|   Marcelo Montenegro: um “poeta fudido entre milhões...”   Por RICARDO MATTOS Deriva  etílica... traçado trôpego das pernas encurtadas que desafiavam a retidão das  calçadas. Acariciava alguns muros para me escorar: mania bêbada para aliciar  alguns acasos. Não me surpreenderia de tropeçar com qualquer poeta jogado ao  meio-fio. Sorrateiro, um cão atravessa sem hesitar a avenida pilhada de carros  velozes. Algo se precipitava... faro para precipícios. Entrei  já meio fendido no Centro Cultural de SP e peguei, displicentemente, um impresso  na prateleira. Era um pequeno teste de realidade: sentir se meus braços ainda  estavam ali. Abri aleatoriamente a página, esperando ler algo sobre um  espetáculo... oficina... ou qualquer coisa assim. Era o “Buquê de presságios”,  poema da coletânea “_Matinê”, do poeta Marcelo Montenegro. Espantei-me, olhei  ao redor com tom de desespero para ver quem tinha me pregado a peça... Mas era  a tal poesia que aquela noite toda tinha rido da minha cara..... Devorei  os poemas com a paciência de um famélico. Esses versos movediços que flamejavam  letras em dança. A poesia de Marcelo Montenegro nos belisca com uma coleção de  sensações inusitadas provenientes de desprezíveis situações cotidianas. Espécie  de restituição poética dos simples fatos que passam desapercebidos por  estarmos, talvez, tão capturados pelos grandes acontecimentos. O “baque da  privada gelada”, ao mesmo tempo que “alguém, no quinto sono, / deve estar  virando para o lado”; “a esfiha que sobra / na lanchonete que fecha” ou as  “bêbadas anotações no guardanapo”. Algo  da sensibilidade do poeta para captar nuanças em detalhes e colocá-las, talvez  de maneira bastante gratuita, em versos nos quais adquirem um novo significado.  Eram mesmo essas correspondências de Baudelaire, ou a aproximação de realidades  distintas vislumbradas por Pierre Reverdy sobre os famosos versos de  Lautreamont. Mas em Marcelo Montenegro sem o toque do grotesco, do  escatológico, do grandiloqüente.  Justamente  pela simplicidade, essas imagens ou situações eternizam momentos  insignificantes que passam a ser revisitados com novos olhares. São pequenas  situações que nos envolvem no dia-a-dia; daí talvez a força dessa poética que  nos faz entrar no poema e sair dalí com uma sensação de renovação.  Seriam mesmo desimportantes esses detalhes ou  falta o toque poético para vislumbrá-los como algo inusitado e grávido de  outros sentidos? Onde estava a última vez em que me vi refletido nos carros que  passam? Esse singelo e corriqueiro fato que o poeta apalpar como “As janelas  dos carros / fatiando meu reflexo.” Provavelmente pensava nessas outras coisas  superimportantes, como a merda da cidade em que vivemos ou os pontos de fuga da  civilização, deixando escapar essas outras sensações.... Seriam pequenos esses  fatos ou pequena a nossa percepção daquilo que vivemos de mais simples? Essa  poesia retrata o poeta como aquele servidor da Memória. Não de grandes epopéias  ou fantásticos sentimentos subjetivos, mas uma memória cinematográfica como um  plano seqüência de nossos extravios. Esses fortuitos acontecimentos que, de tão  pueris, ficariam esquecidos sem essa poesia que os recoloca no fluir da  existência... Sente-se que é a própria vida que desfila como essa esquisita  conexão de futilidades desimportantes ao acaso.   Ricardo Mendes  Mattos é poeta. Página publicada em setembro de 2011 
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