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EM TORNO DO JUCA MULATO

 

(Roteiro de palestra proferida na ANE, em 8.9.2009.)

 

 

Anderson Braga Horta

 

 

Nossa conversa de hoje vai girar –de modo mais ou menos pertinente, pois talvez nos permitamos alguma observação tangencial ao tema– em torno do poemeto Juca Mulato, de Menotti Del Picchia. (Uso, aqui, a palavra poemeto no sentido de pequeno poema narrativo.) Para valorizá-la, no que concerne à fala do expositor, releremos juntos algumas passagens desse livrinho de 1917, ainda lido e apreciado nestes inícios do século XXI, apesar da crescente “despoetização” da sociedade (que não é “privilégio” nosso, reconheçamos).

 

O Poeta

 

“Um homem de sete instrumentos”, costuma-se dizer daquele que revela competência ou habilidade em atividades diversas. O autor desse Juca Mulato, de longa e persistente fortuna, tocava mais de sete. Além de poeta, foi prosador profícuo, com forte presença no romance, no conto e na crônica, na memória, no ensaio literário e no ensaio político, na literatura infanto-juvenil e no gênero teatral. A complexidade de sua organização intelectual e artística o levou a lavrar outros campos, como o da pintura, o da escultura, o da música.

Exerceu importante papel na defesa e difusão do ideário modernista, como autor de uma espécie de diário do movimento nas páginas do Correio Paulistano e como orador da Semana de Arte Moderna. No Modernismo histórico, é de salientar sua atuação destacada na crista dos grupos Verde-Amarelo e Anta. De importância tamanha, nesse particular, que Wilson Martins afirma ter sido ele, “e não Mário ou Oswald de Andrade, o chefe do primeiro Modernismo”.

Pertenceu às Academias Paulista e Brasileira de Letras.

Profissionalmente, foi jornalista, editor, fazendeiro, industrial, diretor de banco, advogado, procurador-geral do Estado de São Paulo, tabelião. Falta alguma coisa...: relojoeiro! segundo Miguel Reale, citado por Oscar Dias Corrêa em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Entre as sereias cujo canto o seduziram figurava a política, tendo exercido diversos mandatos de deputado estadual e deputado federal (no Rio de Janeiro e em Brasília), pelo PRP (Partido Republicano Paulista) e, afinal, pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).

Filho dos imigrantes italianos Luigi Del Picchia (também poeta) e Corinna Del Corso, Paulo Menotti Del Picchia nasceu em São Paulo, em 20 de março de 1892, e aí faleceu, em 23 de agosto de 1988. Estudou em Campinas e Itapira, bem como na cidade mineira de Pouso Alegre. Formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo. Deixou numerosa obra, de que citaremos apenas alguns livros: Poemas do Vício e da Virtude (o da estréia, em 1913), Moisés, Juca Mulato (ambos de 1917), A Angústia de D. João (1922), Chuva de Pedra (1925), O Amor de Dulcinéia (1926), República dos Estados Unidos do Brasil (1928), Obras Completas (em 13 vols., s/d), O Deus sem Rosto (com poemas escritos em Brasília, 1968).

 

O Poema

 

Juca Mulato saiu em 1917, no mesmo ano, portanto, de A Cinza das Horas (Manuel Bandeira), Nós (Guilherme de Almeida) e A Frauta de Pã (Cassiano Ricardo). Nada, no poema, prefigurava o Modernismo, ainda não incluído no ideário estético do autor. Já está nele presente, é certo, o nacionalismo (de tema e tom), que, noutros termos e engastado em diverso contexto, definiria importantes vertentes do movimento; mas a sua filiação é romântica, de um romantismo perpassado pelo “espírito parnasiano”, se nos permitem fundir aquela observação de alguns críticos com esta visão de Wilson Martins, temperando-a com a ressalva de Júlio Dantas: “dum parnasianismo ardente e paradoxal – mármore e sangue, bronze e nervos”. Se, porém, pouco ou nada interessa às correntes modernistas, como tais, é o Juca Mulato, ainda hoje, a obra mais querida e de maior repercussão dentre as de Menotti. Na palavra incisiva de mestre Manuel Bandeira: “Nenhum dos seus livros modernistas superou o êxito de Juca Mulato, onde o Poeta se apresenta em sua feição mais genuína.” O que parece confirmar a dúvida de muitos acerca da sinceridade do modernismo menottiano (dúvida talvez mais cabível em relação a um Guilherme de Almeida)...

Divide-se o poema em nove partes que assim resumimos:

 

1 – Germinal

 

Mostra Juca Mulato em seu ambiente, define-lhe uns traços e assinala o início da paixão.

 

2 – A Serenata

 

Belas trovas cantadas ao violão, em seguida ao despertar para o amor. De grande encanto melódico.

 

3 – Alma Alheia

 

Diz do alheamento de Mulato às coisas do seu dia-a-dia, flagra-lhe uns devaneios eróticos, expõe passagens de sua luta e rendição ao amor que lhe nasce.

 

4 – Fascinação

 

Um belo e espraiado cântico ao amor, força vital que anima a Natureza e o Cosmo (“Tudo ama!”), força a que decididamente sucumbe:

 

Acendendo no olhar um lampejo divino

Juca Mulato cede à Vertigem que o enlaça,

e brada num transporte:

 

“Arrasta-me também, no turbilhão que passa!

Leva-me ao teu destino,

Amor que vens da Vida e que vais para a Morte!”

 

Única parte do poema em que se emprega a polimetria. E, parece-me, a mais próxima do estilo simbolista.

 

5 – Lamentações

 

Mais uma vez exibe o autor a sua mestria na quadra setissilábica, em duas trovinhas de excepcional fatura, cantando a fugacidade do amor e suas tristes seqüelas. Quadrinhas de ritmo encantador e melodia sensual, com um jeito popular de modinha. Segue exprimindo a dor de amor num soneto decassilábico, em quintilhas de cantantes alexandrinos trímetros e em dísticos de alexandrinos convencionais. As últimas lamentações dirigem-se ao cavalo Pigarço (palavra que designa a cor do animal, mas é também o seu nome), e nelas, de novo, revela o Poeta sua força na canção popular.

 

6 – Presságios

 

Culminação da trova popular, agora em quintilhas heptassilábicas de maravilhosa musicalidade e perfeita amarração conceitual. A redondilha, aqui, obscurece os alexandrinos de em torno.

 

7 – A Mandinga

 

Diálogo com o feiticeiro, a quem pede uma cura para o mal de amor. Mas não há mandinga para isso: “– Juca Mulato: esquece!” Para esquecer, Roque, o feiticeiro, diz-lhe que fuja.

 

8 – A Voz das Coisas

 

O cedro, a torrente, a estrela, o azul, a terra incitam-no a ficar: “o que te vale rir, fugitivo e a esmo, / buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo? / Tu queres esquecer? / Não fujas ao tormento... / Só por meio da dor se alcança o esquecimento.”

 

9 – Ressurreição

 

Juca dirige-se ao “coqueiro do mato” para dizer-lhe que lhe compreende “o sonho inatingível”, vaticinando: “Ai! eu sempre serei infeliz nesta vida!” Na parte II, outro soneto, alexandrino, dirige-se à “Senhora”, formulando uma filosofia da busca da felicidade bastante evocativa do soneto famoso de Vicente de Carvalho. Na parte III, que finaliza o poema, exorta-se o protagonista, realisticamente resignado:

 

“O Senhor jamais erra...

Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.

Juca Mulato! volta outra vez para a terra,

procura o teu amor numa alma irmã da tua.

 

Esquece calmo e forte. O destino que impera,

um recíproco amor às almas todas deu.

Em vez de desejar o olhar que te exaspera,

procura esse outro olhar, que te espreita e te espera,

que há por certo um olhar que espera pelo teu...”

 

A Linguagem do Poema

 

Ao nacionalismo temático do Juca Mulato não corresponde um nacionalismo lingüístico à semelhança, por exemplo, do pregado por Manuel Bandeira em “Evocação do Recife”. A linguagem do poeta-narrador não se aproxima, nunca, do coloquial; e mesmo as falas do herói, simplório embora, não o fazem jamais, com esta única exceção, em “Alma Alheia”, II, verso 8: “Estás ficando gira...” Já na primeira dessas falas (em “Germinal”, III, versos iniciais) o tom elevado e culto ressalta:

 

“Que delícia viver! Sentir entre os protervos

renovos se escoar uma seiva alma e viva,

na tenra carne a remoçar o corpo moço...”

 

Em “Lamentações”, as seções vêm todas entre aspas, o que indica, no poema (com a exceção decerto involuntária das três primeiras estrofes de “Ressurreição”, onde se omitem), serem provenientes do lábio enamorado de Juca. E obedecem todas –mesmo a cantiga dirigida ao cavalo Pigarço (V)– ao alto padrão lingüístico observado pelo poeta-narrador. Há, aliás, nessa cantiga, duas ocorrências de apossínclise, fato sintático por certo incomum nos falares do português do Brasil: “era como se o não visse” e “Antes era eu que a não via”.

No diálogo que trava com o feiticeiro (“A Mandinga”, I, verso 11), é evidente a fuga ao populismo pronominal: “você me vai dar um remédio”, em vez do corrente (já hoje com foros de literariedade) “vai me dar”. (Verdade que poderia dizer “vai-me dar”...)

Em contrapartida, na parte final (“Ressurreição”, II, verso 2), evita nitidamente a tmese, escrevendo “o poderia pôr”, quando a vírgula que antecede o sintagma sugeriria, talvez, “podê-lo-ia pôr”.

Destoando da geral correção de linguagem, a pontuação de Menotti, neste poema, está longe de ser canônica. Não citarei todas as ocorrências (ou inocorrências), que seria cansativo e inútil. Mas alguns exemplos devem ser dados:

“Germinal”, III, v. 20/21: “O crescente, recurvo, a treva, em brilhos frange, / e, na carne da noite imerge-se e se abisma”; adiante, V, linhas 12 e 13: “Mas, a mágoa que ronda a alegria de perto, / entra no coração sempre que o encontra aberto...”

Em “A Serenata”, no segundo verso da sétima quadra, separa o sujeito de seu predicado: “um sonho, minha alma junca”.

Em “Alma Alheia”, I, linha 19: “dizia-lhe baixinho, o que ele tinha n’alma”.

Também nos “Presságios”, I, nos dois últimos versos, omite uma vírgula, se não lança uma de mais: “e, aos tormentos que eu já tinha / novos tormentos juntei”; em II, versos 3 e 4, lê-se: “A vaga sugestão dessa angústia imprecisa, / contamina-lhe a dor que o tortura sem pausa”; e três versos abaixo: “o olhar amado e langue, / deixa um rasto de luz como um rasto de sangue”.

Nalguns dos inúmeros casos encontráveis, é razoável supor distração. E distração, certamente, é a ausência de ponto final em “É macabro o pardieiro”, segunda linha de “A Mandinga”.

Concluindo estas observações, assinalo uma curiosa impessoalização do verbo andar, em “Presságios”, II: “Talvez mesmo ande nisso / artimanhas do Demo e coisas de feitiço...”

 

Métrica

 

Merecem nota alguns incidentes métricos.

O verso utilizado é, quase sempre, o alexandrino de cesura medial ou o trimembre. Surge isolado, entretanto, um dodecassílabo atípico no início de “A Voz das Coisas”: “E a torrente que ia rolar para o abismo”.

Antes (em “Germinal”, V, verso 18) já observáramos uma quebra por excesso: “como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra”, onde, ao que parece, distraidamente se encosta o artigo à palavra luz.

Também parece distração (“Germinal”, II, v. 8) o singular “desejo” em “tem desejo até de rebrotar raízes”. Há, contudo, se bem que menos gritantes, outros hiatos na seqüência dos versos: “Aflora-lhe no imo um sonho que braceja”; “o ar é como um bafo, a água corrente, um pranto” (“Germinal”, IV, 1 e 23); “Eu, da luz do olhar garço” (“Lamentações”, V, 31); “– Roque, eu mesmo não sei se este mal tem cura” (“A Mandinga”, I, 23).

Em sentido contrário, algumas sinéreses: “etíope” (“Germinal”, II, antepenúltima linha); “vêem” (“vêm”, na grafia das fontes mais antigas; “A Serenata”, quarta quadra, v. 1: “Os céus não vêem tua mágoa”; pode-se ler, alternativamente, com sinérese em “tua”); “E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente” (“Lamentações”, III, 3); “canoa” (“Lamentações”, IV, 8); “caem-te” (“Ressurreição”, I, 7).

 

As Trovas e a Dor de Amor

 

A beleza ideativa e musical, bem como o acabado torneamento das trovas de “Presságios”, deixaram-mas, desde as primeiras leituras, feitas ainda em meus primórdios poéticos, íntegras e destacadas na memória. Lembrando-as, afiguravam-se-me como que engastadas no poema; como se tivessem surgido independentes e só depois aproveitadas no contexto dele. Isso me sugeriu divagações acerca de uma tristeza “literária”, falsa tristeza manhosa, visceralmente romântica, dengosa e sonsa, dissimulada aplicação da filosofia do chorar-para-mamar...

A releitura, agora, mostra que me enganava. Conforme vimos, o autor não cogita de diferençar, lingüística ou estilisticamente, da palavra do poeta-narrador as falas do protagonista. Assim, as trovas, aqui ou alhures, no poema, são de Juca, não de Menotti... (Tirante, talvez, a canção de “Presságios”, ao que parece entoada por outra pessoa: “Juca Mulato sofre. Em cismas se quebranta, / Uma viola geme; uma voz triste canta”.)

Isso, porém, não invalida de todo aquelas divagações. Não pertinentes a Juca Mulato, a não ser na medida pessoana em que todo poeta é um fingidor, sê-lo-ão, todavia, a outros poetas chorões, propensos a um estado de espírito melancólico não necessariamente fundado em motivo real de padecimento ou desilusão amorosa.

 

Observações Finais

 

Convergem no poema os três estilos poéticos dominantes no Brasil de meados do século XIX a inícios do XX.

Apesar da proximidade cronológica e de algumas opiniões em tal sentido, em nada antecipa a ruptura modernista.

A linguagem é conservadora, o mesmo podendo-se dizer da versificação.

Nada disso diminui o valor da composição, uma das mais fascinantes realizações da lírica nacional (embora narrativo, o poema é de natureza lírica) no período imediatamente anterior à instalação do Modernismo.

 

 

 

 

 

 

Obras Consultadas

 

BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Nova Aguilar. Rio de Janeiro, 1971; p. 618.

BRITO, Mário da Silva. Poesia do Modernismo. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968.

CORRÊA, Oscar Dias. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. www.academia.org.br.

COUTINHO, Afrânio / SOUSA, J. Galante de (org.). Enciclopédia de Literatura Brasileira. Global, São Paulo, 2001. 2.ª ed.

DANTAS, Júlio. Prefácio a Muca Mulato.

MARTINS, Wilson. O Modernismo. Cultrix, São Paulo, 1965; p. 216.

PICCHIA, Menotti Del. Juca Mulato, Civilização Brasileira, São Paulo, 1952. 29.ª ed.

Poemas. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1954.

O Deus sem Rosto. Martins, São Paulo, 1968.

Juca Mulato. Itatiaia, Belo Horizonte, 2001.

Melhores Poemas. Seleção de Rubens Eduardo Ferreira Frias. Global, São Paulo, 2004. (Algumas das anomalias de pontuação citadas desaparecem, sem explicação. Introduzem-se erros desse e de outros tipos, como, só para exemplificar, a queda da vírgula em “Alma Alheia”, I, linha 20; “trilhos” por “brilhos”, em “Germinal”, III, 20; “resfolegando” por “resfolgando”, em “Alma Alheia”, I, 17; a inserção de um “à” no verso 7 de “Lamentações”, III.)

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poesia Moderna. Melhoramentos, São Paulo, 1967.

 

 


 

 

 
 
 
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