FERREIRA GULLAR : COMO NASCEU O "O POEMA SUJO"
DEPOIMENTO
Extraído de
POESIA SEMPRE. Revista da Biblioteca Nacional do RJ. Ano 1 – Número 1 – Janeiro 1993. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Departamento Nacional do Livro. ISSN 0104-0626 (da p. 153 - 168) Ex. col. Antonio Miranda
"Poema sujo" não é nova "canção do exílio" mas não teria sido escrito se eu não tivesse vivido a experiência do exílio. É certo que, vários anos antes, sentira necessidade de escrever sobre o universo da minha infância e adolescência em São Luís do Maranhão e tentei fazê-lo em forma de romance. Todas as tentativas não chegaram à página cem. Foi então que, em maio de 1975, em Buenos Aires, a vontade de reviver aquele universo voltou com um ímpeto maior e outro propósito: fazê-lo como poema.
Àquela altura, tinha eu vivido em Moscou, Santiago do Chile e Lima. Estava desgastado emocionalmente e abalado ideologicamente, depois da experiência traumatizante que foi a derrubada e morte de Allende, o terror implantado no Chile, o reencontro dilacerante com minha família em Lima e finalmente a situação tensa em Buenos Aires. Estávamos a menos de um ano do golpe militar que deporia Isabelita mas poucos duvidavam do que ia acontecer e do genocídio em perspectiva. Meu passaporte estava vencido e sabia que as nossas embaixadas se negavam a renovar ou conceder passaporte a brasileiros exilados, ainda que tivessem apenas meses de idade. Sentia-me encurralado e, temia, próximo do fim. Não seria a hora de dizer tudo o que ainda tinha por dizer, enquanto era tempo?
Assim é que certo dia voltei da rua com a confusa determinação de "pôr tudo para fora". Mas como? Ocorreu-me usar de um procedimento aparentado ao que adotara para fazer o poema "O formigueiro": criar um núcleo inicial do qual nasceria o poema. No caso de "O formigueiro" esse núcleo fora criado racionalmente; desta vez — imaginava — deveria criá-lo irracionalmente: primeiro vomitaria todo o vivido na página em branco e, desse vómito, desse magma, extrairia o poema. Mal consegui dormir pensando nisso. Não sei por que tinha que esperar amanhecer para entregar-me a essa tarefa definitiva e inadiável.
Após preparar e tomar o café da manhã, sozinho em meu apartamento da Avenida Honório Pueyrredon, sentei-me diante da máquina de escrever (uma Lettera 22 de teclado espanhol comprada em Santiago numa loja de máquinas usadas) e me preparei para "vomitar" o passado... Não consegui. A linguagem não tinha uma garganta onde metesse o dedo para provocar o vómito. Por um instante, senti-me derrotado: o tal poema onde eu diria tudo não era possível, não seria escrito. Mas estava determinado a fazê-lo e não me levantei dali. Tinha que descobrir outro modo de penetrar no magma do vivido. Não podia ser logicamente, metodicamente, porque, ao contrário de outros poemas que escrevera, este não era sobre determinado tema, determinada coisa ou fato: era sobre "tudo", sobre a vida — a passada, a presente, a futura. Teria que saltar no meio dela como se me jogasse em pleno oceano, em vez de sair nadando da praia. Ocorreu-me então recuar para antes do começo, antes de meu nascimento, antes de qualquer fato, antes de qualquer palavra.
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
Essas primeiras palavras do poema, como as que se seguem imediatamente, importam menos pelo que dizem do que pelo que desdizem: são uma espécie de pré-discurso, transição entre o silêncio e a palavra, mais barulho que fala.
Vencido o abismo entre o nada e o poema (ou entre o tudo e o poema), fui arrastado numa espécie de caudal onde todo o vivido ressurgia com a força do presente, como se o vivesse de novo, de tal modo que as fronteiras do tempo e do espaço, do hoje e do ontem, do lá e do aqui, se fundiam. Naquela primeira manhã escrevi cinco páginas do poema, mas já sabia que ele se chamaria "Poema Sujo" e que teria de setenta a cem páginas. Escrevi isso, naquele mesmo dia, numa carta a Leandro Konder, exilado em Bonn.
Durante cinco meses entreguei-me quase que integralmente ao poema. Fazia minha comida, tomava as providências exigidas pelo dia-a-dia, e voltava a ele, senão para escrevê-lo, às vezes para relê-lo e mergulhar de novo em seu universo em formação. Não havia palavra, coisa, fato que não coubesse nele. Em tal estado, tudo se transformava em poesia. Sentia-me uma espécie de rei Midas. Saía para a rua e ficava rodando pelo bairro, concebendo as novas estrofes. Quando sentia que estavam maduras voltava para a máquina. Isso durou até setembro, se não me engano, quando de repente o ímpeto cessou. Compreendi que o poema chegava ao fim mas não estava concluído. Faltava alguma coisa, que não sabia o que era. Até que um mês depois, sem que eu o buscasse, despontou em minha cabeça o fecho, que começa assim:
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade.
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