura destacar o quão esse feito foi grandioso e deve ser memorado. Obviamente, o poeta, dir-se-ia, finge ignorar as intenções de mineração das riquezas do Brasil, como parceria do processo de colonização português. Essa atitude, certamente política, contudo, não diminui nem obscurece o fato de que o desbravamento do Brasil foi um feito tanto ousado quanto grandioso.
Mais do que a condição de poema épico moderno, Martim Cererê pode ser considerado como modelo estético para a poesia épica que se pretenda fazer ainda hoje, uma vez que, vivendo bastante para dentro de seu tempo, este poema é exemplo de passo fundamental para a fundação (ou invenção) de uma mitologia nacional, unindo a teogonia e a cosmogonia de povos diferentes.4 Conforme Mielietinski,5 um dos princípios fundamentais de mitologização é a metamorfose: isso de consubstanciar formas distintas para gerar uma transformação. A miscigenação das raças que fazem o Brasil é o exemplo de densa metamorfose do qual se vale Cassiano Ricardo ao longo de Martim Cererê. Na proposição do poema — à guisa de prólogo — a Uiara prediz que apenas com a chegada da Noite ela se casará, e que, somente casando-se, terá filhos. A predição se verifica no futuro. Isso no poema se desenvolve com um jogo de perguntas e respostas para formação do mundo. Respondendo as perguntas, Martim (o branco) traz a Noite (o negro), casa com a Uiara (o autóctone), e ambos têm filhos: convertem-se em metamorfose, logo, a miscigenação faz a gênese do Brasil. Observe-se que o poema de Cassiano Ricardo sempre pode ser simultaneamente descrito como afastado e inscrito na tradição épica. Afastado porque Martim, a Uiara e a Noite não se embatem para que ocorra a glória de um por emulação do discurso unitário fomentado na voz do sujeito-narrador pelo povo em cujo ethos ele está instalado. Inscrito porque essa metamorfose é dada como a gênese mítica de formação do povo brasileiro.
Afastado novamente, ressalve-se, porque essa metamorfose e a narração que a conduz são uma interpretação da formação histórica nacional. Na tradição épica, o mito é efetivamente o fato da gênese de formação; ele é a história que fica.
Dada a própria polifonia sociopolítica do mundo moderno e contemporâneo, não seria legítimo que em Martim Cererê Cassiano Ricardo cantasse um discurso unitário, um lado puramente vencedor, e muito menos seria legítimo que evocasse vozes para bradarem em uníssono. Contudo, como se julga que aquilo proposto em Martim Cererê por Cassiano Ricardo é uma transformação do épico como modelo estético para a poesia brasileira moderna (e, acrescente-se, contemporânea), vale observar que o autor leva sua narrativa para mais dois caminhos: um romanesco e outro lírico. De fato, já no início do século XX,6 o romance e o lírico são os gêneros literários que se inserem com mais vivacidade no mundo que passou pela querela entre antigos e modernos, pela valoração do gênio individual, pela revolução industrial, pela ascensão da burguesia, pela revolução do proletariado, pelo nascimento do mercado editorial e pela formação da cultura de massa. Isso porque o passado foi se diluindo a partir da hermenêutica historicista romântica e do cientificismo oitocentista — que intensificou e avançou a arqueologia —, o presente foi se tornando fugaz devido ao advento da máquina de maneira mais intrínseca na vida cotidiana, e o futuro foi deixando de ser o além para tornar-se o possível e o agendável. Como o romance é o gênero dos sujeitos psicológicos em ação e como o lírico é, antes de tudo —a partir do romantismo —, a voz da individualidade, tais gêneros se tornaram mais vivazes na vida cultural do Ocidente. No épico, os sujeitos não são psicológicos, porque são simbólicos, são exemplos de tipos, de figuras — o vencedor, o derrotado, o herói, o deus, o pátrio, o exógeno etc. — e não sendo psicológicos, não são vozes de uma individualidade, são, efetivamente, vozes de um discurso unitário — como tanto já se disse —, fechado, sistemático, orgânico. Ao compor um poema com enredo, sequência de ações, mito de fundação nacional, metamorfose, e narrativa heróica, Cassiano Ricardo, decerto, propôs Martim Cererê como um poema épico. Ao compor seu poema em corpo de polifonia, que decorre de um conjunto dialógico — contencioso ou não — formado por sujeitos psicológicos, Cassiano Ricardo pisou o terreno romanesco. Ao compor Martim Cererê em partes (ou movimentos) que têm o formato de poemas autônomos, Cassiano Ricardo também pisou o terreno do lírico, e, daí, pode-se dizer que seu poema é muitíssimo híbrido, dir-se-ia: épico-romanesco-lírico. Como as partes (ou movimentos) de Martim Cererê estão obviamente enredadas em torno de um mito descrito pelo próprio poeta em nota paratextual (MC, 1983, p. 164), e como suas personagens não têm personalidade, quer dizer, não são sujeitos psicológicos, são sujeitos simbólicos, figuras, pode-se considerar este poema sobretudo como épico.
Quanto às personagens como figuras, vale destacar que a primeira delas converge para o próprio título do poema. Essa convergência é bem diferente de quando isso ocorre em um romance. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, o protagonista é um sujeito com problemas e paixões peculiares a seu modo de ser e de relacionar-se com o mundo. Obviamente, muitos podem identificar-se com Brás Cubas, bem como é possível que se identifique Brás Cubas em muitas pessoas do dia-a-dia. No entanto, isso ocorrerá parcialmente, como uma espécie de sinédoque sócio-histórica dos indivíduos. No caso de Martim Cererê, seu protagonista, antes de tudo, é um herói — ele realiza o feito que ninguém pôde realizar: traz a Noite, casa-se com a Uiara, gera os gigantes de botas sete-léguas e funda o Brasil-Menino —., e como tal ele é conforme todos os heróis: é capaz de sobre-humanidades, é capaz de materializar hipérboles. Martim (o herói) não é exatamente como Odisseu porque é lusitano. Isso quer dizer que os heróis são quase iguais, e diferem quase que somente quanto ao povo do qual fazem parte. Ainda assim, nisso os heróis também se assemelham, uma vez que são sujeitos pátrios — mesmo que de pátrias diferentes. Martim é por isso o elemento alegórico da gênese do Brasil e não um sujeito privado que participa da vida pública da história nacional. Como elemento catafórico, a figura que é Martim, desdobrada pelo subtítulo do poema, o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis, não apresenta referente e dá referência a um elemento marcado como não-humano, ao contrário do que literalmente seu nome (que é propriamente de um sujeito humano masculino) poderia indicar; e, estranhamente, faz referência a algo marcado como não-fabuloso mesmo sendo o contrário disso. Como não-fabuloso, Martim é o próprio Brasil, é o país. Como fabuloso, é o herói, o sujeito capaz de materializar hipérboles. Como não-humano, é também, em convergência a não-fabuloso, o país; enquanto como humano é o Marinheiro lusitano que aporta na terra indígena.
Martim também é composto por Matinta Pereira, Sacim Cererê e Saci-pererê para figurar a "fábula das três raças felizes": o autóctone (indígena tupinambá), o branco (lusitano) e o negro (africano) que, respectivamente, em Saci-pererê (Colomi), Matinta Pereira (Zozé) e Sacim Cererê (Ioiô) se efetiva. Por outro lado, no entanto, traços negativos povoam a figura, e esta assume metáfora concomitantemente da figura lendária do menino traquinas das matas brasileiras, do homem português e do país propriamente dito — de sua gênese à evolução cultural e tecnológica, cujo esforço de produção se deu principalmente pelas mãos operárias do negro. Isso de traços negativos decorre de Martim Cererê ser uma dessas obras que Octávio Ianni chama de "ensaios de interpretação do Brasil". No caso da descrição realizada por Ianni, o poema de Cassiano Ricardo seria algo entre a quarta e a quinta família deinterpretação nacional — a saber:
a) O Brasil singulariza-se por uma "democracia racial", a despeito dos séculos de regime de trabalho escravo e da forma pela qual são tratados prática e ideologicamente o índio, o negro, o árabe, o japonês, o polonês e outros indivíduos e coletividades desse singular "laboratório racial".
b) O Brasil tem sido visto como um país que se destaca por sua "história incruenta", uma história de "revoluções brancas", na qual floresce a "democracia racial", "lusotropical".
Segundo uma família e outra, Martim Cererê é uma obra que vereda por onde o Brasil seria mesmo resultado de uma "democracia racial", e que as três raças primeiras seriam algo que "puras", ignorando-se, pois, que o elemento autóctone, o elemento branco e o elemento negro são simplificações de uma já variada e miscigenada etnia de vários povos, cuja cor média da tez se tornou o referente de caracterização de diversos povos em um único autóctone, de outros também diversos em um único branco e de mais outros tantos em um único negro. Assim, Martim Cererê interpreta o Brasil idealizando a formação racial do povo, ignorando ou se indiferenciando à história de fato cruenta e de revoluções vermelhas que moveram a organização sócio-histórica dos conglomerados sociais do país. De todo modo, o poema de Cassiano Ricardo não perde em poesia nem é historicamente negligente porque recorta apenas aquilo que diz respeito à formação do Brasil segundo uma participação e uma relação o menos contenciosa possível entre os indivíduos da simplificação das três raças
Outras figuras (a Liara e os gigantes de botas sete-léguas), entre tantas, chamam a atenção por também não terem referente. A Liara, a princípio, coincide com a personagem principal, e muito embora seja possível vincular seu nome ao que se entende por uma sereia — que também não tem referente — é uma figura fabulosa. A presença da Uiara no poema, consequentemente, torna-se anômala, uma vez tomada literalmente. Conquanto, se a figura empregada como metáfora precisasse necessariamente de referente, jamais seria possível entender o poema. No percurso de Martim Cererê, desde o "Argumento", a Uiara é tratada pelo epíteto "moça bonita", e por mais que seja possível aceitar que há no mundo um ser metade mulher e metade peixe, este não é uma "moça" de fato. Eis a descrição da Uiara: "Dizem que tinha cabelo verde, olho amarelo. O mato é verde; pois os seus cabelos eram mais verdes. A flor do ipê é amarela; pois os seus olhos eram mais amarelos" (MC, 1983, p. 4).
Contudo, o que poderia se restringir aos limites do fabuloso, permite que a Uiara também seja alegoria do próprio Brasil: "Ilha cheia de luz, Ilha verde" (MC, 1983, p. 33); "País das Palmeiras" (MC, 1983, p. 39); e "Minha esposa é a Terra firme" (MC, 1983, p. 146). A identidade sêmica entre o conteúdo da figura e cada expressão nos permite perceber uma polissemia, porque há semas que transitam para a Uiara como a própria natureza do Brasil — que é indígena -, aportada pelo elemento branco e pelo elemento negro; aportada, pois, para formar uma nação. Se o Brasil desse acasalamento, o Brasil-nação ou "Brasil-Menino", é soma das três raças primeiras, o Brasil antes, o Brasil-natureza é a Uiara. Essa alegoria, de certo modo, impede a ambiguidade interna que uma leitura equivocada possa ressaltar: coincidir Martim e a Uiara com o mesmo referente, o Brasil. Essa seria uma leitura equivocada porque, conforme foi dito, Martim e a Liara não têm referente. Embora o primeiro figure a nação e a outra figure a natureza do país — o que parece dar no mesmo —, o símile se desfaz porque cada uma dessas figuras apresenta significado afetivo díspar: a nação é civilizada (formada por cidades), enquanto a natureza é silvestre.
Os gigantes de botas sete-léguas ocupam boa parte do poema. São eles: os Sardinhas, pai e filho; os três Fernandes: André, Domingos e Baltazar; Botafogo; André de Leão; Raposo; Manuel Preto; Borba Gato; Fernão; Anhanguera; Gago; Tumurucaca; Pascoal Moreira; Pay Pirá; Caga-fogo; Domingos Jorge Velho; Manco; Jaguaretê; Polaio; Pé de Pau; Apuçá; Bixira; El Tuerto; e Negro. Todos simbolizam os bandeirantes e têm um referente respectivo na história do Brasil. A princípio, o poema de Cassiano Ricardo, no entanto, parece instigar a leitura dos gigantes de botas sete-léguas como filhos da miscigenação, como metamorfoses propriamente ditas, e, logo, como prolongamento do heroísmo, à guisa de metonímia. Isso nos incita a interpretar que os gigantes de botas sete-léguas compõem outra alegoria: o Brasil-herói.
A título de exemplo ou ilustração, vale observar que Borba Gato é indicado para "general do Mato" por El-Rey, o que imprime nova figuração: o gigante não apenas como elemento desbravador da Terra Grande, como herói, mas também como representante direto da política económica colonialista do Reino, porque suga a riqueza da terra. E isso decorreu somente para a manutenção de Portugal. Logo, ainda que inspirem a figuração do brasileiro — o filho da miscigenação — como aquele que enfrenta as adversidades, os gigantes de botas sete-léguas também figuram que a aventura de desbravar o Brasil a pé foi um grande empreendimento econômico, e não apenas ato de bravura, coragem e heroísmo, mas também da necessidade de fazer a Colônia produzir a serviço da Metrópole.
Essa leitura de Martim Cererê, oitenta anos depois da publicação de sua primeira edição, convida, finalmente, a repensar o épico na poesia brasileira moderna e contemporânea. Dado o que é próprio da personagem romanesca —incluindo a personagem do conto e da novela —, vale refletir que o romance não é, necessariamente ou pelo menos nem sempre, a epopeia do mundo atual. Depois da ressignificação da linguagem literária empreendida pelo romantismo contra os excessos reguladores dos modi ponens do classicismo francês, o hibridismo cada vez mais tem lugar na literatura. Em termos de poesia, porque no poema se vive a experiência da forma mais intensamente, e porque desde Platão está assinalado que o épico é um gênero misto,10 cabe observar que a polifonia, pela via das figuras, funciona como uma estratégia para tornar este gênero possível à poesia moderna e contemporânea. Passados esses oitenta anos, também vale repensar, conforme se viu neste ensaio, o discurso político que tem voz em Martim Cererê, contudo — inverso à praxe -, jamais a fim de derruir o merecido lugar canónico do poema de Cassiano Ricardo, uma vez que não é falsa sua interpretação da formação sócio-histórica do Brasil, ainda que seja limitada.
1 Doravante, apenas Marfim Cererê.
2 Considere-se polifonia a presença de vozes distintas no texto, no sentido de que vozes implicam em "lugares" como este símbolo e não aquele, esta personalidade e não aquela, este sujeito e não aquele, esta variante linguística (e, logo, esta identidade dialetal) e não aquela, etc. Tal descrição, certamente, decorre da definição bakhtiniana de polifonia (cf. BAKHTIN, Mikail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.). No entanto, não se restringe a tal definição, porque no género épico as vozes nunca são de todo descentralizadas da voz do sujeito-narrador, porque a personagem do épico, diferentemente da personagem do romance, não é um sujeito psicológico, é um símbolo, uma figura.3 MC se refere, como bem parece, à síntese Martim Cererê. A edição consultada - RICARDO, Cassiano. Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis. 16. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1983. - respeita a forma final do poema, que é aquela de sua 12a edição, a qual foi deferida como definitiva pelo poeta, em revogação das demais. De todo modo, essa 12ª. edição é de 1972, que é o ano da morte de Cassiano Ricardo, logo, não poderia haver mesmo uma outra mais adequada. Doravante, ao indicar página(s) de determinado trecho do poema, a referência a Martim Cererê seguirá esse modelo.
4 Certamente, o primeiro exemplo disso na poesia brasileira é o caso Gonçalves Dias. A obra épica do cantor de I-Juca Pirama é o acme do indianismo, do regionalismo e do sertanismo na poesia nacional oitocentista — ainda que a imagem do elemento branco esteja sobrelevada na feitura do caráter heróico do elemento autóctone, e que o elemento negro não figure na consubstanciação formadora do brasileiro.
5 MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p. 191-199.
6 Lembre-se de que a primeira edição de Martim Cererê é de 1928.
7 Talvez, por convenção socioestilística, Martim Cererê não é considerado um romance, uma vez que a partir do século XVIII esse gênero se tornou assinalado pelo modo cursivo da prosa. Mas isso é uma outra questão, e com tal mereceria outro ensaio.
8 IANNI, Octávio. Tipos e mitos do pensamento brasileiro. Revista brasileira de ciências sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 6-10, jun. 2002
9 IANNI, op. cit. p. 6 Destaques do autor.
10 PLATÃO, d república. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os pensadores), p. 84.
|