INVENÇÃO DE JORGE DE LIMA
por AFRANIO ZUCCOLOTTO
LUIZ BUSATTO — Montagem em Invenção de Orfeu,
Âmbito Cultural Edições Ltda., Rio de Janeiro, 1978.
A obra de Jorge de Lima oferece à crítica múltiplos caminhos de análise. Se um pequeno poema, de um pequeno poeta, está arriscado a conter em si matéria e forma suficientes para permitir ao intérprete variadas linhas de exame e perquirição, seja por seu lado técnico e linguístico, seja por seu alcance social e político, ou, o que é mais raro, por seu valor como expressão propriamente l rica, — que dizer do extenso, amplo, numeroso e tumultuário poema com que o autor de Essa Negra Fulo encerrou a sua carreira literária!
Invenção de Orfeu é o resultado da convergência de conhecimentos, sensações, representações e pensamentos, assim como de imagens, sentimentos e emoções, que o poeta acumulou na mente e no coração durante a vida; é a suma alegórica do seu aprendizado na terra; é a síntese de tudo quanto viu, ouviu, pensou, sentiu e imaginou, e que, finalmente, externou em versos, num ingente esforço de transposição de dados do mundo real e imaginário para o mundo da poesia. Aí se encontram, se cruzam, se justapõem e contrapõem, impelidas por movimentos ambivalentes de harmonia e repulsa, as informações da história e da geografia, da mitologia e do folclore, das lendas e epopéias, das ciências naturais e das ciências do espírito, das artes do tempo e das artes do espaço. De tudo isso é feito o poema. E tudo isso, e mais a experiência humana e poética do autor, é aí enunciado de forma direta ou indireta, clara ou ambígua. E por todos esses ângulos pode a obra ser estudada e esmiuçada.
À vista de caminhos tão variados, era natural que, entre os estudiosos dessa obra de Jorge de Lima, também surgisse alguém que se dispusesse a encará-la pelo ângulo das influências, isto é, dos autores e livros que mais fortemente marcaram a formação intelectual do poeta e de cujo domínio não pudera ele libertar-se na elaboração do poema.
A esse trabalho dedicou-se Luiz Busatto, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, na tese denominada Montagem em Invenção de Orfeu com que obteve o título de Mestre em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Tendo sido orientado, no curso de pós-graduação, por Gilberto Mendonça Teles, e subsidiado por moderna bibliografia referente à linguística e à teoria da literatura, Luiz Busatto, na sua tese, demonstra que o processo de composição adotado por Jorge de Lima, em Invenção de Orfeu, traz à lembrança a teoria da montagem, isto é, a técnica desenvolvida por Sergei M. Eisenstein com o intuito de tornar mais dinâmica e expressiva a sequência das imagens cinematográficas. Da aplicação dessa técnica ao processo de composição literária extrairia o poeta
efeitos de imitação que se sobrelevariam entre os que mais acentuadamente caracterizam o poema.
Segundo Luiz Busatto, Invenção de Orfeu deixa nitidamente transparecer, em certos segmentos, a influência da Divina Comédia, de Dante, do Paraíso Perdido, de Milton, dos Lusíadas, de Camões, e, preponderantemente, da Eneida, de Vergílio, memorizada na tradução de Odorico Mendes. Com excertos desses autores, às vezes alterados, às vezes transcritos na sua originalidade, Jorge de Lima compôs o seu poema, ora parafraseando-os, ora parodiando-os, ora fazendo-lhes simples alusões. E o processo de montagem faculta ao poeta um jogo incessante e renovado de combinações verbais e semânticas que se podem integrar umas às outras, ou umas com as outras colidir, ocorrendo isso. numa linguagem de remissão intertextual que, entretanto, não retira à obra o seu mérito e absolutamente não chega a inquiná-la.
Poema que, como se disse inicialmente, condensa e enuncia todo o repertório cultural adquirido e conservado por Jorge de Lima durante a sua existência. Invenção de Orfeu revela ainda, na observação de Luiz Busatto, a tendência metalingüística de voltar-se para si mesmo, para o próprio fazer poético, tendência essa que permite ao crítico considerá-lo como a epopéia da moderna epopéia.
Extraído da REVISTA DE POESIA E CRÍTICA, Ano IV, N. 6, 1979, Brasília, p. 61-62
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