A IRREVERÊNCIA E A CRIATIVIDADE
DO POETA
JOSÉ PAULO PAES
ANTONIO MIRANDA
Professor titular e emérito da Universidade Brasília
Diretor da Biblioteca Nacional de Brasília
“Aqui lo extraordinário está en lo común y corriente. Los ámbitos privilegiados son los territórios de una entrañable geografia personal que comienza y termina en las calles del pueblo natal.”
Na contracapa da edição em espanhol de “La poesia está muerta... juro que no fuí yo” (Bogotá, 1995)
“Onde um lúcido menino
propõe uma nova infância.
Ali repousa o poeta.
Ali um voo termina
outro voo se inicia.”
JOSÉ PAULO PAES
José Paulo Paes foi um dos maiores críticos de nossa literatura e um dos nossos maiores e mais versáteis poetas do século 20. Combinação incomum. Nem todos os poetas têm ou tiveram um embasamento teórico e metodológico como ele teve; muitos críticos que se apresentam como poetas têm ou tiveram autocrítica como ele teve...
José Paulo Paes era um ser incomum, raro, especial. Poeta, crítico literário, tradutor excelente, grande figura humana.
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA
a poesia está morta
mas juro que não fui eu
eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la
imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres carlos drummond de andrade manuel bandeira murilo mendes
vladimir maiakóvski João cabral de melo neto paul
éluard oswald de andrade guillaume apollinaire sosíge-
nes costa bertolt brecht augusto de campos
não adiantou nada
em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou incer-
to) José paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada de
ferro araraquarense
porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro
araraquarense foi extinta e José paulo paes parece nun-
ca ter existido
nem eu
Um extraordinário senso de humor, uma refinada ironia frequentava seus versos y sua prosa. Nem sempre prosaica... pois versajava no versilibrismo mais explícito até pelos geometrismos da poesia concreta. Versátil, renovador, criativo. Humor... refinado, sutil. Surpreendente. Um poeta maior sempre surpreende, sem rebuscamento, de uma forma tão simples que esconde a virtuosidade de sua poiesis... Ser empolado e rebuscado é mais fácil do que ser simples sem ser simplório... Vocês me entendem... Ele certamente “ouvia” os poemas que escrevia, pois queria comunicar-se conosco, com seu público, sem ser óbvio... [Como diria o Barão de Pindaré Júnior: é óbvio que fugia do que era óbvio... transformando o óbvio em surpresa, pela teatralidade de sua composição, como é patente nesses versos em que relembra o Bispo Sardinha, personagem de nossa história pátria:
L´AFFAIRE SARDINHA
O bispo ensinou ao bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente na eucaristia.
E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente.
Mas, repitamos até à exaustão: irônico, incansavelmente bem humorado, até mesmo quando zombava de si mesmo e de todos os valores perpétuos, de rebanho e condicionamentos sociais, litúrgicos, convencionais, comezinhos..,
“Ouçamos” esta invectiva despiadada:
A UM COLEGA DE OFÍCIO
você não gosta do que eu escrevo
eu até gosto do que você escreve
talvez eu não seja tão exigente quanto você
Pois é... ele “até” gostava do que outros escreviam... Mas gostava de muitos, de verdade, como deixou patente ao citar os poetas de sua constelação mais íntima: Bandeira, Drummond, Maiakóvski, Éluard, Murilo Mendes... E era um estudioso incansável desses poetas, e um tradutor exímio (perdoem os adjetivos..., mas ele excedia nossas expectativas nos ofícios em que era exímio...).
Nesta homenagem que a Biblioteca Nacional de Brasília faz ao poeta, vamos concentrar em sua poesia, sem pretender fazer a heurística ou a exegese própria dos críticos. Os versos de José Paulo Paulo não requerem explicações, se impõem, embora seja lícito buscar um entendimento de sua virtuosidade criativa, uma análise de sua “arquitextura” tão refinada que nunca foi amaneirada e forçada, barroco sem ser jamais hermético.
Metaforicamente, metapoeticamente. A metáfora é a transcendência e o milagre da ressignificação das coisas, relacionamento entre os possíveis e os impossíveis pela alquimia da poiesis:
À GARRAFA
Contigo adquiro a astúcia
de conter e de conter-me.
Teu estreito gargalo
é uma lição de angústia.
Por translúcida pões
o dentro fora e o fora dentro
para que a forma se cumpra
e o espaço ressoe.
Até que, farta da constante
prisão da forma, saltes
da mão para o chão
e te estilhaces, suicida,
numa explosão
de diamantes.
O gargalo da garrafa como lição de angústia... Aprender a conter-se no espaço da garrafa... O dentro fora e o fora dentro... Saltando da mão para o chão em suicídio, transformando-se em diamantes... Tanto por meio de poucas palavras, aparentemente tão corriqueiras e até banais... Sem aqueles adjetivos esdrúxulos, sem aquelas imagens recarregadas que pretendem ser metáforas e são meta foras, desperdícios, exibicionismos de obviedades... Minha mãe era cruel sobre estes exibicionismos “culteranos”, de quem complica o simples. Ela dizia que é mais fácil ser complicado do que facilitar o simples... José Paulo Paes é discreto, direto, sem ser óbvio.
Um exemplo de sua habilidade no tecer a metapoesia: poesia sobre poesia, poesia como entendimento do mundo, o mundo como prática da poesia. Uma forma de ver e interpretar o mundo. E, no caso de José Paulo Paes, de parafrasear sem citar o texto, apenas sugerir (para quem tem intimidade com os poetas que ele exalta). Considerava-se um “aluno” de poesia, mas era um mestre:
O ALUNO
Sãos meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância.
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.
Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.
São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.
Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.
Um soneto sem aquela cantilena rançosa, sem a verborragia dos maneiristas... Os líricos sapatos de Rimbaud! Diz isso portando o bigode de Drummond... Pobre verso?? Mas explode e dança na algibeira do poeta.
Era um poeta social, encravado na realidade de seu tempo, mas de forma teleológica, de vastos horizontes. Não ficava no ramerrame das coisas comezinhas, do protesto de outdoor, indo à essência e fugindo da aparência. Breve, sem confundir ou persuadir pela exaustão, direto mesmo quando pretendia ser indireto e discreto...
A MÃO-DE-OBRA
São bons de porte e finos de feição
E logo sabem o que se lhes ensina.
Mas têm o grave defeito de ser livres.
Poeta visual? Sem dúvida. Até a poesia mais textual e discursiva é visual em sua apresentação. Há quem saiba dispô-la estética e adequadamente no espaço, como anunciou Mallarmé, “orquestrando” o texto na página em branco. Ou e.e.cummings ideogramatizando textos em visualizações gráficas. Ou verbivocovisualizando as suas composições como Haroldo de Campos. José Paulo Paes experimentou tudo, sem reservas, mas seu exercício foi sempre criativo, lúcido e lúdico. Vejamos nesta homenagem que fez no dia 13 de outubro de 1968, chorando a morte do nosso grande modernista Manuel Bandeira. Bandeira se considerava um poeta “menor”, mas estava entre os maiores de nossa poesia.
Poeta menormenormenormenormenor
menormenormenormenormenor
enorme
As letras em negritas são um recurso meu, para demonstrar o que o leitor percebe na sonoridade do verso durante a leitura: menorme. Enxergava nas letras o conjunto, nas palavras os seus relacionamentos íntimos, era um semioticista em tempo integral, tinha um olho de leitor visual, era origâmico e ideogramatíco em sua (re)visão do Mundo 3 de Karl R. Popper, do conhecimento objetivo, do registro do saber humano em formas exomáticas, coisificações do ser. Os poemas são coisa, objetos observáveis e interpretáveis, dialogando com a nossa inteligência, com a nossa sensibilidade, despertam nossa memória ou preenchem os vazios no nosso processo de formação e entendimento do mundo. José Paulo Paes era um virtuose, um virtuoso, um ventríloquo por meio das palavras, um criador de mundos para dialogar e compartilhar. Fez e continua fazendo parte de nossa form/ação.
Sabia contradizer, insinuar, e até confundir... Conduzia o leitor a contradições para forçar o raciocínio, provocar a dúvida, a revolta, o mal-estar... Era iconoclasta, um recôndito anarquismo como libelo contra a impostura dos saberes sacralizados, oficializados, normatizados. Provocava reações adversas, ria de nós e de si mesmo... Argúcia de gênio, divertido e sarcástico... Horror à monocultura...pavor da mesmice e da crendice pomposa e impostora.
A CRISTANDADE
Padre açúcar,
que estais no céu
Da monocultura.
Santificado
Seja o nosso lucro,
Venha a nós o vosso reino
De lúbricas mulatas
E lídimas patacas,
Seja feita
A vossa vontade,
Assim na casa-grande
Como na senzala.
O ouro nosso
De cada dia
Nos dai hoje
E perdoai nossas dívidas
Assim como perdoamos
O escravo faltoso
Depois de puni-lo.
Não nos deixei cair em tentação
De liberalismo,
Mas livrai-nos de todo
Remorso, amém.
Quem não adoraria ter escrito os versos que ele nos legou? Mas agora eles são nossos e podemos reinterpretá-los, transformá-los, assumi-los e até modificá-los. Nietzscheanamente, eu transformaria o verso “E perdoai as nossas dívidas” em “E perdoai as nossas dúvidas”, nós, desterrados na terra, que temos o direito de duvidar e contradizer... Sem o medo do remorso e do pecado.
José Paulo Paes lindava com a antipoesia, antecipava certas cartadas satíricas pela inventividade mais exacerbada e cruel:
SEU METALÉXICO
economiopia
desenvolvimentir
utopiada
consumidoidos
patriotários
suicidadãos
Cáustico, burlador, uma criança brincando e fustigando a nossa paciência... Levando-nos à reflexão mais descarnada, sem adornos, com a intimidade do pensador livre e libertino. Às vezes até incomoda, acorda, discorda, esperpentiza.
GRAFITO
neste lugar solitário
o homem toda a manhã
tem o porte estatuário
de um pensador de Rodin
neste lugar solitário
extravasa sem sursis
como um confessionário
o mais íntimo de si
neste lugar solitário
arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas próprias entranhas
neste lugar solitário
faz a conta doída:
em lançamentos diários
a soma de sua vida
Explicações não lhe faltavam, fartas... Era um exemplo, pordar-se conta de sua existência no mundo, que é também o nosso, mesmo que não percebamos. Ele percebia e perseguia signicações que logo compartilhava, difundia.
SÍSIFO
hoje agora me decido
depois amanhã hesito
o dia detém meu passo
a noite cala meu grito
deuses onde? céu existe?
céu existe? deuses onde?
um eco que faz perguntas
um espelho que responde
e eu sísifo tardotriste
a tilintar as correntes
de dilemas renitentes
lá me vou sem vez nem voz
rolar a pedra dos mudos
pela montanha dos sós
Metapoesia e antipoesia... Ele sabia combinar o sim com o não, o antes com o depois, o sempre com o nunca. Sem ser relativista, sem ser positivista... Do ponto de vista dele, era um iconoclasta.
TERMO DE RESPONSABILIDADE
mais nada
a dizer: só o vício
de roer os ossos
do ofício
já nenhum estandarte
à mão
enfim a tripa feita
coração
silêncio
por dentro sol de graça
o resto literatura
às traças!
CANÇÃO DO EXÍLIO
Um dia segui viagem
sem olhar sobre o meu ombro.
Não vi terras de passagem
Não vi glórias nem escombros.
Guardei no fundo da mala
um raminho de alecrim.
Apaguei a luz da sala
que ainda brilhava por mim.
Fechei a porta da rua
a chave joguei no mar.
Andei tanto nesta rua
que já não sei mais voltar.
Deixo aqui esta epígrafe, ou epitáfio, a título de finalização de um diálogo com o poeta que espero seja contínuo, permanente e duradouro, já que nada é eterno... José Paulo Paes é imortal, enquanto durarmos.
Página publicada em outubro de 2015.
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