Fonte: uintalvelho.blogspot.com.br
DOIS ARTIGOS DE ANTÔNIO OLINTO
SOBRE NAURO MACHADO
A POESIA DO SER
Que significado tem a presença de um poeta emaranhado na presença de um povo? São duas presenças que se interpenetram, a do indivíduo em suas pequenas grandezas, a de um país na sua imensa pequenez. Pois sabemos que há poetas que representam os dois extremos, que falam por si e falam por nós, que são eles e são-nos. Há muito que deparo com dois poetas assim, que em diferentes partes do Nordeste brasileiro, conclamam os habitantes de outras regiões a que compareçam ao banquete da poesia.
Um, da Paraíba, é também ficcionista e diarista: Ascendino Leite, sobre quem escrevi há duas semanas. O outro, do Maranhão, Nauro Machado, autor de 34 volumes de poesia (três deles foram editados por mim, em minha não mais existente Editora Porta de Livraria: Noite Ambulatória, 1969; Do Eterno Indeferido, 1971; e Décimo Divisor Comum, 1972). O mais recente, A Rocha e a Rosca, saiu em São Luís neste começo de ano. Isto quer dizer que, nas últimas décadas, Nauro Machado lançou pelo menos um livro por ano.
Tenho para mim que, de seu ponto de observação no litoral maranhense, Nauro Machado apascentou milhares de versos que nos explicam e dão força ao estar-aí brasileiro. O livro de agora consta de um poema só. Em 61 sextetos, rijos como chumbo e mansos como canto gregoriano, ergue o poeta um arcabouço de epopeia, com imprecações e vocativos que exigem respostas do outro lado, esse misterioso lado que está perto de todos nós e a que temos de dar satisfações a cada instante do avanço. O "Ó tempos, ó costumes" é uma exclamação que o poeta substitui por:
"Ó vãs falas da epopeia
feita apenas de uma ideia
laborada pelo vento.
Ó sapatos e objetos
A se fazerem repletos
Do meu próprio pensamento."
No fundo, é a epopeia do homem só, do ser parido no meio de dores, que o poeta mostra, na sucessão de interpelações, feitas à consciência e ao medo, de se descobrir tal qual é:
"Sei-me ser do meu ser: sei-mo.
Sei-me ser quem de outro sou,
E por isso em mim eu queimo
Neste inferno aonde vou,
Enquanto vivo ainda teimo
No cadáver em que já estou."
O poeta sente que é preciso soletrar o pó, perceber que o tempo não passa, nós passamos por ele, cuidando meticulosamente de cada verso, enxugando-o, polindo-o e evitando que ele ultrapasse o seu limite exato de significação. A palavra, a mulher, a vertigem - os três motivos se ntrelaçam
nos seus versos, em que o poeta resume sua caminhada de tempos sem conta. Deseja libertar-se:
"Prouvera-me ser assim
Desfeito no chão que cresço
Feito fruto do real,
Que é como não haver fim
O que é feito sem começo
Para a soma do final."
Por outro lado, pode a poesia de Nauro Machado ser também lírica, desse lirismo que nunca se entrega por completo -negaceia, avança e recua, finge afastar-se para, logo depois, aparecer com tranquilidade e mostrar a lisa superfície da sua face. Tanto nos livros anteriores como no de agora, os versos
múltiplos, inesperados, mutantes, de Nauro Machado, surgem e ressurgem, fogem e vêm de novo, numa certeza de que a palavra é capaz de salvar o homem. Tudo, nele, é palavra:
"Ó palavra que retorço,
Que avanço e que retrocedo,
Como pantera que torço
Ou como ave no arvoredo,
Deitando de ventre ou dorso
No cadáver do meu medo."
Em sua apresentação do volume, explica o poeta que A Rocha e a Rosca não era o livro que havia planejado para publicação agora, neste 2003. Ou, pelo menos, não pretendia divulgá-lo em separado, mas, sim, como parte de uma Trindade Dantesca. Adianta: "Razões extemporâneas se interpuseram,
de forma às vezes dolorosa, para que houvesse uma quebra cronológica na construção, pedra por pedra, tijolo sobre tijolo, de uma morada poética rigorosamente pensada e angustiadamente erguida com minhas mãos de operário verbal."
Escrevi, há muitos anos, que a poesia de Nauro Machado é a poesia do ser. Nele, mais do que em qualquer poeta brasileiro, podemos perceber com nitidez que o ser mora na palavra, mas que também a palavra mora no ser.
Diante desse dominador do verso que, na excitação permanente de sua visão de mundo, postado no litoral do Maranhão, não faz outra coisa a não ser mandar-nos suas mensagens periódicas de poesia, há que tê-lo como falando por todos nós.
A INVENÇÃO DA VERDADE
Desde seu primeiro livro - Campo sem base, de 1958 — que Nauro Machado colocou a poesia brasileira na sua exata missão de inventar a verdade. A seu terceiro volume - Do Frustrado Órfico, de 1964 - dediquei então longo artigo proclamando que ali se achava a nossa poesia de vanguarda. A
partir desse livro, publicou Nauro Machado trinta e três livros de poesia, sendo que fui responsável, em minha Edições Porta de Livraria, por três de seus volumes: Noite Ambulatória, de 1969; Do Eterno Indeferido, de 1971; e Décimo Divisor Comum, de 1972.
Tornou-se Nauro Machado, com sua obra, o poeta brasileiro por excelência. Dele sai agora um poema longo — Pão Maligno com Miolo de Rosas — um levantamento poético que busca a verdade, e ao longo dessa busca, inventa-a. Seu domínio sobre a palavra aumentou, mas passa ela também em Nauro a valer por si mesma, a devorar-se quase que de verso a verso, a gritar as pequenas e mudas verdades que dormem no dia-a-dia e surgem no dorso de palavras novas e antigos significados, com apelos pelo comparecimento de deuses, gentes e coisas, que venham testemunhar o que acontece com todos os que transitam pelas estradas sem fim, cá e de baixo, e o poeta insiste:
"Chame o gari e a laqueadora,
O mendigo e a proxeneta,
O Juiz e a Promotora,
A mãe sem leite em sua teta,
Chame os mendigos da praça
Chamada João Lisboa,
Onde, quando nela passa,
Minha dor se faz pessoa."
O poeta não promove uma chamada geral, mas cobra de todos nós pelo que não existe por inteiro e pelo que podia ser feito e não é feito, em qualquer setor em que se viva.
Numa análise dos versos de Nauro Machado, verifica-se que nele avulta o ritmo que o poeta insufla nas palavras, mas também me parece que a força maior de seus versos vem a ser o que Bons Partemack chama de "absorção" ou mesmo o ritmo ou o "cântico" implícito na frase de Paul Eluard: "Poesia é frase que canta". Para Pastemack, o poeta não "constrói", mas "absorve" e precisa ficar "saturado" de poesia antes de erguer o poema, como se o corpo todo participasse do fazer poético. Assim vejo o modo como Nauro Machado cria seus poemas e inventa suas verdades, pois nele a “saturação'' parece permanente e não é por outro motivo que Nauro Machado seja o poeta por excelência que "vive" por inteiro sua poesia, dia e noite, incessantemente, sem que o corpo - e não só o que se pode chamar de "alma" - descanse um momento sequer. Daí versos como estes, do livro de agora:
"Nunca mais verei um rio,
Nunca mais verei o mar,
Nunca mais, num ser tardio,
Nascerei noutro lugar."
Continua:
"Nunca mais, pois já morri,
Sonharei com o que não há,
Como sombra a se esvair
Num espelho a se quebrar."
E, em seguida:
"Hoje, amanhã sem depois,
Hoje, amanhã a se findar.
Hoje e amanhã que são dois
Na eternidade a afundar."
É a entrega total do poeta à sua poesia, sem tempo que sobre para participar normalmente da vida comum, longe de qualquer dia-a-dia que o afaste da poesia, que interrompa sua completa "saturação" no verso, nas palavras que não cessam de fluir, avessas à "construção", livres e independentes de qualquer sujeição a pensamentos que o tirem da poesia.
Foi, assim, natural que Nauro Machado, logo após os trechos citados, haja composto 58 quadras com o uso do vocativo, como nos clássicos e através de "Os" sucessivos, como nestes exemplos:
"Ó putrefato vento
De enganoso lugar,
Ó pluma desamada
Por luares e cristais,
Ó chão de algas e traças
Para o rosto das lágrimas,
Ó águas de rubis tão árduos
Para o anel dos espasmos."
Mais adiante:
"Ó nádegas de estátuas
Sobre muralhas fátuas,
Ó alheios conciliábulos
Para mortos vocábulos,
O pescoços e espáduas
Escapando de escápulas,
O tímpano dos tártaros
Vocábulos dos mártires,
O apodrecer sem ruga
No intestino do açúcar,
Ó mão de nívea pluma
Antevendo a penumbra,
O chumbo que nos funde
A tombar neste túnel,
Ó terra, o Deus mais fundo
Tapando nosso túmulo."
No final do poema, fala nas casas da cidade, nas pessoas que nelas moram, na solidão geral das coisas, e pergunta:
"Que é do perfume e do sândalo?
Que é das luas e dos sóis,
Quando os bêbados são os vândalos
Desta terra sem heróis?"
Só de pensar que o Brasil tem um poeta da altitude e da força de Nauro Machado pode levar-me à certeza de que chegaremos bem mais longe na conquista de uma civilização, mesmo que outros setores oficiais do país não o façam. Sim, o Brasil verdadeiro é o de Nauro Machado, poeta como poucos,
e não o que a nossa imprensa quer levar-nos a acreditar. Ela e o que suas páginas mostram hoje serão em breve coisas do passado. Nauro Machado é quem fala por nós e, através dele, sobreviveremos.
* Antônio Olinto, ensaísta, romancista, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, escreveu e publicou estes artigos na Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, sobre dois livros de Nauro Machado, A Rocha e a Rosca (em 12.3.2003) e Pão Maligno com Miolo de Rosas (em 3.8.2005), que são, respectivamente, o primeiro e segundo cantos do poema
Trindade Dantesca, cujo terceiro e último é este Pátria do Exílio.
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