ENTREVISTA COM ANTONIO MIRANDA
Por Ésio Macedo Ribeiro
Foto: Juvenal Pereira
Publicada originalmente em VERBO 21 – CULTURA E LITERATURA – AGOSTO 2007
http://www.verbo21.com.br/072007/entre072007_01.html
Antonio Miranda é escritor, dramaturgo, escultor e professor Titular e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação do Departamento de Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília. Graduado em Biblioteconomia pela Universidad Central de Venezuela, Mestre em Ciência da Informação pela Loughborough University of Technology, Inglaterra, e Doutor em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Autor de 26 livros, dentre os quais destacamos Planejamento bibliotecário no Brasil: a informação para o desenvolvimento (1977), Tu país está feliz (1979), A quadratura do ó ou a maravilhosa estória do fanzoca que idolatrava Emilinha Borba (1979), Canto Brasília (2002), A senhora diretora e outros contos (2003), Retratos & poesia reunida (2004), Informação e tecnologia: conceitos e recortes (2005), Despertar das águas (2006) e San Fernando Beira-Mar (2006). Recebeu, entre outros prêmios, o Prêmio Festival Internacional Teatro, Medellín, Colômbia (1971), o prêmio principal no Festival Latino-Americano de Teatro da Universidad de Puerto Rico (1972), o Sisson and Parker Prize da Loughborough University of Technology (1975) e o Diploma de reconhecimento pela dedicação e ações em prol da biblioteconomia brasileira da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (2004).
Antonio é, ainda, por sua atuante penetração nos meios teatrais dos países de língua espanhola da América Latina, mais conhecido do que no Brasil. Mas isto está mudando, e espero, mesmo, que esta entrevista seja mais um passo no sentido de mudar este quadro. E para conhecê-lo melhor recomendo ainda uma visita à sua página na internet: www.antoniomiranda.com.br, que além de abrigar informações sobre o autor e sua obra, também abriga, numa atitude de abnegação, outros autores brasileiros e ibero-americanos. Vamos conhecê-lo um pouco mais!
Ésio Macedo Ribeiro: Você, ao sair de seu Estado natal, o Maranhão, veio direto para o Distrito Federal, passando a residir em Brasília, ou aportou em algum outro local antes?
Antonio Miranda: Saí do Maranhão aos 7 anos de idade, em 1948, e vivi no Rio de Janeiro até meados da década de 60, ou seja, minha formação é carioca. Depois eu saí numa diáspora por índole e vocação de aventureiro. Rodei mais de trinta países até ancorar no Distrito Federal no final da década de 70, mas com entradas e saídas constantes por força de cargos internacionais que me levaram aos países ibero-americanos, mas também à Europa, à Ásia e à África. Estou sempre com uma maleta pronta para uma emergência.
EMR: O que o fez deixar sua terra natal, suas características de “revolucionário” cultural ou o poder ditatorial dos coronéis?
AM: Foi pela situação político-institucional que estava em franca decadência no Brasil, anunciando-se um quadro de confronto e perspectivas de um golpe militar. Fui viver no Rio de Janeiro, no olho do furação que precedeu o período da ditadura; minha situação era crítica, como a de muitos intelectuais. Eu ganhei uma bolsa de estudos e fui viver em Caracas, onde o clima de liberdade era grande e o espaço de criação muito estimulante. Fui um auto-exilado e só anos depois é que acabei caindo na malha de dossiês secretos do regime. Mas eu já andava por toda parte, em viagens de aventura e estudo por todo o Brasil, pela Argentina, Uruguai, Guiana Francesa, pela antiga Guiana Holandesa (hoje Suriname). Queria mesmo ampliar os meus horizontes, experimentar outras culturas, e preferia a América Latina como destino.
EMR: Você exilou-se para viver aquele período de efervescente agitação cultural da América Latina, dedicando-se à produção literária e artística, não é mesmo? Que proveito você tirou da experiência?
AM: Não havia muitas opções naqueles anos de repressão. Eu estudava biblioteconomia nos porões da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A Venezuela era um país afluente, com uma elite intelectual inquieta, bastante cosmopolita, era um dos centros de refugiados e imigrantes europeus e ibero-americanos. Estávamos às vésperas do ano-símbolo de 1968, com as inquietudes e contestações que vinham da Europa, dos Estados Unidos e de toda parte. Engajei-me no processo pela imprensa, em eventos culturais, mas não em ativismo partidário. Comecei a escrever artigos e poemas em castelhano, cujas leituras públicas resultavam muito estimulantes. Daí surgiu a idéia de montar um espetáculo musical com meus poemas, Tu país está feliz, que estreou em 1971 e depois percorreu muitos países das Américas e da Europa e que deu início ao grupo de teatro Rajatabla, hoje Fundación Rajatabla, uma das mais antigas e estáveis companhias e escolas de teatro de nosso continente. Trabalho de equipe. Teatro é uma criação coletiva. Músicos, atores, diretor de cena, iluminador, etc. O mais fascinante foi poder escrever poesia para o teatro, criar durante a montagem e até depois da estréia para completar cenas que, no embate com o público, requeriam mais densidade e expressão. Bem diferente de escrever livro de poesia é produzir um texto poético híbrido, combinado com outras linguagens de comunicação.
EMR: Este exílio involuntário, ao que se percebe, o fez ser reconhecido e premiado em países como a Colômbia, Porto Rico, Argentina, Venezuela e Inglaterra. Você sente falta dessa fase de sua vida? Como é, hoje, seu contato com grupos teatrais e artistas desses países?
AM: Os prêmios vieram como reconhecimento de uma obra coletiva. Na Inglaterra, o prêmio foi por minha dissertação de mestrado. Fato muito raro com o teatro, que é efêmero e localizado, nosso espetáculo, Tu país está feliz, vem sendo montado em diferentes oportunidades: 1971-1973, 1984-1985 e 2006-2007. Mas também foi montado pelo grupo Cuatro Tablas de Lima, Peru, instituição teatral ainda em plena atividade e que também se iniciou com a montagem de Tu país está feliz. A que atribuir tanto sucesso? Teatro é um fenômeno cultural e sociológico intrigante. O que determina o sucesso ou o fracasso de um espetáculo é imponderável. No nosso caso, estávamos na crista de uma onda de protestos e mensagens de renovação que a peça simbolizou, foi como um arrastão de energias de contestação e identidade com mudanças de valores e posturas. Uma identificação quase que visceral com o público, que assumia os textos com toda propriedade, distribuía as edições (rústicas) e até as copiava por conta própria. Saíram muitas edições com os poemas, algumas clandestinas.
Sinceramente, não sinto falta do que passou. Estou sempre em ação e não olho no retrovisor, não sou saudosista. Gosto mais do que estou fazendo e minimizo muito a importância do passado. Tenho a tendência de me ver em épocas passadas como outra pessoa, às vezes com visão crítica e até cruel. Sou um criador em movimento, sem ficar me comparando com o que já fiz. Gosto mais do que estou fazendo, mesmo que a crítica possa considerar melhor ou inferior. Ou seja, o que importa é a vivência, os relacionamentos humanos, a comunicação permanente com um público, mesmo que seja circunstancial e restrito. E mantenho um relacionamento muito próximo com estes amigos hispânicos, mais do que com os brasileiros.
EMR: Porque sua peça mais conhecida, Tu país está feliz, lançada em 1971 pelo grupo teatral peruano Cuatro Tablas e apresentada em mais de vinte países só foi publicada no Brasil em 1979? Problemas com a Dona Censura?
AM: Martin Gonçalves, um dos grandes nomes do teatro brasileiro nos anos 70 do século passado, quis montar Tu país está feliz no Brasil, apesar das restrições da censura. Creio que jamais conseguiria por causa dos arroubos ideológicos (repito: não-partidários) e de um desnudo coletivo do espetáculo. Eu voltei para o Brasil com este propósito, mas ele faleceu e eu migrei para Brasília. Ainda tentei montar um grupo em Brasília, mas não deu certo e fui para a Inglaterra. A idéia de lançar o livro no Brasil foi de meu editor Victor Alegria, da Thesaurus, que já publicou três edições da obra.
EMR: Antonio, quando começou seu interesse por literatura?
AM: Creio que comecei a escrever antes de aprender a ler, lá pelos meus 7 anos de idade. Compulsivamente. Meus anos de formação foram no final da década de 50 e início dos anos 60 no Rio de Janeiro. Havia o estímulo dos movimentos de vanguarda (concretismo, neoconcretismo, literatura engajada, etc.), da bossa nova, do cinema novo, da arquitetura moderna (que culminava com a construção de Brasília). Era um caldeirão de idéias! Nunca fomos tão universais como naqueles tempos! Eu era leitor de bibliotecas públicas, da Nacional e freqüentava círculos literários de todo tipo, e comecei escrevendo no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil com o pseudônimo de Da Nirham Eros. Ganhei um prêmio e passei o ano de 1962 na Argentina. Era um autodidata em tempo integral. Só voltei a estudar aos vinte e cinco anos de idade, depois de quase uma década de leitura livre, de aprendizado direto.
EMR: Qual foi o primeiro autor que você se lembra de ter lido e o que esta leitura causou em sua vida?
AM: Li os poetas Gonçalves Dias e Fagundes Varela, na escola, adorava declamar versos. Leitor consciente de filósofos, autores de teatro, novelistas, só mesmo na puberdade. Gostava dos modernistas, mas minha primeira paixão foi pelo João Cabral de Melo Neto. Era seco, conciso, um surrealismo com sabor de caatinga. Achava os outros, Drummond, Bandeira, fantásticos mas prosaicos. Mais do que poesia, eu adorava ler manifestos e ensaios. E a paixão pelo hibridismo, que na época chamávamos de “integração das artes”, ou seja, aproximar a poesia do teatro, a escultura com a dança, a música com a literatura. Daí a idéia de levar a poesia ao teatro, às salas de exposições, aos muros.
EMR: Mencione os autores que mais lhe falam da literatura em geral.
AM: Na minha juventude, respirei Nietzsche, Artaud e Paul Éluard. Depois descobri os hispano-americanos: García Márquez, Alejo Carpentier, Julio Cortázar. Mergulhei em poetas tão irreverentes como Nicanor Parra, César Vallejo e Oliverio Girondo. E o grego Konstantinos Kaváfis. Mas vou confessar uma coisa: sou muito infiel com os autores que eu leio. Em outras palavras, gosto de poemas mas não de poetas, tenho algumas fixações literárias com determinadas obras mas não com autores em particular. E gosto dos clássicos, principalmente os espanhóis, Cervantes antes de outros. Gosto dos italianos, franceses, ingleses mas, como fiz leituras em traduções, hesito em citá-los. Mesmo os ingleses que consigo ler no original. E tem o caso da Virginia Woolf com o Orlando, mas não toda a obra. Li Joyce mas não estava preparado. Mas li também os modernistas, os vanguardistas. No fundo a gente acaba assimilando tudo, acaba sendo um imitador ou recriador por mais que pretenda ser original. Ninguém cria no vácuo.
EMR: Percebo em você uma ânsia de cultura saindo pelos poros, envolvendo todos os que estão à sua volta, como se, para você, não estar envolvido em projetos culturais seria algo que o tornaria morto. Elucida-me este mistério.
AM: Assim como não se cria no vácuo tampouco se cria no deserto. Não tenho espírito de ermitão. Gosto de gente, de trocar idéias, de produzir com as pessoas. Acho até que a literatura cada vez mais vai ser uma obra coletiva e já escrevi sobre isso. Primeiro na literatura técnica e científica, mas cada vez mais na obra de ficção e imaginação. Por exemplo, faço poemas visuais com amigos que dominam tecnologias apropriadas. Posso escrever (e já produzi) textos a duas, quatro, cinqüenta mãos. Quando criei o “meu” sitio na web era só meu. Hoje tenho mais de setecentos e cinqüenta convidados e entram dois a três novos poetas por dia. Primeiro eu convidava, agora faço a seleção com amigos de outras regiões. Talvez por vício de formação profissional, sou bibliotecário e cientista da informação, estou sempre pensando em redes, sistemas, colégios invisíveis, redes de relacionamentos, topic maps, árvores hiperbólicas relacionando autores e obras. Talvez seja aquela proposta borgiana de haver um único livro, escrito por todos. A diferença é que antes uns poucos escreviam para muitos, agora todos escrevem para todos. E uma nova literatura está surgindo destes novos paradigmas.
EMR: Você já passeou e ainda passeia pela poesia, romance, teatro e escultura, dessas atividades qual é aquela que lhe traz mais prazer?
AM: Sem dúvida, a literatura. E a poesia em particular. Penso sempre o livro em gestação como um projeto, com identidade própria, que vai sendo ruminado até converter-se em texto. Tem também uns poemas de entressafra, uns ensaios, uma novela, mas eu gosto mesmo é do livro-poema, uma obra integral, inteira. A poesia é a matriz de tudo. Daí a idéia da poiesofia, da poesia como fonte e registro do conhecimento. Por certo, a poesia foi o formato primevo da história, da ciência, do teatro, e creio que a literatura do futuro voltará à poesia para ser mais concisa, mais universalizante e transcendente. Aceito inclusive a idéia do poema-ensaio, que eu cultivo sem pudor. Por isso alguns dizem que sou pouco “poético”, que sou ditirâmbico, não raras vezes esperpéntico e cultor da antipoesia. É certo. Belas palavras não fazem belos poemas. Diante de um poema tenho a expectativa não só de ler os sentimentos mas também a sabedoria, a visão de mundo, a revelação “ultraísta” da “verdade” que não corresponde mais à ciência mas à poesia.
EMR: De seus livros, seja de poesia ou de prosa, qual é aquele que você acha o mais bem acabado ou que tenha lhe dado mais prazer ao conceber?
AM: A obra que me deu mais prazer e retorno é, sem dúvida, Tu país está feliz. Em espanhol pois não gosto da versão em português integralmente. Mas é uma obra de juventude, com o frescor e até a ingenuidade da descoberta do mundo. Talvez Brasil Brasis seja o meu livro de poemas mais bem realizado. Mas gosto também de Despertar das águas, de Eu Konstantinos Kaváfis de Alexandria, de São Fernando Beira-Mar e de Terra Brasilis (acessível apenas na web). São livros bem diferentes embora seja possível perceber alguma constância no ritmo, no tratamento semântico, nas rupturas. A doutora Elga Pérez-Laborde está publicando uma antologia de meus poemas com um estudo introdutório muito especializado. Ela assistiu a estréia de Tu país está feliz em Caracas, em 1971, e acompanha o que eu escrevo desde então.
Ela talvez pudesse responder melhor sua pergunta pois o autor talvez seja a última pessoa a quem devemos consultar sobre suas melhores obras. Mesmo no meu caso que, vindo do teatro brechtiano, me arvoro de manter um distanciamento da própria obra e do personagem.
EMR: Assim que o vi pela primeira vez, em Brasília, senti uma energia emanando de você, como há muito não percebia em outra pessoa, tanto que comentei isto com nosso amigo comum, Ronaldo Cagiano. De onde vêm essa energia? Seria vida demais ou medo da morte?
AM: Minha vitalidade vem do entusiasmo pelas pessoas. Eu me contagio com elas, quando me identifico com elas. Deve ter sido o nosso caso. No fundo, na intimidade, sou tímido, mas não inseguro. E talvez venda a imagem de alguém resolvido, auto-suficiente. Deve ser porque compartilho tudo com todo mundo, estou sempre disposto ao diálogo. Eu me alimento da convivência com gente criativa, faço trocas com todo mundo, inclusive com caseiros, gente na rua. Mas ainda assim consigo manter minha privacidade, não ser promíscuo. O mais difícil nas relações é perceber os limites, saber ouvir, falar na dimensão própria do relacionamento. Por certo, estudo a questão da comunicação científica e, por tabela, também a estética.
EMR: Você é bem mais conhecido nos outros países da América do Sul do que no Brasil, principalmente como teatrólogo, a que se deve isto?
AM: Além de viver muitos anos em países vizinhos, viajo freqüentemente e mantenho contatos e correspondência com poetas e gente de teatro, principalmente na Argentina, Venezuela, Peru, México e Chile. Meus textos são traduzidos rapidamente ao espanhol, o que facilita a comunicação. Quase não escrevo mais em castelhano mas, mesmo escrevendo em português, uso uma linguagem acessível e, na maioria dos casos, fácil de ser traduzida. Com a Internet ficou ainda mais simples manter relações, considerando que o meu (nosso) sítio na web é bilíngüe. Mas a principal razão é que eu moro em Brasília há mais de duas décadas e isso me isolava muito do resto do Brasil. Só com a web é que eu comecei a conquistar um público mais amplo, desde que passei a ser “antoniomiranda.com”.
EMR: Dos seus espetáculos teatrais, qual é aquele que lhe fala mais?
AM: O que eu considerei mais maduro como texto e como proposta teatral é Jesucristo astronauta, autosacramental sobre lo profano y lo divino, apresentado pela primeira vez no Ateneo de Caracas em 1973 e levado ao México na mesma época. Chocou muita gente, desagradou os mais conservadores, a crítica foi até furiosa. Mas eu me sentia realizado. O título original era La consagrada família, autosacramental..., mas o diretor preferiu o Jesucristo astronauta, na onda do Jesus Christ superstar. Mas nada tinha a ver com o musical montado em Londres e Nova York.
EMR: Quais eram, na época, os seus autores teatrais preferidos?
AM: Eu adorava Ionesco, Arrabal, e uns poucos ingleses. No Brasil, reverenciava o Nelson Rodrigues e as criações coletivas que aconteciam no Rio de Janeiro e em São Paulo. E eu freqüentava espetáculos em muitos países, incluindo os Estados Unidos e parte da Europa porque o teatro me permitiu viagens que a poesia não garante. No meu caso, eu era um poeta no palco.
EMR: O que pensa do teatro brasileiro atual, há novos autores surgindo ou tudo hoje redunda no gosto duvidoso e na necessidade atormentada dos atores por textos que apenas lhes ofereça a recompensa de poder comprar, como disse o Antunes Filho ao Luiz Melo, quando este foi contratado pela TV Globo, um liquidificador?
AM: O teatro exige investimentos pesados, tanto financeiros quanto de tempo, energia, organização. Temo que o teatro fique na mesma arapuca do cinema que precisa viver de subsídios pois não é possível sobreviver com a bilheteria. Nem os artistas globais conseguem, recorrem a patrocínios e a expedientes promocionais muito ecléticos. O melhor teatro deve estar nas produções independentes, para públicos reduzidos, levados em festivais, em universidades, em centros culturais alternativos ou em espaços mais populares. Os mais talentosos ou de sorte podem acabar produzindo para televisão, de valor. Talvez com o advento da TV digital seja possível um florescimento das artes cênicas mais abertas, mais híbridas, produzidas em diferentes regiões e para públicos mais diversificados. Tudo vai acabar em mídia digital e isso vai implicar em roteiros e tratamentos diferentes dos que usamos nas produções mais convencionais. Mas as novas gerações farão isso muito bem.
EMR: Eu deixei de ter prazer com o teatro nacional, não tenho mais paciência. Das últimas peças a que assisti, a que mais me agradou, em todos os aspectos, foi “Hoje é dia de amor”, do João Silvério Trevisan, peça que tenta desconstruir o sentido da dor no seu mais alto tom. Há tantos espetáculos ruins acontecendo que fico com medo de sair de casa com a intenção de me divertir e me decepcionar. Como não há mais crítica teatral hoje, fica difícil descobrir o que é bom, exceto quando um ou outro amigo nos recomenda. Você, que tem contato com o teatro de outros países, sente que isto só se dá no Brasil ou é algo corriqueiro também em outras partes do mundo?
AM: Realmente, vejo mais produções em outros países do que no Brasil. Há montagens dignas de admiração na Argentina, no Peru e na Venezuela, que é onde eu mais ando. Mas confesso que vou ao teatro com o espírito sempre muito aberto, receptivo e, em muitas ocasiões, prefiro trabalhos imperfeitos mas criativos e inovadores a obras profissionais de bom padrão técnico. Não vi a obra do Trevisan. Tomara que chegue um dia ao Planalto Central.
EMR: Recentemente você aceitou o cargo de diretor da novíssima Biblioteca Nacional de Brasília, instalada em mais um belo projeto arquitetônico de nosso Oscar Niemeyer. A biblioteca, ao que sei, ainda não está funcionando cem por cento, pode me dizer o porquê de ela não estar a pleno vapor?
AM: Estou mas ainda não sou o diretor da Biblioteca Nacional de Brasília. Estou encarregado da direção e participo de um grupo de trabalho que está definindo as diretrizes para sua plena institucionalização. Creio que tenho alguma experiência, depois de ter trabalhado em bibliotecas nacionais no Brasil e na Venezuela, e acompanhado as várias tentativas de instalar a Biblioteca Nacional no Distrito Federal. Em verdade, o que temos é um prédio. Estamos finalizando uma proposta para acervos e serviços, tradicionais e digitais, que vai ser submetida em breve a audiências públicas. No início do século XXI, não há mais lugar para bibliotecas “tradicionais”, devem agora ser híbridas com o apoio das tecnologias da informação e dirigir-se a públicos diversificados, em diferentes níveis, desdobrando-se em repertórios institucionais, arquivos abertos, bibliotecas digitais. E tivemos a sorte de ganhar, além do prédio projetado pelo Niemeyer, também o edifício do antigo Touring Clube, próximo das estações do metrô e da rodoviária, lugar de acesso popular. Falta vencer uns entraves burocráticos mas, logo estaremos ensaiando novas formas de organização bibliotecária e de centro cultural, no afã da promoção do hábito da leitura, da criatividade e do uso da informação para qualificação e desenvolvimento pessoal. A biblioteca sempre foi um poderoso instrumento de socialização e de educação mas, sobretudo, de auto-educação, de formação de identidades e individualidades, escapando da massificação dos outros meios de informação de comunicação.
EMR: Soube que você está interessado em receber parte do acervo de livros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o que se encontra nos armazéns do cais da Praça XV, em que pé estão as negociações para esta transferência?
AM: Em verdade, o decreto que criou a Biblioteca Nacional de Brasília, em 1962, determinava a transferência de duplicatas da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro para a capital federal. Mas não é por aí que vamos crescer, embora tais doações sejam bem-vindas se acontecerem. Já temos assegurados acervos para atender o público em geral e, em paralelo, vamos desenvolver outras coleções, entre elas uma brasiliana focada em obras sobre o Brasil escritas ou produzidas por brasilianistas estrangeiros de todas as épocas e sobre temas muito amplos de nossa cultura e ciência, assim também de brasileiros expatriados, além dos brasileiros traduzidos a outros idiomas. São dezenas de milhares de títulos que constituirão uma bibliografia (de livros e outras mídias) e que poderão ser adquiridos por compra e doação ou simplesmente mediante repertórios digitais, seja de cópias em nossa biblioteca digital, seja com enlaces (links) com acervos em outras instituições do Brasil e de outros países. Tomemos um exemplo: o Cinema Novo. Quantas obras existem sobre o assunto em francês, em inglês, em alemão que não estão em nossas bibliotecas, fora do ciclo de pesquisa? Imigração, etnias, temas amazônicos, história, com visões e revisões que escapam aos métodos que são já lugar-comum em nossos centros de pesquisa. Uma redescoberta do Brasil. É um projeto apaixonante.
EMR: Mesmo tendo este projeto viabilizado ou inviabilizado, quais são seus planos para supri-la de livros e/ou fazer dela um centro de referência nacional?
AM: A Biblioteca Nacional de Brasília tem condições de ganhar uma tremenda visibilidade e atrair apoios de todo o tipo, de instituições brasileiras, estrangeiras e internacionais, de embaixadas a universidades, de empresas multinacionais a órgãos de fomento nacionais. Vamos explorar todos os caminhos ao nosso alcance e potencializar as oportunidades que já estamos mapeando e fazendo contatos.
EMR: É fácil assumir a direção de um órgão público, quais são as dificuldades e facilidades que o cargo apresenta?
AM: É sempre um desafio assustador. Já fui diretor do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), criei e organizei o sistema COMUT de acesso ao documento (funcionando há mais de vinte e cinco anos com o apoio do MEC, do MCT e da FINEP). Tenho o mapa da mina. No momento, creio que o melhor modelo é de um consórcio público, com o apoio do GDF, do MinC, do MEC, da UnB e do MCT, e de outros órgãos públicos e privados, para garantir um planejamento e uma gestão mais aberta e participativa, menor ingerência política e maior autonomia de atuação. É o caminho que escolhemos.
EMR: Você participou das Ediciones Eloisa Cartonera, que publicou autores como Haroldo de Campos, Ricardo Piglia e Alan Pauls, e que tem suas capas feitas de papel comprado a quilo cortados e pintados a mão por meninos de rua, fale-me sobre este projeto e sobre sua posição diante da situação ecológica mundial?
AM: Das cinco edições de San Fernando Beira-Mar,três saíram no formato que você descreveu, com papel reciclado, capas de cartão coletado na rua, pintadas por crianças carentes. Uma edição de Eloisa Cartonera em Buenos Aires, com vendas pela internet; outra da mesma editora durante a última Bienal de Arte de São Paulo, e agora saiu uma edição paulista pela Dulcinéia Catadora. É um belo projeto cultural e social. As edições são rústicas, mas emblemáticas e a saída tem sido excelente. A editora argentina tem autores de grande prestígio em todo o continente e a brasileira começou também com gente de prestígio como Manoel de Barros, Jorge Mautner, Glauco Mattoso, Haroldo de Campos, que você mencionou, e muitos outros. Fui convencido de que o poema que “beatifica” (satanicamente) o Fernandinho Beira-Mar e revela as mazelas de nosso mundo de corrupção e violência, seria um título de interesse para o nosso público. Tomara que o público responda como, ao que tudo indica, respondeu no caso da edição bilíngüe da Argentina. O mais interessante é poder chegar a públicos mais amplos do que os tradicionais que visitam livrarias e feiras do livro. Além de ser um produto ecológica e politicamente correto.
EMR: Você me falou certa vez sobre uma sua tese sobre o plágio na obra de arte, seja ela escrita ou plástica, gostaria que comentasse sobre ela.
AM: De fato, venho estudando a questão do plágio na literatura científica e defendendo a tese de que é um mal necessário. O uso do control C – control V facilitou muito a cópia e colagem de textos em “pesquisas”, facilitando o uso indiscriminado de textos alheios que os plagiadores nem mesmo lêem. A vantagem é que agora é fácil detectar os plagiadores. Há aplicativos que fazem isso com rapidez a partir de fragmentos de textos, revelando as fontes originais. O próprio Google busca isso se colocarmos pequenos trechos das obras. Na medida em que tenhamos os monumentais repertórios de obras da “biblioteca universal” que está sendo digitalizada, resultará simples não apenas saber quem é o autor de um determinado texto (que pode ter sido copiado de outro, e este de outros mais antigos, todos visíveis na busca retrospectiva...), como traçar a origem e evolução das idéias. Quando estava estudando os documentos e trabalhos originais dos concretistas brasileiros, acabei descobrindo poemas visuais produzidos na Idade Média e até três séculos antes de Cristo. Em verdade, quando escrevemos estamos recorrendo a uma enciclopédia que é de todos e “plagiamos” mediante citações, emulações, paráfrases, recriações, ou até contestando e contradizendo. É o mundo do “conhecimento objetivo” do Karl Popper, que é público e recorrente, que está na base de nosso referencial de vida e de relação com o mundo e, como ele é comum a todos, facilita a identificação e o reconhecimento, a comunicação.
EMR: Não estaríamos vivendo, hoje, um dadaísmo às avessas?
AM: Certamente. A “desconstrução” é o método científico que usamos para praticar o dadaísmo às avessas. Toda obra agora é plástica, pode ser reorganizada e remontada em novos conjuntos, infinitamente, combinando inclusive objetos e fragmentos de obras tão diferentes como discursos, imagens, textos, depoimentos, gráficos. Daí o Creative Commons que permite o uso e reúso de fragmentos de obras alheias. Tristan Tzara cortava textos com a tesoura, nós picotamos textos, imagens e sons e remontamos com programas de edição tão poderosos. E vamos usar 3-D, quem sabe até aromas, sensações táteis... E vamos fazer parte das obras, participar delas.
EMR: Se é que elas existam, o que você faz nas horas vagas?
AM: Leio muito, navego muito na Internet, gosto muito de reunir-me com amigos, ir a galerias de arte, viajar. Administrando bem, o tempo dá para tudo. A questão não é de tempo, mas de produtividade, seletividade, conectividade, uso de recursos de “comunicação extensiva” como interatividade, hipertextualidade, hipermidiação. São “próteses” metodológicas e tecnológicas que ampliam a nossa capacidade em todas as direções e nos dão uma nova dimensão de espaço e de tempo.
EMR: Como é viver em Brasília?
AM: É um desafio, às vezes dá a sensação de isolamento, de que somos alvo de preconceito mas, na realidade, o que mais vivencio é uma visão mais ampla de Brasil, um confronto mais livre com os diversos brasis que confluíram e continuam fluindo por aqui. Creio que há um “cosmopolitismo interiorano” no Planalto Central. Um paradoxo. E me sinto mais universal aqui do que diante do mar, é uma questão de visão de mundo, de cultura. Menos xenofobia, menos bairrismo, menos regionalismo.
EMR: Seu trânsito entre os autores brasilienses, parece-me, é bastante estreito. O que você acha da literatura feita aí e quais autores você recomendaria a leitura?
AM: Por Brasília passaram e vivem autores fantásticos. De todas as partes do Brasil e de outros países, num relacionamento mais humano e próximo por causa de nosso confinamento. Mas a cidade também isola por sua dispersão topográfica. Mas há uma elite de artistas, escritores e intelectuais de todo tipo que é numerosa e de boa qualidade. Muito estimulante. Tenho muitos amigos. Cultivo muito a poesia de Anderson Braga Horta, de José Santiago Naud e do (recentemente) falecido Fernando Mendes Vianna, a trindade de autores favoritos vindos de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. Só agora é que os nativos de Brasília estão conquistando os espaços dos migrantes.
EMR: Quando você criou sua página na internet, você tinha noção do quão fascinante é a rede mundial de comunicação e informação da contemporaneidade? Pode me falar um pouco de sua experiência como “antoniomiranda.com”?
AM: É um universo realmente fascinante. Centenas de novas páginas e blogs por dia, um verdadeiro canibalismo, mas acaba se formando tribos e grupos muito peculiares, um tecido distintivo. As pessoas formam redes de relacionamento instintivamente, de forma seletiva, por níveis. É tudo espontâneo, intuitivo mas regras invisíveis se formam e conformam os grupos, condicionam os relacionamentos. Você busca os “iguais”, reconhece e estabelece identidades e acaba criando uma constelação de amigos com os quais você cresce, promove e se promove, aprende. Sempre foi assim, só que a tecnologia facilita, agiliza, multiplica as oportunidades. E quem achar que isso mata a literatura está equivocado. A leitura e escritura são a base dos relacionamentos, apoiado em imagens, sons. Os blogs renasceram a prática dos diários. Talvez se aplique a tese de que da quantidade pode surgir a qualidade, é polêmico, mas não é um desvario. Se funciona no futebol... Se não houvesse a massificação do futebol de várzea, de rua, de praia não teríamos um processo seletivo que leva aos melhores do mundo. A massificação da ciência na América conquistou vários prêmios Nobel. Cuba ganha muitas medalhas intensificando os treinamentos. A esperança é de que milhares de poetas levem ao surgimento de alguns grandes poetas, mesmo com o preço de muita banalidade, muita mesmice. Falta testar, medir, comprovar. Há estudos em curso.
EMR: Você ainda tem sonhos não realizados?
AM: O tempo todo. Como sou helenista, nem separo os sonhos físicos dos metafísicos, mesmo que a idade coloque suas restrições, que o sonho e a imaginação não consideram.
EMR: Poderia me dizer quais são seus próximos e futuros projetos?
AM: Escrever, escrever. Já tenho um novo livro de poesias na gaveta. Deixo lá um tempo para voltar a ele e assumi-lo. Tenho projetos de poemas audiovisuais, vídeos, espetáculos e também pesquisas acadêmicas, minhas e com meus orientandos. E quero realizar um Festival Internacional de Poesia em Brasília.
EMR: Mencione uma frase ou verso que fale muito a você.
AM: “Persigo la imagen que hice de mí / y siempre estoy en deuda conmigo mismo”. O autor é um jovem brasileiro expatriado que viveu na Venezuela no começo da década de 70 e se chamava Antonio Miranda. Era um outro Antonio Miranda. Como disse Mário de Andrade, “eu sou trezentos...”.
Voltar |