CORDEL CANDANGO
Extraído de:
MIRANDA, Antonio. Brasília, Capital da Utopia (visão e revisão). Brasília, DF:
Thesaurus Editora, 1985. 200+28 p. ilus. 15x21,5 cm. Inclui o capítulo “Cordel
candango” sobre o poema tipo cordel do candango (nascido na Paraíba) Sebastião
Varela. “ Antonio Miranda “
"No mundo não sei porque
quem mais faz menos merece
quem nada fez tudo tem
e pouco se interessa
a gente olhando bem
esta vida é um baser
aquele fumo pacalho
que na feira ninguém quer".
SEBASTIÃO VARELA
O autor desses versos de desabafo é um candango de origem nordestina que decidiu contar a saga brasiliense em poesia popular. Tião (Sebastião Varela) é de Campina Grande e a sua história é a mesma de muitos outros companheiros daquele período heroico da construção de Brasília.
De garimpeiro em sua terra natal passou a soldado da borracha, na Amazônia, no final da guerra. Em 1958 migrou para Brasília já como mestre na confecção de ladrilhos e mosaicos, ofício que aprendera em suas andanças pelo Ceará. Mas foi como um humilde servente de pedreiro que iniciou a sua vida na Nova Capital, cuja experiência decidiu transcrever em versos e que, em boa hora, o Departamento de Cultura da SEC/GDF decidiu publicar (97).
Em competente e bem estruturado prefácio o escritor Cassiano Nunes louva a importância da poesia popular brasileira em seus devidos termos e dimensões, reconhecendo o extraordinário valor documental da poesia de cordel de Sebastião Varela mas não o isentando do pecado de uma certa imprecisão quanto ao metro, uma certa licensiosidade quanto à estrofação e alguns deslizes quanto à rima própria desse tipo tradicional de versejar. Nada disso, no entanto, desmerece a força, o lirismo e o sentido épico da obra de Tião, acrescenta seu ilustre crítico.
É, fundamentalmente, deste testemunho que se ocupa o presente capítulo.
A sequência dos versos não é rigorosamente cronológica e muito material se repete em variações e versões às vezes laudatórias às vezes reivindicativas da obra dantesca dos peões e pioneiros que construíram Brasília, em uma linguagem ingénua e de expressivo sentido descritivo e narrativo. "O Presidente da República / abriu uma concorrência para esta construção / vieram muitos engenheiros de várias opiniões / entre eles Lúcio Costa o maior dos urbanistas / desenhou um avião". (97 : 29)
Assim resumiu Tião, em simplicidade ou síntese magistral, a escolha do plano urbanístico através de concurso público nacional instituído pelo Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.
A fase inicial de construção da Cidade Livre foi descrita em termos bíblicos e com a simbologia apropriada:
"... eram milhares de homens / construindo a Cidade Livre
hoje o Núcleo Bandeirante / a cidade primitiva.
não tem quem diga mas é / legítima mãe de Brasília". (97 : 34)
"Foi de onde começou / o comércio de Brasília
não se pagava imposto / de qualquer mercadoria
viesse de onde fosse / não precisava de guia
foi um negócio à vontade / na construção de Brasília".
Se não fosse desta forma / ninguém se sujeitava
este céu que se vê hoje / era barro que voava
tudo aqui era vermelho / só do pó que levantava". (97 : 35).
O homem, solitário e solidário, exposto à natureza virgem do
Planalto Central.
"Grandes trovões estrondava / para o lado do poente
era sinal de mais água / ventando a todo momento
as telhas se despregavam / deixando tudo a relento" (97 :44)
Chuva e vento, lama e poeira nó dia a dia do desconforto do
candango:
"... virava tudo pró ar / os grandes lençóis de poeira
fazia nuvem nos ares / tudo era vermelhinho
mesmo da cor da tauá / até mesmo a comida / na hora de almo-
çar" (97:64).
A atração mágica de Brasília era responsável pela chegada cons-
tante de novos contingentes humanos:
"E todo dia chegava / gente de todos estados
de toda federação / aqui tudo misturado
a raça já é mestiça / aqui ficou mais Ara/actos (97 : 59).
Na confluência dos vários "brasis", o candango se extasiava com
a própria imagem:
"No começo isto tudo / era muito diferente
nem mesmo a fala do povo / não era como a da gente
e todo dia chegava / cada qual mais diferente" (97 : 67).
"Quanto povo misturado / cada um era um geito
amarelo, preto, branco / tudo ficava vermelho
tudo molhado de suor / no meio do véu de poeira" (97 : 75).
Sebastião faz o registro — justo — da empresa transportadora
pioneira na região:
"A primeira empresa de ônibus / foi a grande Araguarina
transportou os primeiros candangos / de Goiás, Bahia e Minas"
(97:39).
Gente humilde, muitos indocumentados, alguns analfabetos, gen-
te inteligente, intuitiva, disposta a tudo:
"Enquanto isto o serviço / em sua dura faceta
em toda parte uma obra / na base da empleita
tiosco funcionando / vendendo café e leite
Marta Rocha era um bolo / que aqui mais se vendeu" (97 :60).
"Duzentas máquinas no campo / que aqui funcionavam
três quartos Camargo Correia / outras da Nacional
trabalhavam dia e noite / revirando este planalto
botando onde não tinha / tirando onde sobrava"
"Com tudo isso que disse / o serviço não parava
quando se encostava uma / outra vinha começava
de seis as seis da manhã / motor nunca calava
fosse lá que hora fosse / o barulho se escutava" (97 :62)
A marcha para Brasília começou por esses seres seminômades atraídos pela notícia de trabalho garantido e uma nova oportunidade na vida:
"Enquanto isto chegava / carradas de pau de arara
chegava toda semana / gente para trabalhar
serviço tinha pra tudo / só não tinha onde morar" (97 : 65).
"Na Cidade Livre não coube / só tinha que se espalhar
nestas alturas invasão / se deu logo a começar
foi gente que ninguém conta / sem ter onde morar
tudo era trabalhador / sem lugar para acampar" (97 : 59).
A solidariedade dos desvalidos teve lances de esperteza e de grandeza, conforme Tião relata em forma precisa e sem toques melodramáticos:
"A polícia proibia / feitio de barracão
quando ela dava costa / começava a construção
era oito, dez candangos / na mais perfeita união
bem cedinho uma família debaixo / era assim as invasões (97 :65).
Cenário típico do neorealismo italiano (lembra-se de // Teto?) que o Cinema Novo brasileiro, apaixonado pelas favelas cariocas e os dramas urbanos, certamente desperdiçou...
"formaram uma invasão / por nome de Vila Amauri
barraco por toda parte / foi gente como formiga
ali moraram três anos / no fim as águas cobriram".
"Juscelino quando soube / tratou de organizar
formou logo Taguatinga / e tratou de lotear
o Gama e Sobradinho / e tudo veio melhorar" (97 : 67).
Um final feliz mas a história se repete. Brasília incha, extravasa os seus limites de acomodação, está para explodir.
"Formaram outra invasão / por nome de Vila Planalto
que era para ir para o Gama / deu trabalho danado
trinta caminhões, seis meses / foi o tempo que gastaram"
"Tinha outra invasão / por nome de Vila IAPI
somente de habitante / tinha mais de oitenta mil
foram levados para a Ceilândia / meio quarto de Brasília" (97 :75).
As soluções dos governantes não tinham a celeridade e a premura das necessidades daqueles migrantes sem teto. Novas invasões se impuseram como solução transitória, sob os olhos complacentes das autoridades que reprimiam mais a título protelatório que impeditivo, por quanto não existia outra alternativa. Assim foi o episódio da Vila Matias, onde um Robin Hood candango fez a repartição das glebas aos necessitados.
"Matias se encarregou / para medir os terrenos
a cada um o seu lote..." (97 :116).
"Porém quando descobriram / foi enorme a confusão
pegaram logo Matias / levaram para a prisão
como chefe responsável / por esta grande invasão"
"Enquanto Matias preso / mais barracos levantaram
a união dos candangos" (97 :117).
"E assim foi doze vezes / levado para detenção
por causa da moradia / sofrendo perseguição" (97 :118).
"Não puderam acabar / deixaram tudo de mão
pois não tinha onde botar / toda aquela multidão
o jeito foi o Governo / lotear a invasão" (97 : 119).
As condições de trabalho eram desumanas, apenas superadas pelo entusiasmo e o heroísmo que não faltavam àqueles migrantes sem teto mas agigantados pela esperança.
"deste serviço acochado / não se tinha dias santo
muito menos feriado" (97 : 81).
"Um serviço violento / tudo aqui era pesado
14 e 16 horas / fazia a gente enfadado" (97 :49).
"O trabalho violento / em si já nem se falava
porém com a nova ordem / os expedientes dobravam
em vinte e um de abril / Brasília se inaugurava" (97 :155).
No Rio de Janeiro, Juscelino enfrentava a oposição à sua obra. Muitos apostavam em que ele não consiguiria inaugurar a cidade na época prevista.
"Em meados de 59 / apareceu um boato
disseram que isto tudo / ainda virava mato"
"Quando Juscelino chegava / todos mudavam a feição" (97 : 76).
A segurança de trabalho era mínima, em condições improvisadas e precárias. A alimentação era escassa e de má qualidade. A organização do trabalho dificultava o sindicalismo, a fiscalização, os movimentos reivindicativos.
"Ninguém sabe os acidentes / por dia quantos se davam
pois os canteiros de obras / tudo era separado
um vigia no portão / e era tudo trancado" (97 : 85).
"Um dia na Companhia / Pacheco Fernandes Dantas
bem na hora do almoço / veja aí a ignorância
por um prato de comida / teve ali uma matança" (97 :107).
"Até hoje não se sabe / quantos candangos morreram
sabe-se que foram enterrados / no meio dos arvoredos
quem não morreu nos disparos / entraram todos na peia" (97 :109).
"ficou o crime suspenso / sem nada se concretizar"
"Juscelino quando soube / daquela cena passada
mandou punir quem devia / os valentões da pesada
não deixaram nem vestígio / para não serem processados" (97 : 110).
A verdadeira história da construção de Brasília ainda não foi devidamente contada. Os relatos conhecidos são excessivamente prosaicos, enaltecem prioritariamente o aspecto heroico e o pacifismo dos primeiros povoadores mas — mesmo sem desmerecer esse aspecto ordeiro e o paternalismo — haveria que investigar a violência e as injustiças a que se submeteram sob a ação repressiva do Estado e de sua polícia.
O confinamento daquela multidão era um território propício à agitação, ao vício e à insubordinação. A polícia tomou as providências preventivas e coercitivas ao seu alcance, com os excessos costumeiros, para reprimir a desordem ou para manter a ordem.
"Aguardente por aqui / não podia se vender
ia preso o que bebia / e também quem a vendeu" (97:103).
Em uma sociedade autoritária onde o indivíduo pobre é indefeso e nem tem consciência de seus direitos, havia lugar para a ingenuidade, o moralismo e a autoflagelação, o ufanismo e o apego aos símbolos nacionais como tábua de salvação.
"Muitos candangos daqui / saíram arremediados
seguravam seu dinheiro / com jeito e muito cuidado
só ele mesmo sabia / como ganhava suado."
"Outros não davam valor / bebia igual um pato
chegava no mulheril / bebia cachorro e gato
terminavam ébrios e a polícia / levava dando sopapo" (97 : 47).
"Chegou vinte e um de abril / que dia maravilhoso
aquele dia esperado / parece que madrugou
na praça dos três poderes l só se via era doutor" (97 :159).
"Leitores vejam a esquadra l de aviões de fumaça
nos ares com muita orgia / escreveram no espaço
vinte e um de abril / e escreveram também
mil novecentos e sessenta /JK, Brasília, Brasil" (97 : 169).
O versejar de Tião não tem a consistência, nem a coerência e muito menos a grandiloquência de um Martin Pierrô. Pode até ser criticado pelo seu tom nostálgico e desalinhavado, mas seria justo reconhecer o tom didático, memorialista e descritivo do nosso poeta. Ele tentou ser fiel aos fatos que narrou ou descreveu, munido das informações que seu limitado mundo de candango lhe permitia, com a visão de mundo e de realidade própria de sua condição humilde. Aliás, a condição de seus companheiros, conterrâneos, contemporâneos pelos quais testemunhou, na mesma ótica e expressão popular que o ressaltam como um ser plural, como uma voz coletiva, enfim, como um autêntico poeta de
cordel.
"E assim foi o candango
na Fundação de Brasília:
esta cidade custou
o que ninguém avalia
poeira lama e saudade
também levou muitas vidas"
"Hoje o candango é esquecido / e vive sem proteção
perderam a mocidade / nesta grande construção
vivem nas Cidades Satélites / porém sem satisfação" (97 :123)
|