CIRO PALMERSTON MUNIZ:
POESIA E AUTOBIOGRAFIA
por Heleno Godoy
Extraído de
GODOY, Heleno. Leituras de ficção e outras leituras. Goiânia: Ed. PUC-GO/Kelps, 2011, p. 92-199.
As condições estabelecidas por Philippe Lejeune, em Le pactre autobiographique (1996), para a existência de uma autobiografia ou o reconhecimento de uma obra como tal, aprecem impedir a inclusão da poesia no gênero. Essa interdição existe por Lejeune não estar interessado (e nunca esteve) em estudar a presença de aspectos autobiográficos numa obra literária, mas em definir e estudar a autobiografia como gênero. Muitos teóricos e críticos, como Paul de Man contestam tal idéia, mas inúmeros outros têm-se dedicado a esse tipo de estudo. Phillipe Lejeune (1996, p.14) possivelmente o mais conhecido e, entre eles, o mais consistente teoricamente, propõe que as condições para a existência ou construção de uma autobiografia sejam:
1. Quanto à forma da linguagem:
– uma narrativa;
– em prosa;
2. Quanto ao assunto tratado:
– A vida individual;
– A história de uma personalidade;
3. Quanto à situação do autor:
– identidade entre o autor e o narrador (de forma que o nome refere-se a uma pessoa real);
4. Quanto à posição do narrador:
– identidade do narrador e do personagem principal,
– perspectiva retrospectiva da narrativa.
A partir de tais condições, é fácil perceber que Dom Casmurro ou Grande serão: veredas, por exemplo, não são autobiografias, mas romances, pois em nenhum deles existe identidade entre seus autores (Machado de Assis e João Guimarães Rosa) e os dois narradores (Bento Santiago e Riobaldo).
A situação da poesia é mais complicada em virtude daquela condição que exige ser a autobiografia uma narrativa “em prosa”. No entanto, o próprio Lejeune dedica grande parte de seu Le pacte autobiographique (p. 245-307), além de um outro livro, Lire Leiris: autobiographie et langage à análise da poesia do francês Michel Leiris, exatamente sob o prima da autobiografia. Há uma relação e uma possibilidade? Sim, diz Lejeune, sobre a poesia de Leiris, ainda que sob algumas condições ou situações: em primeiro lugar, pelo fato de o poeta ter a sua disposição todos os recursos da linguagem, notadamente, o discurso na primeira pessoa, além da narrativa retrospectiva e do pacto como leitor; e, também, na medida em que o poeta faz do “eu” da poesia lírica o “eu” da autobiografia. Por outro lado, ainda diz Lejeune a poesia torna-se uma escritura segunda, isto é, aquela na qual o escritor reconverteu, ao voltá-la para si mesmo, a escritura que ele havia anteriormente elaborado para “dizer o mundo”. Não haveria, por isso, a possibilidade de a experiência poética ser contraditória com o projeto de uma “narrativa” autobiográfica. Na poesia de Michel Leiris, em que tal coisa é deliberadamente buscada, Leujeune encontra todos os elementos de sua própria teoria. Mas, e se tentássemos aplicar os mesmo princípios teóricos e críticos na análise da obra de uma poeta, uma autobiografia, como Leiris afirmou pretender, em famosa entrevista a Raymond Bellour, publicada em 1966? Seria possível encontra na obra de um outro poeta essa “declaração não feita” que nos possibilitasse a aproximação entre poesia e autobiografia? Carlos Drummond de Andrade, talvez? Mas, embora sua poesia centre-se no uso da memória, ela não dá conta (nem foi essa a preocupação do poeta) de recriar sua vida. É verdade que cá e lá, e inúmeras vezes mesmo, em seus poemas, alguma coisa da vida pessoal do poeta de Itabira pode ser detectada, mas não a “narrativa” de sua própria história, jamais a história da “personagem” que ele foi.
O uso da memória na reconstrução do passado e a inclusão de traços autobiográficos numa obra literária, poética ou não, de qualquer escritor, não faz dessa obra uma autobiografia. Afinal, como impede a teorização de Lejeune, memória, biografia, romance pessoal ou autobiográfico, poema autobiográfico, diário íntimo, auto-retrato ou ensaio não podem ser (não constituem como) uma autobiografia, que é, como já disse, o interesse principal dos estudos de Lejeune, que, além dos dois livros citados, escreveu vários outros sobre o mesmo assunto, entre eles: Je est un autre (1980) e Le moi des demoiselles (1993). Existe ainda, em tradução inglesa de Katherine Leary e prefácio de Paul John Eakin, On Autobiography. Desconheço, infelizmente, as outras obras de Lejeune sobre o assunto. Posso me referir, no entanto, a um outro teórico, cuja obra corre paralela à de Lejeune (e que consta de sua bibliografia), James Olney, que escreveu os fundamentais Metaphores of the Self: The Meaning of Autobiography1 e Memory & Narrative – The Weave of Life-Writing.
Se à obra de vários escritores poderíamos tentar explicar o mesmo tipo de análise desenvolvida por Lejeune, parece não ser fácil aplicar o mesmo tipo de análise desenvolvida por Lejeune, parece não ser fácil fazer o mesmo com a poesia de outro poeta que, conscientemente, a exemplo de Michel Leiris, tenha feito de sua poesia sua autobiografia. Um, no entanto, mais do que qualquer outro, entre os poetas que conheço, elaborou sua poesia como se a autobiografia escrevesse. Foi o goiano (mas nascido em Araguari-GO, em 1944), Ciro Palmerston Muniz, cujo aniversário de nascimento se dá no dia 13 de agosto (se vivo, o poeta estaria completando, neste ano de 2005, apenas 61 anos) e o da morte, ainda mais ou menos recente quanto muito lamentável, e lamentada por todos que o conheceram, no dia 15 seguinte. O poeta morreu em 1996.
A leitura de sua obra, constituída pelos livros Tempo maior (1962), Construção do recado (1967), Do elemento (1970) e Chapéu (1987) é reveladora não apenas de traços autobiográficos neles presentes, mas, e isso é muito mais importante, da construção da autobiografia mesma. Para tentar mostrar isso, (se é que estou certo quanto à minha leitura de sua poesia), que referências que farei aqui recairão apenas sobre seu último livro, Chapéu, que traz, como subtítulo, Toda a poesia (1962-1987). A razão dessa escolha está no fato afirmado de esse volume encerrar “toda a poesia” do poeta. Mas, exatamente aí, aparece o primeiro problema, pois quem, como eu, possui os volumes separados dos livros anteriormente publicados por Ciro Palmerston Muniz sabe muito bem que a coletânea não está completa. Falta a maioria dos poemas de seus livros anteriores, que o poeta decidiu não incluir em Chapéu, sem, no entanto, querer, com isso, renegar sua obra anterior. Ele parece ter se decidido por uma antologia de seus poemas até 1987, embora insistindo em declarar ali estar incluída “toda a poesia”.
Evidentemente, então avento a possibilidade de Ciro Palmerston Muniz ter querido enganar seus leitores. Creio antes dele ter tentado “passar a vida a limpo”, quando se aproveitou da oportunidade e reuniu, sob um mesmo título, uma seleção de poemas de seus livros anteriores que mais se coadunavam ou se aproximavam, tematicamente e formalmente, dos poemas inéditos de Chapéu. É aqui que ele começa a elaborar seu “pacto” com o leitor: a escolha de apenas alguns de seus textos anteriores constitui uma delibera forma de constituir um corpus coerente e uniforme, capa de conta de engendrar uma “narrativa”. É que esse último livro, se tomado em separado dos volumes anteriores, significou, para seu autor, uma espécie de turning point, um momento de “decisão/revisão” sobre o passado e o que seria o futuro de sua vida e, consequentemente, de sua obra poética. A informação “toda a poesia” pode ser entendida, assim, como “toda a poesia que, até este momento, configura um processo.” Imaginar essa possibilidade não é entrar em descompasso com a totalidade da obra. Infelizmente, a morte chegou muito cedo para o poeta, aos 52 anos, e ele não pôde levar a cabo o projeto que talvez tivesse em mente, embora tenha deixado inúmeros poemas escritos e inéditos, não organizados em livros. Como amigo pessoal do poeta por mais de 30 anos, tendo convivido com ele constantemente até seus últimos dias, pude ler uns poucos desses poemas inéditos, que ele fazia extrema questão de dizer não estarem ainda prontos para publicação.
Uma razão já parece existir, então, para nos debruçarmos sobre Chapéu. O poema desse nome, e que dá título ao livro, aponta na direção da dualidade fundamental para o poeta: poesia e vida. Em suas palavras:
Tecer a palavra e dizer
Tudo o que se sente e se vê,
Como num sonho.
A vida, ela mesma, transmudada
na mais infinita alegria,
no mais antigo pensamento
como uma lembrança
dum chapéu de palha
de tantas sombras...
É preciso levar em conta, em primeiro lugar, o verbo que dá início ao poema, “tecer”, que remete o leitor, imediatamente, à idéia de “construção”, que por sua vez faz lembrar dois outros títulos da obra do poeta, os livros Construção do recado e Do elemento, que colocam em xeque os aspectos deliberadamente “construtivos” da obra, através da utilização dos “elementos” que comporão seu “recado”. Assim, a poesia de Ciro Palmerston Muniz existe como uma elaboração consciente e meticulosa de um “dizer o mundo/para o mundo” a partir dos elementos que compõem sua vida, “tudo o que se sente e se vê”. Esse “dizer” o mundo e ao mundo é seu “recado”, pois é a linguagem através da qual ele fala de si mesmo e, em assim fazendo, reconstrói sua vida como escritura.
Não se trata, aqui, de entender que a “vida é poesia” ou (pior ainda) que a “poesia é vida” (Ciro não padecia desse tipo de ingenuidade), nem de transformar sua vida em poesia (Ciro jamais foi um decadente oscarwildiano), tampouco fazer de sua poesia a “expressão” de sua vida, ou vice-versa (Ciro era muito inteligente para querer ser um anacrônico romântico retardatário). Trata-se, na verdade, de ler esta construção poética como a escritura da vida. Nas palavras do próprio poeta, “a vida, ela mesma, transmudada”, de elemento constitutivo de uma existência, em elemento construtor de uma “vida escrita”. Ora, estaríamos, assim, no plano daquela outra construção possível da autobiografia, tal como Lejeune reconhece que Michel Leiris descobriu, através de sua obra: a de “uma ordem da vida”, quando o poeta deixa de dar importância ao papel desempenhado pela cronologia e dá precedência aos aspectos temáticos de sua existência, que faz entrar em sua poesia. Ciro Palmerston Muniz teria, então, da mesma forma, escrito a si próprio como uma “história sem narrativa”, para usarmos a expressão de Lejeune.
É isso que nos leva à autobiografia e ao pacto de sua construção, ou ao entendimento da poesia de Ciro Palmerston Muniz como a construção de sua autobiografia. Mais adiante, no mesmo poema, ele diz:
Agora, sem a sombra do chapéu,
me falta até o útero
onde me embalava
e eu bebia placenta
e tinha grandes espasmos.
Como se pode facilmente perceber, o poeta não separa o “eu” presente no poema do “eu” que se apresenta através dele. Há, portanto, como quer Lejeune, identidades absoluta entre o narrador e o autor dessa autobiografia. Mais ainda, aqui existe, de fato, a construção da “história de uma personalidade”, da narrativa da vida individual de uma pessoa real, mantendo o narrador a perspectiva retrospectiva dessa narrativa (desde “o útero/ onde me embalava”). A leitura do poema em sua totalidade confirma-se: o poeta, em nenhum outro de seus poemas, tanto expôs ou revelou de si mesmo como no poema “Chapéu”.
No entanto, poderiam argumentar que tais afirmações partem não de um propósito autobiográfico por parte do poeta, mas do conhecimento que tenho eu de fatos reais e concretos de sua vida. Isso não pode ser tomado como verdade. Conheci o poeta e fui seu amigo, sim, sabendo de vários fatos íntimos de sua vida, o que apenas me levaria à afirmação banal e óbvia de que sua poesia é autobiográfica. Estou dizendo mais, pois insisto em que sua poesia é sua autobiografia, logo, não estou remetendo o leitor a fatos da vida do poeta, mais ao entendimento da elaboração de sua poesia como o seu colocar-se em cena, isto é, seu expor-se, propositadamente, como um escritor que buscou (ou não fugiu disso, se assim se quiser) equalizar a poesia e vida pessoal, e mais, que ele buscou reconstruir (ou “construir”) sua vida pessoal com sua poesia ou através dela.
Outra argumentação contrária se ateria ao fato de que um leitor não possuidor das informações da vida pessoa do poeta estaria impossibilitado de entender sua poesia como autobiografia; quando muito, desconfiaria de que ela pudesse ser autobiográfica. Ora, o argumento falha exatamente pela admissão do caráter obviamente autobiográfico da poesia. Ao se admitir isso, restaria apenas ver, na construção da obra poética do poeta, a elaboração de sua autobiografia.
Esta é a tarefa, embora não seja a única, que a leitura de Chapéu impõe. Não é preciso ir até a página, quase ao final do volume (infelizmente, não numerado), em que o poema que dá título ao livro aparece para o leitor perceber a elaboração do pacto que possibilita a construção dessa autobiografia. Logo no primeiro poema do livro, um dos três únicos que o poeta retirou de seu primeiro, Tempo maior, está escrito que sua “opinião” (este é o título do poema) será a “lembrança longe/ de um passado recente”, com “silhuetas deslizando na memória/ que se apaga”, agravada pelo fato de ter estão o poeta “ontem mais esquecido/ que minha infância”. Lembrança e memória passam a ser construídas, mesmo ao preço do esquecimento, desde a infância, até, como aparece em outro poema (“Da necessidade”, de Do elemento), “o último fim/ de me findar.” A equação proposta por esses dois versos iguala “eu” e “minha infância”, isto é, não é a infância do poeta que está esquecida em algum lugar no passado e na memória: ele mesmo, em seu presente, está esquecido de si mesmo quando no passado. Ora, lembrar-se de um (o eu hoje) equivalerá, em medida igual, a lembrar-se do outro (o eu de antes); logo, falar de seu passado equivalerá, para o poeta, a falar de si mesmo sempre. Portanto, o poeta não apenas lembra-se de si mesmo no passado, ele se constrói a si mesmo na medida em que “diz/fala” desse passado “que os anos não trazem mais” (como o poema famoso), mas que a linguagem pode fazer viver de novo, presentificante e presentificado, na escrita que se torna a si mesma forma e significação. Trata-se, como pode ver o leitor, de um projeto consciente de construção de uma obra.
Restaria questionar a confiabilidade da “narrativa” autobiográfica que o poeta constrói com sua poesia. Mas por qual razão desacreditar dele ou achar que ele, através de sua poesia, “melhora” ou “fantasia”, possivelmente “minta” ou “invente” sua própria existência? E se o tivesse feito, seria menos verdade ou menos verdadeira essa autobiografia assim construída? No entanto, é muito fácil perceber que Ciro Palmerston Muniz foi um dos poetas mais abertos e, por que não usar a palavra, mais honestos que se pode ler na literatura brasileira, por isso mesmo muito preocupado com a insuficiência de linguagem em dar conta de trabalhar o “eu” e, ao mesmo tempo, o mundo. Poesia, para ele, é o gesto essencial da bisca da identidade e, por suposto e/ou extensão, da diferença. Ele termina o mesmo poema acima referido, com a afirmação de que o “eu” presente no poema “debatia-se por falhar/ a lembrança, “perguntando, logo em seguida, se “era aquele lugar”, de “ele o homem” e, a pergunta mais importante, “eu o homem?” É importante detectar, aqui, aquela honestidade referida: mesmo começando seu poema com um “ele” em “eu”, numa evidência de que a identidade, aqui, é relacional (e nem haveria outra possibilidade): o poeta é, na medida em que questiona a possibilidade de não ser; em outras palavras, o poeta diz que “este homem” é ele na medida em que ele não é “aquele homem”, sua identidade sendo marcada, portanto, por uma diferença. Seria, no entanto, muito fácil apenas afirmar que o poeta questiona sua identidade por viver uma “crise de identidade”. O que mais nos interessa é ver como o poeta, em sua poesia, ou através dele, reconhece a diferença que marca sua identidade, tornando-se a manifesta e representada. O poeta torna sua poesia a representação desse investimento na reconstrução do passado e de si mesmo, não importando se o processo seja alegre ou doloroso. Como ele mesmo diz, no poema “Brinquedo” (Construção do recado):
Fogo queimou
cigarro
que fez
fumaça
que se perdeu
Então, sentei
e brinquei
com tudo de novo
“Brincar” relaciona-se, evidentemente, a escrever, sempre “tudo de novo”.
Se isso ainda não por suficiente, basta que se atente, na leitura dos poemas de Chapéu, para a recorrência neles de certos temas e personagens, sempre de modo consciente, nunca contraditório, como a mãe, o pai, o avó, as esposas, os filhos e a avó. Esta última, figura essencial na vida do poeta, é, possivelmente, a mais ressaltada. Em dois poemas diferentes, “Adolescência” (de Do elemento) e “Chapéu”, a avó do poeta aparece, no primeiro, como “lei/ e medo no que tive/ de mais puro”; no segundo, como “doce e amarga até hoje”. O poeta vai além afirma que “o confronto comigo e ela” gerou uma “paixão desencontrada/ de ódio e recato/”. Ao assumir essa relação inegavelmente edípica entre ele e sua avó (“lei” e interdição gerando “ódio e recato”), o poeta indicia a veracidade da informação.
Se isso tudo ainda não fosse suficiente para testar a confiabilidade da “narrativa” autobiográfica que poeta constrói com sua poesia, pode-se ler, confrontando-o, os poemas inicial e final de Chapéu. Talvez fique mais claro o que tenho desenvolvido até aqui. O primeiro poema, já referido, é “Opinião”, no qual encontramos aquela “lembrança longe/ de um passado recente” como capaz de evocar “silhuetas deslizando na memória/ que esquece e apaga”. O último tem o título de “O poema”, e funciona não apenas como um desfecho para o livro, mas como uma ‘miniarte poética’ a posteriori, isto é, colocada aqui, no fim do livro “Chapéu”, não com o propósito ou uma proposta, mas como a conclusão de uma etapa. Não se trata, evidentemente, da “falácia intencional”, pois o poeta não diz ou quer explicar, em seu poema, a intenção que teve em sua obra, muito menos a forma como gostaria de tê-la compreendida pelo leitor. Em “O poema”, o poeta limita-se a revelar a forma como se nasce sua poesia, isto é, “quando o poema/ já não cabe mais/ dentro de mim”. Assim, o processo racional da construção da poesia de Ciro Palmerston Muniz se dá não quando o poema vem ou sai dele num (ou como um) gesto espontâneo, “no espanto”, “da beleza” ou “na tristeza”, “do riso contido,/duma coisa que dói”. Nesse caso, diz o poeta, “não escrevo’, pois o poema “já está pronto”, é obra da natureza, portanto, e, o poeta tem plena consciência disso, não é ele. Ciro Palmerston Muniz sempre acreditou numa poesia que resultasse de um ato deliberado de criação artística, pois, como diz no mesmo poema, ele só escreve “quando não resolvo/ essas coisas da sensibilidade”. Está implícito aí que esse “resolver” não significa escrever para solucionar os problemas existenciais, num mero exercício catártico. Escrever significa, ao contrario, o ato racional de explicitar os conflitos não resolvidos, expondo-os; essa exposição intensifica o reconhecimento da existência de seus problemas, principalmente os emocionais, mas nunca uma forma de solucioná-los. Verbalizar aquilo que o poeta chama de “essas coisas”, torná-las uma escrita, essa a tarefa que se impôs o poeta. Para Ciro Palmerston Muniz, poesia não é a forma de escamotear a realidade ou fantasiá-la, mas a forma possível de um poeta não se furtar à vida e enfrentá-la. Não é que a poesia solucione a existência dos problemas humanos (Ciro era muito cético para sonhar tanto), ela apenas possibilita ao homem deixar no mundo a sua marca, nomeando-o. É preciso insistir nesse corte, eliminar o que é supérfluo e fantasioso, esvaziá-lo de significações outras e, a partir desse vazio doloroso, instaurar o lugar do significante. Como diz o poeta, no poema “Prover e tirar”, a vida “tem me dado marcas/ e caminhos na mente” (importante: a expressão não é “caminhos no coração”, outra evidência de que, para Ciro, a poesia é racional, principalmente, não apenas sentimental). Por isso, afirmar que “tenho tirado da vida/ o que posso e ela/ me provê do que tem./”, reconhecendo, ainda, que a “vida tem muita graça/”, mas “não tem amor”. E conclui: “esse toque sou eu que dou”, isto é, como se o poeta dissesse “ou eu que faço significar”. “Doar”, palavra com que o poeta conclui esse poema, foi, em sua vida, verbo transformado em ação. Nela, como em sua poesia, esta foi sua única verdade, o que faz de uma, a outra: da vida vivida, a vida escrita, sua autobiografia.
Referências
LEJEUNE, Philip. Le Pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1996.
----. Lire Leiris: autobiographique et langage. Paris: Didier, Klincksiek, 1975.
----. On Autobiography. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989.
MUNIZ, Ciro Palmerston. Chapéu – Toda a poesia (1962-1987). São Paulo: Massao Ono, 1987.
OLNEY, James. Metaphores of the Self: The Meaning of Autobiography. Princeton: Princeton University Press, 1972.
-----. Memory & Narrative – The Weave of Life-Writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1998.
Anexo: Três Poemas do livro Chapéu, de Ciro Palmerston Muniz
Chapéu
Tecer a palavra e dizer
tudo o que se sente e se vê,
como um sonho.
A vida, ela mesma, transmudada
na mais infinita alegria,
no mais antigo pensamento,
como a lembrança
deu chapéu de palha,
de tantas sombras
e, um dia, perdido por aí,
não se sabe como ou por quê,
na fazenda do meu avô,
num tombo do cavalo,
por essa infância
tão pequena e infinita.
Agora, sem a sombra do chapéu,
me falta até o útero
onde me embalava
e eu bebia placenta
e tinha grandes espasmos.
A casa enorme
com tantas portas
numa sala descomunal
ficou reduzida a escombros
do que jamais fui.
Nunca, nunca
encontrei outro espaço maior,
nem o universo
onde colocar todos os móveis
e pessoas e pensamentos
e a liberdade
e a falta de tudo
que me faz hoje ter.
minha avó que foi
doce e amarga até hoje.
O confronto comigo e ela
numa paixão desencontrada
de ódio e recato.
Minha mãe que nunca
se mexeu,
como uma estátua de mármore,
sorrindo, apontando além
do lado de lá.
E um pai que vi
já com olhos grandes
e desconfiados:
- Muito prazer.
- Que nada, o prazer
é meu, meu filho.
Tão distante de mim
como um estranho!
A mulher na vida
que me deu filhos
e que não foi a mulher.
A outra que é e
mais filhos.
Todos uma grande lembrança.
Tão grande que, além
da procura,
não se encontra.
A vida que separa
mais do que agrega!
E ando à procura
de um chapéu de palha
que voou.
Opinião
Lembrança longe
dum passado recente.
Silhuetas deslizando na memória
que aquece e apaga.
Ontem mais esquecido
que tinha infância.
O apito na noite
informando:
“Até agora, tudo bem”.
Discordo do apito.
O Poema
Escrevo quando o poema
já não cabe mais
dentro de mim.
Às vezes sai no espanto,
da beleza, na tristeza.
Sai do riso incontido,
duma coisa que dói
e aí, não escrevo.
Já está feito.
Quando não resolvo
essas coisas da sensibilidade
então cresce um poema
até não caber mais em mim.
Aí escrevo.
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