HERBERTO HELDER E WILMAR SILVA VENCEM A
EXAUSTÃO
Salomão Sousa
Se não for feita com empenho a busca de apreendê-la, a poesia não passa de uma atrofia em módulos ultrapassados. Ao elaborá-la, os seus construtores encontram formas diversas de alimentar o ordenamento do arcabouço de cada peça. Se há um obscurantismo, aí também há esforço na operação; se há quase reencontro com a gênese da palavra, aí também há o trabalho de intervenção para remodelá-la. Se não é para criar um centro de desconexão do significado aparente, a poesia deixa de ter a sua necessidade existencial enquanto elemento de ampliação do espaço já assegurado pelo real. O espaço já existe, a poesia só o afirma com outras possibilidades.
Trata-se de poesia obscura o que pratica Herberto Helder, mas só é possível esbarrar em outra espacialidade com outra devassa, outro corte na laranja, com outras flores no ânus. “Todo o discurso é apenas o símbolo de uma inflexão da voz.” Dentro dessa proposta, ele sugere imagens de respiração, de digestão, de dilatação, de movimentação. As palavras assumem identidades próprias, criando um espaço pessoal gerado a partir do universo experimental. Julga insuficiente a coordenação e a subordinação das frases. Busca a insubordinação do verso.
É possível assegurar que, em Herberto Helder, a língua deixou de ser a mesma. E, muito pelo contrário, ninguém poderá exigir postura do poeta para que conserve intacta a língua. A respiração no ato da leitura deverá ser reaprendida com a “inflexão da voz” definida pelo poeta. Portanto, não é de se estranhar que a leitura do poema passa a exigir novas modulações, sendo necessário compreender (e reaprender) a inflexão imposta pela criação, com a voz estabelecendo certamente novas inflexões na forma de ab/sorver o pensamento da fragmentação diluída no discurso, com seus ruídos, recortes, ferm’ent’ações. Quem não souber ler o ruído não é mais leitor – ainda não passou por uma mutação de novas inflexões de voz, de raciocínio, de perfumação do espírito. Toda a poesia obscura de Herberto Helder é signo desta convocação para outras possibilidades da imagética gestual das palavras, onde se questiona a identidade da linguagem e da vida, se as duas criam independências muito próprias:
“Pode ser o inventário do sono pode no casulo desdobrado quando a seda.”
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Se ocorreu em 1990 essa gesticulação do verso de Herberto Helder, a postura dos poetas não pode estar defasada. Sinto-me covarde, atualmente, se escrevo apenas meia dúzia de versos. Acho que a poesia anda meio preguiçosa. Pois não está exigindo artesania, sangue dos poetas. Precisamos trabalhar. Mesmo em um poema mais longo pode haver densidade. Se vivemos a época da fragmentação, que essa fragmentação se mostre internamente no poema, internamente no discurso, e, se necessário, na dispersão das palavras. E também não posso ser covarde a ponto de desconhecer a minha realidade, mesmo que a expondo com a fragilidade de meu conhecimento. Se não me manifesto, há uma nulidade de minha existência.
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Quem não tem fugido a esse compromisso é um poeta mineiro que começou a publicar nos anos 1990, tendo antes passado por outros terrenos de performance para compreender as possibilidades de outras inflexões para inserção da linguagem e do corpo. A obra de Wilmar Silva busca inflexão diversa da proposta por Herberto Helder. Nele, não basta a inflexão de voz, mas, no processo, entra também a inflexão do corpo e do antropológico da palavra. Trata-se de busca vitoriosa, que, recentemente, teve o mérito validado com a inclusão de um poema do livro Çeiva (1997) no vestibular da PUC de Belo Horizonte:
“prântanau ardmiru d long
farfalo u cumi dus serrus
i mi iscondu da cobracoral
ovi um barulo e vi insetus
q ciscais i rebentôo cigarras”
A poesia tem de gastar muita sola de sapato até chegar a um livro de poesia de autor contemporâneo que nos leve a acreditar que está ali um universo fechado de perfeição, com a imposição de uma inflexão de voz pessoal. Tenho esse sentimento com o livro Zut, de Djami Sezostre. Para mostrar essa inflexão nova, derruída, ruída em ruídos, Wilmar Silva obrigatoriamente teve antes de transitar em di’versos territó’rios e teria de se trans/nominar, já que a nominação das camadas da realidade, inclusive da autoria, deixa de ser a mesma nessa busca das origens da expressão poética, que se concretiza com exímia espontaneidade nessa obra.
Sinto que nesse novo livro, Wilmar Silva, com o pseudônimo de Djami Sezostre, conseguiu escavar o cansaço da língua, vencer a exaustão da insuficiência de expressão de uma época. Se não é mais possível comunicar com os usuais trâmites gramaticais, pois há exaustão de olhar o mesmo formato do verso e da imagética, ele conseguiu abolir as palavras usuais, deixando-as expressas só com o inconsciente. Virou o jogo: o real tem a mesma expressão, só que é necessário escavá-lo sob uma coivara de artifícios. O leitor participa do jogo não só como agente amorfo e decodificador, mas também como artífice do componente da expressão.
A poesia que transita com unidade inequívoca pelas dezenas de poemas, por mais de cem páginas de Zut, não é uma simples extensão do Concretismo. O Concretismo insiste no visual. E, em Zut, assim como nos livros anteriores - desde Çeiva – que completa 20 anos agora em 2017 - são as camadas de uma Cultura, aí a Língua, as Raças, a ancestralidade, que dão uma viva e vasta experiência de dizer e participar da experiência de ser e de construir. Quando chego a um livro assim, que certamente dará viço à forma de compreensão e à feição da poesia brasileira, sinto-me enriquecido por estar junto e estar vendo e estar sendo afetado e enriquecido com a visão alheia. Diante de obras como a de Herberto Helder e a de Wilmar Silva, sinto que a construção poética sai do medievo e avança para conexões que o futuro, em leituras desinibidas da tradição, acolherá como moldes de expressão.
Zut.
É o ápice de uma carreira brilhante, que deixa em dificuldade o autor, pois ele funciona quase como o esgotamento de pesquisa e execução. Uma evolução ímpar na poesia brasileira, de um autor que soube se desnudar de vez, abolindo todo o superficial, alcançando toda a espontaneidade que precisa encampar. É uma obra precisa que precisa ser conhecida por todos que estão dentro da poesia e que dela exige bons caminhos. Zut. Vilmar Silva/Djami Sezostre aprontou e me encanta ou. Zut. Estávamos precisando de uma poesia assim, viva de partição, de interrom’eru’pções, e, que, no fim, se faz compreender. Estávamos precisando de um autor que zombas’se do próprio ato da autoria, já que no antropológico não existe individuação nem individualismo. Um desenraizamento que completas’se sempre, que funcionas’se com o ruído. Zut com as raízes e a contemporaneidade de Herberto Helder.
Página publicada em março de 2018
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