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                   FORMANDO  E CONFORMANDO O HÁBITO DA LEITURA 
 Palestra de Antonio Miranda
 na Universidade Petrobrás,
 Salvador, Bahia, 18 de agosto de 2006
 
 
 1. RECORDANDO E DIVAGANDO
 
 Este é um tema com o qual dialogo e sobre o qual indago há mais de 40 anos, na  condição de escritor e de bibliotecário, e para o qual não encontrarei jamais  uma resposta definitiva. Como Diógenes, vale inquirir mesmo que as respostas  não se imponham convincentemente.
 
 Na Venezuela, ainda estudante, nos anos 60 do século passado, participei da  experiência extraordinária do Banco del Libro, uma instituição devotada à  promoção do hábito da leitura. Fazia coleta de doações de obras nos bairros de  Caracas e depois dedicava-se à tarefa de seleciona-los, na certeza de que a  leitura só acontece para valer quando faz sentido para quem lê. Líamos os  livros na tentativa de descobrir os possíveis leitores.
 Era uma técnica bem desenvolvida por pedagogos e bibliotecários no afã de  identificar algumas variáveis que predispusessem a viabilidade da leitura: o  nível de complexidade do discurso, os temas abordados, as idades previsíveis  dos leitores. Com a idéia de “filtro” — no sentido dado pelo filósofo Ortega y  Gasset — entre a torrente de obras e a comunidade potencial de leitores, para  facilitar o encontro extraordinário e revelador entre o autor e o leitor. Uma  mediação necessária.
 
 Estávamos conscientes do perigo de cairmos no limbo da censura. Do preconceito.  Da tendenciosidade de nossa postura de classe social, dos gostos individuais.
 
 Tentávamos ser o quanto possível eqüidistantes, distanciados como queriam  Brecht e Flusser, na posição de outrem, sem deixar-nos envolver pela vontade  própria, pelos gostos individuais. Tarefa complexa que pretendíamos alcançar  mediante a objetividade de um roteiro de leitura. Havia motivos para isso.  Algumas obras lidas resultavam banais, inúteis, mal escritas e até  preconceituosas e podiam ser “negativas” para os usuários. Um julgamento de tal  natureza era sempre um risco!!! Pensávamos em um leitor-padrão, um leitor comum....  Mas os seres humanos são por natureza desiguais...
 
 Eu mesmo fora vítima quando jovem. Era leitor de uma biblioteca no Rio de  Janeiro e a bibliotecária, com extrema boa fé, achava que as leituras que eu  fazia não eram adequadas para a minha idade. Nunca me proibiu de lê-las mas  chegou a perguntar-me por que um jovem de 14 anos estava lendo o “Anticristo”  de Nietzsche e o “Porque não sou cristão” de Bertand Russel. Estaria preocupada  com minha fé...
 
 Quando eu estava na CAPES/MEC na condição de assessor, nos anos 70, participei  de mais de um dos congressos de leitura (COLE) da Unicamp. Especialistas de  diversas áreas, majoritariamente educadores, reuniam-se em Campinas para  discutir teorias e metodologias relacionadas com a formação do hábito da leitura.  Pretendiam incorporar as descobertas em métodos pedagógicos que pudessem  reverter a chaga maligna da baixa qualidade de nosso ensino nas escolas  públicas e privadas. Devem ter chegado a bons resultados mas nunca a vencer o  problema entre professores e alunos. Que se saiba, de lá para cá o ensino em  todos os níveis cresceu muito em termos estatísticos e tudo indica que piorou  em termos de resultados, na formação de leitores e de cidadania.
 
 Depois, o nosso entusiasmo cresceu diante da extraordinária experiência da Casa  da Leitura, que era patrocinada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, nos  tempos da direção de meu amigo Affonso Romano de Sant´Anna, a quem prestava  alguma assessoria no campo da biblioteconomia. A especialista no assunto era Eliana  Yunes, que se apresentava em fóruns internacionais promovidos pela Unesco.  Chegaram a criar metodologias e programas de treinamento de professores que  agiriam como multiplicadores das técnicas de leitura nas escolas e até mesmo  iniciariam as práticas por todo o Brasil, para criar centros de capacitação.
 
 A convicção era de que o desastre da educação estaria na incapacidade de  leitura de professores e estudantes. Os professores que pretendiam ensinar a  ler não eram leitores, não tinham hábitos arraigados nem técnicas capazes de  transformar a leitura em prática útil e prazerosa. Davam a ler obras que não  haviam lido e liam juntos textos que tampouco sabiam interpretar, sem falar que  tais textos estavam quase sempre descontextualizados, alheios aos interesses e  histórias de vida das pessoas. Resultavam maçantes, impertinentes,  desagradáveis, um desserviço à idéia de promover leitura. Ao contrário,  entranhavam antipatias e rejeição nos alunos pelos autores clássicos e  contemporâneos, quase sempre inadequados para o contexto escolar e comunitário.
 
 Mas aquela experiência não teve continuidade. Houve um episódio triste de  embate de personalidades e desvios ideológicos. A professora Yunes acabou  incompatibilizando-se com o ministro e tanto ela quanto o Affonso foram  afastados dos cargos que ocupavam. E o programa não teve mais o brilho nem a  força, entrando naquela perversa cultura da descontinuidade administrativa que  enterra tantas boas idéias e tantos projetos promissores entre nós.
 
 Como resultado desses fracassos contínuos, estamos hoje (2006) na triste  situação de que apenas 26% de nossa população estão em condições de ler e  entender minimamente um texto. Três quartas partes de nossa gente não é capaz  de entender uma bula de remédio, um manual de operação ou mesmo uma obra de  literatura ainda que escrita numa linguagem acessível e usando um vocabulário  corrente.
 
 É certo que temos muitas iniciativas de sucesso, com resultados animadores.  Lembro-me da campanha de leitura promovida pela Hoechst do Brasil, distribuindo  livros de boa qualidade, devidamente orientados para públicos específicos, com  design e diagramação adequados, letras graúdas e ilustrações atraentes, em  edições primorosas e resistentes. Ninguém mediu o impacto daquela meritória  iniciativa na formação de leitores. Certamente que chegou a bons resultados,  que deve ter valido para a transformação de muita gente pela leitura, ainda que  por pouco tempo e em espaços definidos.
 
 Quando a Hoechst lançou sua campanha, eu trabalhava na montagem do Comut – um  programa de acesso a cópias de documentos para cientistas e pesquisadores.  Tinha um bom relacionamento com os técnicos da TV Globo e soube por eles que a  Globo também pretendeu lançar uma campanha própria. Acreditava-se que bastaria  colocar uma Regina Duarte lendo numa novela ou um personagem do Sítio do  Pica-pau Amarelo com um livro na mão para fomentar o interesse pela leitura.  Ingenuidade. Pode até funcionar para alguns, mas não para a esmagadora maioria.  Imaginava-se o Romário com a A Divina  Comédia de Dante Alighieri nas mãos ou a Xuxa com o Pequeno Príncipe de Saint Exupéry lendo trechos do livro para seus  telespectadores... Desistiram da idéia. Chegaram à triste conclusão de que  recomendar obras às crianças, que não tinham onde lê-las, seria mais  contraproducente do que benéfico. Onde estavam as bibliotecas escolares e as  bibliotecas públicas para tantas crianças desassistidas? Dessa constatação  melancólica teria surgido a proposta da campanha da Hoechst: iriam falar de  livros que efetivamente estariam ao alcance das crianças, em escolas. Mas as  proporções do projeto eram modestas em relação ao universo (perverso) das  crianças a serem atingidas...
 
 Não pretendo enveredar-me pela análise das causas econômicas, sociológicas,  etc. que afetam uma questão tão complexa como a da leitura.(*) Se aplicarmos o  método do pensamento complexo de Edgar Morin, vamos ver que há implicações  infinitas nas causas e conseqüências dos fenômenos, em escala infinita. Não  seria possível controlar todas elas, mas a escolha de algumas abordagens  poderia levar-nos a um entendimento da questão, pelo menos na perspectiva  escolhida.
 
 Em tal situação, não podemos cruzar os braços porque não temos “a” solução. Até  mesmo porque devem existir muitas soluções e, perversamente, todas elas podem  levar-nos a novos problemas.
 
 Iríamos chegar a resultados recomendáveis para o melhor fomento da leitura,  como pretendeu Eliana Yunes, numa perspectiva concreta. Não descarto tal  encaminhamento da questão, e tais resultados poderão ser de muita valia aos  responsáveis, na Universidade Petrobras, na implementação de políticas e  práticas de promoção da leitura.
 
 
 2. OS MAUS EXEMPLOS TAMBÉM CONTAM
 
 Partimos sempre da premissa otimista de que a leitura é sempre salutar e  benéfica. Mas ela contraria interesses e causa também conflitos na sociedade.  Nem pretendemos levantar a questão da censura na história da humanidade, nem as  imagens terríveis do filme Farenheit 9/11 e as cenas de livros acorrentados, queimados, proibidos. Nada de Index Librorum Prohibitorum.
 
 Lembro das cartilhas de alfabetização de Paulo Freire queimadas no Rio de  Janeiro, na época do governador Carlos Lacerda, na batalha contra o  comunismo... Aliás as ideologias e as religiões parecem criar mais ódios que  bondades entre os homens... mais preconceitos que conceitos.
 
 Na década de 70 e 80, andei pela China, pela Alemanha Oriental e por Cuba. O  que vi por lá, em termos de leitura, não me deixou menos irritado do que o  machartismo anti-comunista dos Estados Unidos da América que antecedeu a Guerra  Fria. Em Berlim oriental descobri na biblioteca da universidade que havia  muitas obras contra Freud — uma cátedra anti-freudiana era oferecida — mas  estavam proibidos os livros de Freud... como queria o senador MacCarthy que os  americanos não lessem Marx... Parece que a intolerância e a estupidez humana  não têm época nem ideologia...
 
 Em Cuba deparei-me com obras censuradas (Lezama Lima, Vargas-Llosa, etc) mas  havia um estranho programa de formação de hábito de leitura nas bibliotecas  públicas. Os leitores mais vorazes ganhavam diplomas de mérito. Achei a idéia  ótima e quis conhecer os regulamentos. Logo descobri que havia um viés no  julgamento: o conceito de boa leitura... Lógico, os bons leitores liam Fidel,  Marx, Mao...
 
 Se eu morasse em Cuba, daria o golpe contra-revolucionário. Levaria dezenas de  livros dos camaradas para casa, não os leria e acabaria sendo um  leitor-modelo....
 
 Quando eu trabalhei numa biblioteca pública na cidade de Caracas, no início da  década de 70, idealizei uma campanha de leitura. Utilizamos o dinheiro das  multas por atraso nos empréstimos domiciliares de livros, para a compra de  livros novos, recomendados pelos usuários da biblioteca. Foi um sucesso. E as  obras efetivamente circularam muito. Havia até listas de espera para lê-los.  Achei que havia descoberto um caminho seguro. Com a certeza de ter negociado  cada um dos títulos com os usuários para evitar a compra de banalidades, para  evitar a máxima de “o público tem o que merece”... Sem arvorar-me de censor, implantei  alguns critérios que foram discutidos e aceitos, referentes à qualidade das  editoras, dos autores, etc... Mas o sucesso quase que significou a minha  demissão. Os pais dos alunos foram se queixar às instituições que patrocinavam  a biblioteca — ao instituto de cultura e o Rotary Club — pelo que julgavam um  crime: consideravam os títulos imorais, subversivos, impróprios... A  curiosidade dos alunos, moças e rapazes um tanto reprimidos pelos valores  culturais daquela época, orientava-os para a política, o sexo, as religiões, as  drogas... E os pais queriam “preservar” seus filhos de tal leitura “perigosa”.  Nenhum daqueles títulos escolhidos seriam vistos hoje com os mesmos critérios,  mas estávamos em Caracas, no início dos anos 70...
 
 Vinguei-me daquela repressão, escrevendo a obra “Tu país está feliz”, um espetáculo musical e poético que se tornou  um grande sucesso de público talvez porque colocava na boca de atores jovens o  que a juventude queria ouvir... Da mesma maneira que pretendêramos colocar nas  mãos dos leitores, guardados os critérios mínimos de qualidade que a  instituição obrigava, os livros que os usuários da biblioteca queriam ler...
 
 
 3. DESCONSTRUINDO CONCEITOS
 
 Mas estamos em 2006 e o cenário é muito diferente (será mesmo?!) daquele que  vivenciamos em décadas passadas. Leitura já não é mais vista como uma prática  limitada aos textos literários, compreende outras formas de relacionamento com  o mundo do conhecimento registrado pelos autores de qualquer atividade —  poesia, romance, artes visuais, teatro, etc e pelas obras técnicas e  científicas. Não apenas em livros mas em qualquer suporte e mídia. Leitura de  mundo. Como diria Derrida, “leitura e significado” e, mais precisamente,  “sentido e diferença”.
 
 Hoje as crianças lidam com a internet antes de serem alfabetizadas. Como  lidavam com brinquedos. Adolescentes fazem buscas e realizam “pesquisas” onde o  ato da leitura é sempre superficial, como aliás já faziam antes nas  enciclopédias e na coleção de revistas ao seu alcance... Control C e Control V  copiam e montam textos em que se lê pouco do que se monta. Como antes usavam o  “corta” e “cola”.
 
 Mas já podemos teorizar sobre o fenômeno, como fizeram Roger Chartier e  Guglielmo Cavallo quando ousaram escrever a História da leitura ocidental (São  Paulo: Ática, 1998) para chegaram à lúbrica conclusão de que estaremos cada vez  mais longe do ideal de uma civilização de leitores como se pretendeu em tempos  passados... Cada vez mais longe do conceito de “leitura intensiva”, profunda,  de um mergulho nos textos por um exercício de heurística e exegese, de uma  hermenêutica consciente.
 
 Ao contrário, sem nenhuma melancolia, estamos enveredando por buscas cada vez  mais abrangentes, mais amplas e holísticas, mediante métodos de investigação  menos especializados e mais interdisciplinares, no conceito que agora chamamos  “comunicação extensiva”. A web é um repositório infinito de textos e imagens e  podemos fazer as inter-relações mais estapafúrdias e chegar com elas a algum  resultado positivo. Deixa-se de ver um detalhe e se descortinam paisagens,  ainda que com seus limites.
 
 É óbvio que uma conjugação de “comunicação intensiva” (voltada para o próprio  umbigo) e a “comunicação extensiva” (olhando para as estrelas) seria uma  solução mais viável, até porque nenhuma das anteriores é eficaz. Talvez seja o  estado de graça do verdadeiro leitor do futuro. Se chegarmos, como antevê  Domenico de Masi, a uma sociedade do ócio, com tempo livre para a leitura,  talvez consigamos conciliar os extremos da leitura numa direção verdadeiramente  consciente e criativa, extensiva e profunda ao mesmo tempo. Tomara, ainda que  seja para poucos. Como sempre.
 
 Mas resta um consolo. Mesmo com os limites e perigos que muitos atribuem ao ato  da leitura, ela será sempre transformadora. Não para que saiamos daqui  defendendo a biblioterapia como uma panacéia, o valor regenerativo das  palavras, o poder libertador do conhecimento, a verdade absoluta dos livros  sagrados. Nada disso. Basta que acreditemos que qualquer oportunidade que se dê  às pessoas, principalmente às desprivilegiadas, de um contato com a leitura e o  mundo que ela possibilita, já será muito positivo. Mesmo que alguns regimes  vejam nisso um perigo à sua estabilidade, mesmo que algumas religiões entendam  que seja um desvio de caminho. O pior dos consolos é o da ignorância.
 
 
 
 (*) As estatísticas internacionais apontam para a Islândia como o paraíso da  leitura. Pudera, diria o Barão de Pindaré Júnior, que fazer nos meses frios e  escuros?! Hoje tem a Internet mas ainda continuam lendo muito. Mas não é apenas  por causa de um suposto determinismo climático... Nem necessariamente cultural  no sentido de serem um povo “civilizado”. Ora, outros povos de muita leitura  são os escandinavos, aos quais estão historicamente inter-relacionados os islandeses.  É certo: eles têm um nível de educação muito elevado, quase todos são  bilíngües. Mas foram povos bárbaros quando havia civilizações mais avançadas  (que hoje, em alguns radicalismos regionalizados, só permitem a leitura do  Alcorão). Parece que os “avanços” não são perenes e que se alcança e se perde o  hábito da leitura ao longo do tempo... O poder aquisitivo dos Estados Unidos da  América não os tornou, proporcionalmente, leitores nos mesmos níveis de outros  povos...
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