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EM TORNO DE SOUSÂNDADE 

 

     Por ALEXEI BUENO 

 

Texto extraído de  

POESIA SEMPRE  - Ano 6 – Número 9  - Rio de Janeiro - Março 1998. Fundação BIBLIOTECA NACIONAL – Departamento Nacional do Livro -  Ministério da Cultura.  Editor Geral: Antonio Carlos Secchin.  Ex. bibl. Antonio Miranda

 

   s    casos principais de revisionismo literário no Brasil, como todos sabem, restringem-se às figuras de Sousândrade e Qorpo Santo, ambos com as curiosas deformações fonética e ortográfica nos nomes, mas com muito mais resultado conseguido no primeiro. O caso de Pedro Kilkerry, o muito interessante simbolista baiano, aparece mais como um exemplo de pesquisa e de revalorização que de revisionismo, havendo seu nome sempre mantido uma aura exótica dentro da obscura crônica do simbolismo brasileiro.

    Nenhum caso, no entanto, assumiu a dimensão desmesurada que envolveu o nome de Sousândrade, curiosa figura humana e poeta completamente desprezado no quadro da nos­sa poesia romântica. A explicação desse fenómeno é, para nós, de ordem absolutamente so­ciológica, como comentaremos adiante. O processo crítico de sua revisão, sobejamente co­nhecido, será igualmente comentado. Limitar-nos-emos, por enquanto, a um esboço do perfil poético de Sousândrade. 

O que primeiro salta à vista do leitor, tanto nas Harpas errantes como n' O guesa, para nos atermos às partes "tradicionais" de sua poesia, é a invariável dança do verso entre a dureza e a frouxidão. O verso de Sousândrade é um instrumento desconfortável, uma roupa geral­mente muito apertada ou muito larga para o corpo da idéia que quer conter. Daí, em parte, o verbalismo absolutamente vazio de alguns versos, recheados de adjetivos sem a menor funcionalidade. É curiososo que justamente a crítica que criou no Brasil o fetichismo da objetividade, a poesia "substantiva" etc, tenha preparado a apoteose do autor de versos como esses: "O azul sertão, formoso ou deslumbrante"; "Tal bonina quereis, pura, cheirosa!'"; "Circundados de gelos, mudos alvos,"; entre centenas e centenas de outros, ou de comparações absolutamente desastradas como esta; "Lá, onde o ponto do condor negre­ja/Cintilando no espaço como brilhos/D'olhos", em tudo isto, ninguém poderá negar, há a marca inconfundível do poetastro. E não por receitas primárias do fazer poético, como o abandono do adjetivo ou parvoíces semelhantes. Com adjetivos, Camões, por exemplo, escreveu algumas das estrofes mais substantivas da língua ("Não acabava, quando uma figura"). Mas o que vemos na imensa maioria dos versos de Sousândrade é a pior dicção do romantismo brasileiro, inchada, palavrosa, vazia e ornamental. E tudo, ainda por cima, num verso claudicante. Compare-se o decassílabo do maranhense com o de um Varela, por exemplo. Não com o maior Varela, o do Cântico do Calvário, o que seria suma covardia, mas com o Varela dos piores momentos de O Evangelho nas selvas. Mesmo nos trechos mais desinspirados, mais ineficazes ou vazios, o verso é esplêndido. Em Sousândrade, até nos melhores momentos o verso é canhestro. Mas não é isso, sem dúvida, a grave condenação de um poeta. Antero de Quental sofria às vezes de graves fraquezas de metrificação, mas era Antero. O mesmo com outros grandes poetas. A parte "tradicional" de Sousândrade, a numericamente majoritária, é indefensável, e não é nela que se sustenta a sua fama longinquamente póstuma. Há, na verdade, antevisões muito interessantes dispersas na sua poesia, como a descrição de uma decomposição na "Harpa" XXIV, espécie de Une charogne sem a influência da mesma. Mas esses poucos momentos não salvam o mar de verbalismo oco do todo. O que resta examinar são os celebérrimos trechos plurilingues d' O guesa.

Não é possível neste espaço traçar a longa genealogia dos textos plurilingues, do alexandrinismo às bizarrias barrocas, do soneto tetralíngúe de Gongora aos jogos de Rabelais, do patois de Gil Vicente aos bestialógicos variados. Vejamos a estrofe final do assim chamado "Inferno de Wall Street": "- Bear... Bear é ber'béri, Bear...Bear.../= Mammumma, mammum-ma, Mammão./- Bear... Bear... ber'... Pegasus/Parnasus.../= Mammumma, mammumma, Mammão."

Para quem já leu a análise desse trecho feita pelos irmãos Campos, algo fica evidente: a única coisa admirável nesses versos é a análise dos irmãos Campos. São versos para serem analisados, e aí está a chave de tudo. O divórcio absoluto entre literatura e vida. O autor para se fazer teses. A fuga da literatura, reduzida à sua mínima expressão, para algum bunker universitário, autofágico e masturbatório. Sousândrade só é lido, só foi lido e só será lido nas universidades. Quem mandou o pobre homem da rua, ao ler "Mammumma", não se lembrar da ursa Mumma, do Atta Troll, de Heine? E que Mammumma deve ser a contração de Mamma com Mumma? E saber que os especuladores da bolsa eram "ursos"? E entender que "ber'beri" é uma redução métrica de beribéri, e que a especulação, portanto, traz a doença?! E que Mammão é realmente mammon, a riqueza? Pobre homem da rua. Até com certa escolaridade, pode ser que entendas, ao ouvir, "ber'beri", síncope absolutamente desastrada (até nos trechos revolucionários Sousândrade continua errado), que se trata de um habitante do Norte da África, argelino ou marroquino. Como perceberias, afinal, que a especulação causa os mesmos efeitos da carência de vitamina B1 E "Mammão", em vez de mamtnon? Pensarás talvez, ao ouvir o último verso, que um gago ou um idiota implora por uma papaia no meio de uma feira, graças ao aportuguesamento desastrado da palavra. Como és ignorante, homem da rua! Matricula-te numa universidade, às pressas! "Mammão" pode afinal relacionar a voracidade especulativa com a atividade mamária! E com tal floresta de analogias, caro leitor, pode-se extrair toda uma cosmogonia ou uma filosofia de um anúncio de classificados. Mas mesmo depois de inteirado de tudo isso, de toda essa exegese, o que resta da leitura? Todas essas idéias afluem no tempo em que se leva a ler os versos? Para onde vai a polifonia expressiva da poesia? Há textos de riqueza pletórica, de barroquismo intricado, como no sublime Grande sertão: veredas, mas funcionam em toda as suas possibilidades no momento mesmo da leitura. Quanto ao nosso vate maranhense, repleto do alexandrinismo terrível da província, das abominações tradutoras de Odorico Mendes e da própria bagagem pessoal de poliglota e homem do mundo, que poderíamos esperar? 

Mas isso é a única contribuição "original" do romantismo brasileiro! Poesia de exportação. Como sempre o Brasil continua for export, do pau-brasil até a poesia. Mercado interno, nada. Não nos parece que um europeu ou um norte-americano se preocupem muito em julgar a sua literatura pelos olhos do alheio, característica do colonizado e do subdesenvolvido. A poesia de exportação de Oswald de Andrade, com a sua saudável limpeza e a influência de Cendrars, seria poesia de exportação? Era, como as piranhas empalhadas, os quadros de asa de borboleta e as caranguejeiras secas por baixo de um vidro o são também. A poesia brasileira é mais do que isso. Não creio que "I-juca-pirama" ou A cachoeira de Paulo Afonso, ou "O navio negreiro" (infinitamente superior aos aproveitamentos do tema por Béranger e Heine) não sejam grandes momentos americanos do romantismo mundial. Originalidade é conquista que vem ou não, para qualquer artista sério, da evolução das necessidades expressivas. Não é corrida científica por uma descoberta ou entrada no livro dos recordes. John Cage é infinitamente mais original que Bach, Sousândrade que Gonçalves Dias. E daí? O jargão cientificista, a poesia "experiência" etc. são de uso daqueles que julgam a arte uma realidade inferior, inferior a essa sempre ultrapassada e descartável tecnologia que nada tem a ver com ela. 

E a popularidade de um Sousândrade, popularidade universitária, e só, vem da facilidade de usá-lo em teses. É mammon que preside tudo, no fim das contas. O fetichismo da objetividade criou no Brasil um emburrecimento crítico que só consegue manipular a matéria literária como se manipulasse seixos ou calhaus. Nenhuma sutilidade, nenhuma profundidade. Enquanto toda a evolução da física moderna aponta para uma espantosa fluidez e sutilidade da matéria, enquanto Proust, a filosofia e a psicologia indicam tudo o que há de humanamente essencial além do aparentemente concreto, uma crítica primária enterra a percepção literária no materialismo mais anacrônico e superficial. 

Mas o pior, para concluir, é o belicismo messiânico disso tudo. Não basta apontar as especificidades espantosas de Sousândrade e trazê-lo ao mundo dos vivos. É preciso antepô-lo a todas as grandezas do nosso romantismo. Basta de Gonçalves Dias, basta de Castro Alves. Os irmãos Campos, tomados pelo furor revisionista, apontam a verdade. E há míopes suficientes para vê-la. É espantoso ver essa espécie de infantilidade fazer homens como Augusto de Campos, o magnífico tradutor de Keats e dos provençais, exclamar absurdos como "Sá de Miranda maior do que Camões", não sei se movido pelo famigerado artigo em que Pound, além do epíteto perfeito de "Rubens do verso", afirma que Camões, nos oito mil e tantos versos de Os lusíadas, nunca criticou ninguém. E inacreditável. Ou ver alguém com a cultura de Haroldo de Campos afirmar coisas semelhantes. O resultado de todo esse furor belicista e messiânico, desse espessamento agressivo da percepção crítica, já está entre nós, pronto para morrer: a poesia mais pífia já escrita no Brasil desde o neoparnasianismo, pelos prestativos epígonos das vanguardas paulistas. 

 

Página publicada em abril de 2018

 


 

 

 
 
 
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