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                  DE ANIMAIS, SANTO E GENTE  
                    
                  por   Carlos Drummond de Andrade 
                    
                    
                  Extraído  de 
                    
                  
                  POESIA SEMPRE.  Ano 13. Número 20. Março 2005.  Revista trimestral de poesia.  Editor  Luciano Trigo.   Rio de Janeiro, RJ: Fundação  Biblioteca Nacional, 2005.  Ilus.  Ex. bibl. Antonio Miranda 
                    
                    
                    
                  Esse São Francisco não pára de cativar a gente. Há santos que ficam quietos  na bem-aventurança, não descem do altar, só esperam devoção e respeito. 0  Francisco, não. Acompanha a gente na cidade, (...) ensina cada um a fazer  coisas belas e a amar, com sabedoria. Acho que ele está no momento ditando em  Divinópolis os mais belos poemas e prosas a Adélia Prado. Adélia é lírica,  bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei. não dos  homens, mas de Deus: 
                    
                  Uma ocasião meu pai pintou a casa  
                    toda de alaranjado brilhante. 
                    Por muito tempo moramos numa casa  
                    como ele mesmo dizia constantemente amanhecendo. 
                    
                  Nascida à beira-da-linha, o trem de ferro, para ela, "atravessa a  noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida virou só sentimento". E  diz entre outras: "Eu gosto é de trem de ferro e de liberdade".  "Eu peço a Deus alegria para beber vinho ou café, eu peço a Deus paciência  pra por meu vestido novo e ficar na porta da livraria, oferecendo meu livro de  versos, que para uns é flor de trigo, pra outros nem comida é." 
                    
                  Em política, Adélia diz que  "já perdeu a inocência para os partidos". "Sou do partido do  homem". E sai no meio do dis curso. Quer comer "bolo de noiva, puro açúcar, puro amor carnal,  disfarçado de co-rações e sininhos: um branco, outro cor-de-rosa, um branco,  outro cor-de-rosa". 
                    
                  Adélia vai às compras? "A  crucificação de Jesus está nos supermercados, para quem queira ver. Quem não  presta aten¬ção está perdendo. Tem gente que com¬pra imoral demais com um olho  muito guloso, se sungando até a ponta dos pés, atochando o dedo nas coisas,  pedindo abatimento, só de vício, com a carteira estufada de dinheiro, enquanto  uns ama¬relos, desses cujo único passeio é varejar armazéns, ficam olhando e  engolindo em seco, comprando meios quilinhos das coisas mais ordinárias". 
                    
                  Adélia já viu a Poesia, ou Deus,  fler-tando com ela, "na banca de cereais e até na gravata não flamejante  do Ministro", Adélia é fogo: fogo de Deus em Divinópo-lis. Como é que eu  posso demonstrar Adélia se ela ainda está inédita; aquilo de vender livro à  porta da livraria é pura imaginação e só uns poucos do país lite¬rário sabem da  existência desta grande poeta-mulher à beira da linha? 
                    
                    
                    
                  Esta crônica foi originalmente publicada no Jornal  do Brasil em 9 de outubro de 1975. 
                    
                
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