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MÁRIO DE ANDRADE — “O LOSANGO CÁQUI

Casa editora A. Tisi—S.Paulo, 1926.

 

Resenha de Manuel Bandeira

 

 

 

Extraído de

 

POESIA SEMPRE – Ano 5 – Número 8 – Junho 1997. Revista semestral de poesia.  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional de Livro.  Editor Geral: Antonio Carlos Secchin.  Ex. bibl. Antonio Miranda.

 

 

 

   Na veste de Arlequim cada losango tem a sua cor. Cáqui foi a cor de um mês de exercícios militares na vida do poeta:


Afinal
Este mês de exercícios militares:
Losango Cáqui em minha vida.
...Arlequinal...

 

   Como se vê, aparece ainda neste livro o adjetivo-refrão de "Paulicéia Desvairada". Mas aparece como ressonância de harmónico, recordação já quase sorrindo dolorosa da crise de amargura e escárnio que explodiu naquela obra.

 

   Todavia o cáqui deste Losango não guardou toda a sua pureza de cor. Tem vezes que, mesmo sem fechar os olhos, a gente só vê a cor complementar. A cor complementar do cáqui dos exercícios militares foi no caso o ruivo duns cabelos fogaréu:

 

        Esse lugar-comum inesperado: Amor.

 

   Este sorteado preferia ao "olhar altivo para frente!" da escola o olhar quebrado do seu amor. A aventura da emboaba tordilha nos valeu um madrigal que é uma delícia. Madrigal não! Madrigal é coisa das bandas de além e dos tempos de antanho. Brasileiro da gema diz louvação. A Louvação da Emboaba tordilha. Que gostosura de agrado! Parece uma serestazinha para adormecer boneca:

 

Eu irei na Inglaterra
E direi pra todas as moças da Inglaterra
Que não careço delas
Porquê te possuo.

 

   As manobras militares duraram um mês. O lugar-comum inesperado também, segundo se depreende de certas reflexões desencantadas com que o poeta corrige as miragens primeiro embevecimento. Pudera! Logo no começo dos exercícios o amante se apresenta uma manhãzinha fardado no quarto de dormir da preguiçosa. Ela riu, bateu palmas, bejou-o. O soldado teve uma decepção e ficou triste. Quem ama, apreende:

 

Quando a primeira vez apareci fardado,
Duas lágrimas ariscas nos olhos de minha mãe...

 

   Havia no ar o temor de revoluções futuras. O poeta não tinha o gosto da tarimba. Formou evidentemente de má vontade na esquadra do cabo Alceu. Marchava "tempestuoso noturno", olhos "navalhando a vida detestada". Mas havia nas madrugadas de manobra tanta coisa bonita, para ver! A manhã era tão grande! Um, dois, um, dois, era tão bom respirar! Tão gostoso gostar da vida!

 

 

   Em tais momentos

 

        A própria dor é uma felicidade!

 

    O poeta cutucou o pessimista, o soldado sorriu gostoso e os poemas vieram vindo numa encantadora frescura de sensações. Junto de um poema sério, uma caçoada maluca.  Entenda-se porém que no fundo o livro é triste.

 

   Em prefácio nega o autor aos seus versos o nome de poema. Faltam-lhes, alega, o que ele chama a intenção de poema, coisa construída, peça inteira, fechada, com princípio, meio e fim. De fato eram assim as poesias que compunham o "Losango" na primeira redação. O livro, porém, saiu anos depois, e nesse intervalo o poeta o alterou, tirando-lhe, ou pelo menos prejudicando-lhe, aquela espontaneidade de caderneta lírica de reservista. A unidade artística foi sacrificada à unidade psicológica. O autor juntou trechos de outras épocas esclarecedores de sua personalidade de então. Ora, muitos destes são poemas no sentido que Mário atribui à palavra — de peça de arte acabada, com princípio, meio e fim, e não peça puramente lírica como a maioria e sobretudo por exemplo os de n. XXXV, XXXVI, XXXVII, espécie de intermédios que não começam nem acabam. A Louvação da Emboaba Tordilha, a pungente Escrevaninha, as duas admiráveis Toadas, Flamingo, Jorobabel, Tabatinguera, e talvez outros, são poemas construídos. A técnica destes aparenta-se à dos superrealistas (aos quais de resto nada devem, anteriores que são ao manifesto de André Breton): automatismo psíquico de imagens declanchado por ppor um palavra possivelmente denunciadora de complexo. A de Jorobabel feriu fundo a memória e a sensibilidade de Mário. O pessimismo truculento do n. XXXIX (Eu trago a raiva engatilhada ...) se fez piedade, embora se conservando sempre pessimismo, e foi choro aberto sobre a vida "excessivamente infinita" nesse poema que é um guia bíblico estupendo.

 

   Nas Toadas se começa a sentir na obra do poeta a influência da maneira popular, que é uma das duas faces da técnica atual de Mário (a outra é um poetar que de rejeita todo encanto sensorial, todo apelo excitante exterior, sem prejuízo porém da emotividade, que se mantém todavia naquela calma ardente e sublimação de pensamento tão de encontrar na poesia inglesa).

 

   Ao contrário de tudo isso, as poesias do Losango que constituem propriamente  do Losango caracterizam-se pela espontaneidade lírica. A gente não vê a poesia feita:  fazê-la psicopoesia experimental. Poesia em estado nascente.

 

   A mim confesso que o lirismo basta. Admiro um poema bem construído, mas o que me faz amá-lo é o lirismo que nele haja. A Mário não basta. A poesia pra ele tem que ir além. Por isso ele diz que procura. Mentira! Mário não procura: acha. Está sempre achando.

  Quando se vira para outros lados pensa que está procurando.

  

No que diz respeito à linguagem, Losango Cáqui é o primeiro livro escrito em nossa língua. Adotando sintaxes e expressões correntes na conversação da gente educada, idiotismos brasileiros, psicologia brasileira, Mário de Andrade conseguiu escrever brasileiro sem ser  caipira nem rude.

 

 

In: Revista do Brasil, 30.9-1926

Página publicada em março de 2018

 


 

 

 
 
 
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