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INTIMIDADE


por Marly de Oliveira

 

Extraído de 

POESIA SEMPRE.  Ano 13. Número 20. Março 2005. Revista trimestral de poesia.  Editor Luciano Trigo.   Rio de Janeiro, RJ: Fundação Biblioteca Nacional, 2005.  Ilus.  Ex. bibl. Antonio Miranda

A poesia de Adélia conseguiu o milagre de tocar a crítica e o leitor, mereceu crônica de Drummond, de Rubem Braga, análise minuciosa e clarividente de Affonso Romano de Sant´Anna, a admiração de Olga Savary, o empenho em editá-la sucessivamente de Pedro Paulo de Senna Madureira. Adélia surgiu já pronta, sem o longo caminho que fazem os poetas que sempre têm pressa e se lançam antes dos 20 anos. Festeja-se a juventude, a promessa que há nela e nem sempre se cumpre. Adélia, ainda bem jovem, tem a maturidade dos que se exercitaram na poesia e na vida e vem logo trazendo o essencial: o contato com um mundo real, pleno porque real, sem adorno, algumas vezes cruel, sempre verdadeiro. Claro que me refiro a uma verdade expressa através da palavra, que nem outra cabe quando se trata de poesia. E no caso da poesia de Adélia Prado há uma força de expressão, uma riqueza vocabular, tanto mais notável quanto mais precisa, um inesperado de imagens que desencadeia o espanto do leitor e é capaz de fazê-lo sentir, como se o tivesse vivido, o episódio mais cotidiano de uma cidade do interior do Brasil. A linguagem de Adélia Prado é incisiva, ela recria o real, não o inventa, nem o dilui. Ela faz apelo a um não sei quê que dormia não sei onde dentro de cada um de nós. Ela tenta integrar corpo e alma. Deus e o homem em uma só realidade, aceita tal qual é, refugindo todo o absurdo.

 

Adélia em 1976,em foto  de Olga Savary.

Affonso Romano de Sant´Anna diz de Adélia que é a figura mais feminina de nossa poesia até hoje, advertindo, no entanto, que ao assumir sua condição de mulher com um corpo e sua sabedoria de usá-lo, cruza seus textos com os de um Fernando Pessoa, um Guimarães Rosa, um Drummond, e exalta a junção de sua experiência feminina à fidelidade à paisagem que a circunda, que ela conhece, sempre pisando no seu chão, sem o menor constrangimento de exibir "a sorte comum das mulheres nos tanques", sem esconder a sensualidade que irrompe com a visão de um homem que está ali, ao seu lado, na sua concretude palpável, sem qualquer idealização.

0 sexo leva a uma fruição do corpo e do espírito com uma liberdade de fazer inveja, de tal forma se insere numa visão do mundo total. Porque essa visão de mundo não exclui nem a dor, nem a morte, nem a procriação, nem a alegria de sentir-se viva, palpitando no escuro de viver.

Não sei se correspondem a uma autobiografia os vários livros de Adélia, sei, no entanto, que o seu ser mulher se identifica com o ser mulher de toda mulher de forma mais absoluta e concreta e sem preconceitos que se possa imaginar. Nem há o cuidado de buscar uma coerência para quem tem de forma tão evidente a preocupação religiosa, porque ser religioso é aqui estar ligado ao que é vivo, que morre e renasce. Há em Adélia a alegria de pensar na ressurreição com o corpo para a vida eterna, no sentido estrito que lhe dá o cristianismo. Por isso o ser espiritual não elide o animal. "0 rapaz que palita os dentes tem um quadril tão sedutor que eu fico amando ele perdidamente/ Ele esgravata os dentes com o palito, / esgravata é meu coração de cadela".

 

E óbvio que não falta a inquisição
[nesse mundo completo:
Este vale é de lágrimas.
Se disser de outra forma, mentirei.
Hoje parece maio, um dia esplêndido,
os que vamos morrer iremos
[ao mercado.
0 que há neste exílio que nos move?

 

E se o leitor se detiver na sua prosa há de convir com Rachel Jardim que tem enorme afinidade com sua poesia, revelando de uma forma aparentemente simples as coisas mais profundas e sábias como quando diz: "Eu tenho pra mim, depois que a gente tem filho só resta uma tarefa pra fazer: cuidar deles. 0 que está mais perto do amor de pai e mãe é ódio de pai e mãe. Que graça tem meu boteco prosperar se falta alegria dentro da minha casa? Segue o fio da amargura das pessoas pra ver onde vai parar: esbarra no pai e na mãe. Não tô falando que bondade de pai e mãe acaba com o sofrimento das pessoas, não: seria muito analfabetismo da minha parte, sofrimento é destino de todos, porque somos filhos de Adão. Eu só quero dizer que se a gente se esforça pra ser pai e mãe com decência, para de pensar na gente, pra incomodar mais com estes que nós pusemos no mundo, eles vão dar conta de sofrer sem perder a esperança".

É assim que Adélia vai dando seu recado e o vamos recolhendo para meditação. Essa mulher sabe das coisas, é por isso que diz que "todo mundo tem que ter pra jejuar do seu". E sua poesia é o testemunho fraterno de alguém que acredita na Poesia como um "modo de salvação".

 

MARLY DE OLIVEIRA é poeta e tradutora. Escreveu este texto na década de 1970.


 

 

 
 
 
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