FERREIRA GULLAR: “reflexões sobre o poético”
De:
Hildeberto Barbosa Filho*
A LUZ E O RIGOR
reflexões sobre o poético
João Pessoa, PB: Manufatura, 2006. P. 60-62
"(...) o poema também se impõe, entende? Quando ele vem, de qualquer um dos seus abismos, ele desconhece tudo, não reconhece pai nem mãe, não adianta: ele não respeita nada".
Com estas palavras, o poeta maranhense Ferreira Gullar encerra a longa entrevista, concedida à equipe dos Cadernos de literatura brasileira, número
6, publicado pelo Instituto Moreira Sales, São Paulo, em 1998.
Não somente pelo teor destas palavras, mas também pelo alcance significativo de muitas passagens da entrevista, sobretudo daquelas que dizem respeito mais diretamente ao problema da criação poética, pode-se inferir que Ferreira Gullar não é daqueles que se filiem, a rigor, ao paradigma cabralino do verso, embora em seu Poema sujo (1976), pelo menos em alguns momentos, vê-se ecoar o ritmo duro e seco do poeta pernambucano.
A propósito, fenómeno estético por ele mesmo reconhecido, ao admitir João Cabral de Melo Neto ao lado de Carlos Drummond de Andrade, de Murilo Mendes e de Manuel Bandeira, como influência fundamental na construção de sua linguagem lírica.
Com isto não pretendo afirmar que o autor de A luta corporal (1954) seja um espontaneista, um improvisador delirante e alucinado, um simples emissor
de confidências subjetivas. Não. A bem da verdade, poucos poetas brasileiros contemporâneos - compreenda-se contemporâneo todo aquele que começou a publicar depois dos anos 50 - revelam uma consciência crítica e teórica, aguda e vigilante, sobre os processos técnicos, formais e estilísticos que envolvem
a manufatura da palavra poética.
Ocorre, porém, que Ferreira Gullar, como tantos outros poetas, não acredita na procura do poema, na pesquisa racional e planejada, no trabalho deliberado
ou no suor do artesanato, à cata de seus elementos principais, isto é, ideia, imagem e ritmo. Ferreira Gullar não é Mallarmé, particularmente um certo Mallarmé, nem Valéry. Talvez se afine mais com Rimbaud!
Ele é daqueles que esperam o momento poético, o clima propício, a atmosfera adequada em que a emergência do pathos poético como que recobre, de emoção e fantasia, a percepção e a sensibilidade do artista, precisamente para que de sua experiência verbal possa fluir o magma do êxtase e do espanto,
configuradores, por excelência, da essencialidade do poema.
Em outros termos: o poema, em Ferreira Gullar, nasce genuinamente da própria experiência poética, ou seja, da própria poesia enquanto modalidade especifica de relação do homem com as coisas do mundo e da vida. A poesia enquanto experiência dos sentidos - visão, tato, olfato, gosto e audição -, enquanto mergulho (ou entrega), no plano da pura afetividade ou da mais livre
imaginação e fantasia, na medula mesma do existir,"(.,.) um traço que me caracteriza", assinala o poeta no depoimento intitulado Corpo a corpo com a
linguagem: "é que, no momento de escrever poema, fico por assim dizer, limpo de conhecimentos, entregue à minha perplexidade, ao meu espanto, que é o fator
precipitador do poema".
Ora, a fala do poeta é cristalina.
O poema brota da perplexidade e do espanto. O poema é filho do thauma e tende a preservar, no corpo das palavras, na cadência musical dos versos e no
acabamento estético das estrofes, o frescor da primeiridade, o milagre do inefável e do invisível que nos apanham por inteiro e nos devolvem ao lugar de origem, aos terrenos primais, à pureza ancestral da linguagem, enfim, à morada do ser.
Para tanto - e já tive oportunidade de dizer em outras ocasiões -, quer antes ou depois do poema, o que deve existir, e deve existir sem disfarces, para que possa
existir o poema, é a experimentação da poesia. Da poesia mesma, na plena liberdade e na mais vasta aventura de viver. Dai, o cristal rutilante das imagens, a coreografia polifônica das palavras se transmutando em verdadeiros signos musicais; a dança das ideias por entre as fendas do intelecto, como sugere Ezra Pound em sua triádica tipologia teórica.
É isto, sim, o poema: artefato verbal, mas também essência emotiva. Linguagem especialmente organizada, mas também caos e milagre, mas também
paixão e espanto. Oficina de vocábulos, mas também pulsação inesperada e imprevista de sentimentos abissais. Palavra, palavra e palavra, mas sobretudo abismo e epifania.
*Licenciado em Letras Clássicas e Vernáculas, Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFPB.
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