O CONTRA-ESTILO EM WLADEMIR DIAS PINO
Alvaro de Sá
A marca dos trabalhos de Wlademir Dias Pino é a permanência, em todos eles, de um processo de interferência nas linguagens que se dá em diversos níveis e em diversas direções. Buscar a sequência e o nexo dessa atuação sobre as linguagens é estabelecer a biografia de seu processo autoral e, com isso, o seu contra-estilo.
A AVE, produzida no início dos anos 50 e editada em 1956 por ocasião da fundação da Poesia Concreta, partia de frases-slogan Ave voa dentro de sua cor/polir o vôo mais que a um ovo/etc) para desconstruir o texto através da fisicalidade do papel: a transparência, a cor, a perfuração, a posição relativa das palavras, etc. Em camadas que se recompunham por meio de palavras, e finalmente de fonemas, as folhas permutáveis formavam novos textos até chegar ao mínimo: teto / TATO.
Neste livro, e nesta fase, a atuação de Wlademir sobre as linguagens se deu no âmbito verbal, gestual e visual por sucessivos procedimentos de condensação e deslocamento, quando a sintaxe linear do discurso e dos fonemas sofreu uma recomputação, através das posições nas páginas assimiladas estruturalmente a uma superfície de coordenadas cartesianas. O livro, como análise semiótica textualizando a sintaxe. Se, como disse Antônio Houaiss sobre a Poesia Concreta, na época, ela tinha como base inovadora a invenção sintática, foi no livro A AVE que esta invenção atingiu a radicalidade mais profunda e mais surpreendente.
Em SOLIDA, cujas primeiras versões conhecidas datam de 1956 mas que completou-se em 1960 com a edição de um bloco de cartões permutáveis, o sentido cartesiano é mantido com a posição relativa das letras permanecendo nas diferentes folhas dos cartões.
As palavras são obtidas nas posições relativas de uma coluna formada pela palavra SOLIDA colocada em 9 linhas. Esta coluna funda um espaço imaginário onde todas as combinações estabelecidas a partir de quadrados latinos são possíveis. Descontrói-se a palavra para formar conjuntos de letras (não palavras), que são escolhidas dentre as possibilidades, para coincidir com os conjuntos dicionarizados como palavras. Estes conjuntos provêm da positivação das letras em suas posições imaginárias por meio de pontos tipográficos, linhas, áreas, superfícies e volumes. O processo falsifica um texto verbal, que aproveita o automatismo da língua para proporcionar uma orientação de leitura. SOLIDA/ SOL/ SAÍDO/ DA/ LIDA/ DO/DIA. É assim estabelecida uma codificação, através da posição imaginária, entre as letras e os seus positivadores - pontos, linhas, áreas e volumes. O que de modo nenhum autoriza leituras figurativas que identifiquem o ponto com o conjunto SOL, o volume com os conjuntos SOLIDA ou SAÍDO, os vazios com o conjunto SOLIDÃO; nem o trabalho de leitura com o conjunto LIDA.
Da imensa importância desse processo como abertura para a invenção poética dão conta:
- Décio Pignatari que, na Revista Invenção n? 4 (1964), ao lançar o poema - Código, atribuiu ao poema SOLIDA o papel de precursor da exploração poética do código semiótico;
- Augusto de Campos que, nas primeiras tentativas para sair do beco-sem-saída em que se colocara a poesia Noigrandes, vertente da Poesia Concreta, utiliza os quadrados latinos, a permutação de letras para propor o poema ACASO/CAOS sem dúvida uma versão criativa do processo adotado por Wlademir;
- O grau de informação existente no processo do livro SOLIDA. Registra um desabrido desrespeito com a imobilidade do discurso verbal, por isso ele serviu de estímulo à fundação do Poema-Processo. A análise deste livro e de A AVE tornou-se o eixo fundamental por onde iniciou-se a formulação da teoria do Poema-Processo, sem dúvida a primeira manifestação poética de ruptura radical com a modernidade, antepondo a estrutura ao processo, a estática à dinâmica e o determinismo do discurso à indeterminação e à probabilidade advindas da participação do leitor-consumidor.
Seguiram-se outros livros e poemas de Wlademir, sempre dentro do contra-estilo calcado nos processos de interferência nas linguagens. Não caberia detalhar como essa interferência ocorreu. Deu-se em cada um deles: ELEMENTOS foi a dialética entre a verticalidade e a horizontalidade, a fala, a escrita e a visualidade; NUMÉRICOS a condensação das linguagens verbal e matemática de modo a construir uma nova linguagem, onde passam a coexistir signos plenos de significação, valor e referencial, tais como CEU.
Como disse em minha apresentação ao livro escrita em 1969: "Infinito dialético de ordem n, onde cada unidade (página) cria novas possibilidades de exploração continua"; A MARCA E O LOGOTIPO BRASILEIROS, a universalização da leitura do logotipo projetada da área restrita, para o espaço da realidade informacional fundindo tipografia, simbolística, imaginário de diferentes épocas e sociedades, linguagens numa produção textual pau-semiótica; e, ultimamente, os primeiros 6 volumes da ENCICLOPÉDIA VISUAL, um verdadeiro acontecimento de integração visual entre alfabetos, imagens, construções geométricas. Quando a própria linguagem tipográfica é festivamente questionada.
Na presente exposição Sétimo Elogio ao A//a o contra-estilo de Wlademir está presente e aprofunda os questionamentos sobre a linguagem que o autor vem se propondo ao longo de sua história.
A letra A é a representante e paradigma de todas as demais letras do alfabeto e está apresentada sob uma coleção de 1994 formas diferentes.
Esta letra A é deformada, em sua forma original de letra, por meio de variações topológicas tão radicais que acabam por expor, dentro de toda série, os específicos da letra - formações abstraías que, contudo, identificam na sua presença o teor alfabético, em qualquer contexto - que levam sempre à leitura da letra em seu código.
A coleção de letras apresenta-se em diversas séries. Por exemplo a de matriz hexagonal, e a de formas curvilíneas - catenárias, hipérboles, parábolas e outras curvas indetermináveis. Em todas as séries há alguns pontos marcantes.
+ A letra assume tridimensionalidade pois o espaço de inscrição adquire configuração heterogénea por meio de linhas convergentes, semi-paralelas. Forma-se um volume, sem o uso fácil da perspectiva enquanto a tridimensionalidade remete o código para diferentes dimensões semióticas.
+ Diversas formas da coleção assumem o caráter de paródia e ironia à racionalidade aprisionada dos logotipos e remetem para uma outra racionalidade mais livre e menos determinada.
+ A coleção representa em seu todo uma crítica à produção dos alfabetos, partindo de uma rigidez que emoldurada pela criatividade e invenção de seus projetistas orbita implacavelmente em torno do alfabeto capitular latino, da escrita carolíngea e das letras góticas. Esses alfabetos, desde o advento da tipografia nada mais são do que máscaras amaneiradas dessas três linhas que se fundem em busca da economia e da redundância, onde muitas vezes estes dois requisitos não são necessários.
+ A coleção está assentada sobre suportes variáveis -tanto na cor quanto no material. Esta variação implica na rejeição da leitura das figurações e das formas e serve para fundamentar a necessidade de leitura do código, naquilo que a própria tradição firmou como os traços mínimos da letra e que levou a consolidar o A exatamente naquilo que o identifica.
A minúscula e a maiúscula se mostram dentro de uma igualdade de insuspeitada e na medida que o có¬digo é constante a leitura torna-se aberta para ler diferentes A's, em distintas formas, numa mesma configuração topológica presente em uma das formas.
+ Ângulos tornam-se indicadores de leitura. As formas, de abstração geométrica, que por si não proporcionam qualquer informação além daquelas inerentes à sua visualidade, servem para demonstrar uma possível não-figuração da letra que desnuda o código para a letra ser reconhecida.
+ Pela topologia diferençada, as simetrias e suas rupturas abruptas levam à ilusão de dimensões contraditórias num espaço insólito. Ao mesmo tempo que é também consumido o processo árabe de azulejaria que inspirou Escher, algumas formas parodiam os esforços desse autor na busca dos efeitos fantásticos mostrando esses efeitos como forma de leitura de um codificante específico - em Escher o código mínimo da perspectiva e em Wlademir o código mínimo da letra.
+ A ambiguidade trazida pelas probabilidades de leitura tornam presentes as estruturas redundantes utilizadas nas diferentes letras do alfabeto. As formas A da coleção podem, no mesmo tempo, ser lidas como L, V ou até R.
Nesse sentido a apresentação de uma letra somente, no caso a letra A, sintetiza todo o alfabeto. E mostra a complexidade do código alfabético que possue uma dinâmica muito especial e, apesar de sua longa vida na cultura, é pouquíssimo estudada.
+ Esta dinâmica remete à dança e a forma de cada letra é também a trajetória de um ponto que desloca-se no espaço heterogéneo do papel. Como a confirmar as geometrias — euclideanas ou não - que entendem as linhas de modo complementar: ora como resultado de pontos infinitamente vizinhos, ora de pontos deslocando-se no espaço.
+ A observação atenta das 1994 formas apresentadas invade a estrutura do código e refaz, de um modo poético, a conceituação das instâncias da letra em relação ao inconsciente tão bem formulada por La-can.
Os traços alfabéticos fixados em todo o sistema psíquico deixam escapar formações imaginárias motivadas por tensões inconscientes.
+ É possível perceber formas análogas à arquitetura de Brasília, pois os traços alfabéticos se atualizam na estética arquitetônica.
+ Aliás a primeira profissão escolhida por esse autor foi a arquitetura, mas ele abriu mão de organizar espaços para pesquisar linguagens.
Isto torna fácil entender a conexão que diversos críticos fizeram entre a Poesia Concreta e Brasília e as ligações entre a poética e a arquitetura.
E porque ele, nesta exposição aqui em Brasília, apresenta a síntese de uma das vertentes de seu contra-estilo.
Setembro 1993
Texto extraído de um catálogo do MUSEU DE ARTE E CULTURA POPULAR — UFMT
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