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                                      CINQUENT’ANOS

DA MORTE DA CIGARRA

por Anderson Braga Horta

Nascido no Recife, em 24 de março de 1889, Olegário Mariano Carneiro da Cunha mudou-se para o Rio de Janeiro no início do século seguinte, aí permanecendo até a morte, em 28 de novembro de 1958. Ficou-lhe na alma, entretanto, indelével, a memória da infância na terra natal, junto ao pai, o abolicionista José Mariano, e a mãe, Dona Olegária, como um background provavelmente responsável pelo tom de melancolia que lhe perpassa a obra.

Aos 16 anos1 lançou Visões de Moço, que repudiaria, não lhe incluindo os versos nas “Poesias Completas”. Alberto de Oliveira, um de seus professores, que o publicou no periódico A Arcádia, do Colégio Pio Americano, e Guimarães Passos, que lhe prefaciaria o livrinho de “pré-estréia”, foram-lhe importantes estimuladores. Teve carreira gloriosa, a partir de Angelus (1911), a que se seguiram Sonetos (1912),2 Evangelho da Sombra e do Silêncio (1912),3 Água Corrente (1918), Últimas Cigarras (1920),4 Castelos na Areia (1922), Cidade Maravilhosa (1923), Canto da Minha Terra (1930), Destino (1931), Teatro (1932),5 O Enamorado da Vida (1937), Quando Vem Baixando o Crepúsculo (1945), Cantigas de Encurtar Caminho (1949), Mundo Encantado (1955), enfeixados em Toda uma Vida de Poesia (1957).6

Freqüentador da roda literária de Olavo Bilac, Guimarães Passos, Coelho Neto, Martins Fontes, foi eleito Príncipe dos Poetas Brasileiros, após a morte de Alberto de Oliveira, que sucedera no “posto” ao prestigioso autor de Via Láctea.

Devido ao grande número de composições dedicadas a esses insetos “cantores” –algumas das quais, como o soneto “O Enterro da Cigarra”, alcançaram sucesso extraordinário–, ficou conhecido como o Poeta das Cigarras.

Tendo vivido e produzido, primeiro, na transição do Parnasianismo para o Simbolismo (se nos permitem dar provisória nitidez a um processo em verdade pontuado de imbricações e confusões) e depois na fase do sincretismo que precedeu a Semana de 22 e continuou a dar seus frutos Modernismo adentro, a aposição ao poeta de um rótulo de escola é objeto de infinda discussão.

Para homenageá-lo no cinqüentenário de sua morte, propomo-nos rever alguns conceitos acerca de características de sua poesia, de seus recursos versíficos, de sua classificação nos quadros do Neoparnasianismo ou do Neo-Simbolismo, da significação de seu legado poético.

 

Sentimentalismo e Simplicidade

 

Olegário Mariano “cantou numa linguagem simples e humana, e seu lirismo o tornou um dos mais populares poetas brasileiros”.7 Da importância que atribuía ao sentimento na poesia, em geral, e na própria, em particular, diz ele mesmo em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, depois de se referir ao estímulo de Alberto de Oliveira e às lições e conselhos de Guimarães Passos:

 

Daí por diante, sem quaisquer preocupações de escolas literárias sob a contingência do motivo ou da forma, não pretendi ser mais do que poeta, bastando-me esse pouco para conseguir tudo. Não realizei, é claro, o poeta adivinho, de altas prerrogativas com teorias estéticas predeterminadas. Preferi invariavelmente deixar a alma, pela minha mão nervosa, dizer o que lhe aprouvesse num instante de alegria ou de tristeza. Nunca desejei mais do que isso, embora concordando com o velho Lamartine que a poesia é também “le souvenir et le pressentiment des choses”.8

 

E além, falando de Mário de Alencar e refletindo-se nessas palavras:

 

.... nada vale a inteligência sem o contato do coração. Ela é vaga, imprecisa, inacabada. O coração entra com a matéria-prima que é o sentimento para coroar a obra de perfeição e de beleza.9

 

No discurso de recepção, Gustavo Barroso o confirma:

 

.... não cantais senão o que vos anda n’alma e eis por que a vossa poesia, – veio de água corrente, construção leve de areia, canto estridulado de cigarra em dia estival, poeira de sol, neblina de luar, bem brasileira no sentimento, bem nossa no lirismo faceiro, é tão encantadora e tão serena, e vós nos pareceis um Anacreonte redivivo, um Anacreonte reencarnado nesta pátria ardente e deliciosa.10

 

A propósito de simplicidade, recorramos novamente ao depoimento do poeta, no citado discurso de posse:

 

Pedi-me tudo de minha desvalia, menos um verso com insígnia escolar que reflita um solene postulado estético ou filosófico. A minha poesia há de ser sempre lastreada de uma sabedoria espontânea que também não sei como obtive. As almas e as paisagens que nela aparecem, melancólicas ou alvoroçadas, surgiram sem sombra de sacrifício, que umas e outras estavam presas à minha emotividade de lírico incorrigível.11

 

Pensamos, e as transcrições parece que o comprovam, que a simplicidade era inata em Olegário Mariano. Mas nunca é de mais insistir em que a simplicidade, em literatura desta qualificação, não dispensa o conhecimento do ofício. E Olegário o possuía, sem dúvida. Poeta sempre correto,12 dominava a estrutura do verso, e, quando se afastava da ortodoxia, era por opção. Simplicidade é o produto final, é o edifício acabado, já sem os andaimes (Bilac!), e implica estudo, técnica, trabalho. Não há negar fosse essa a tendência natural do poeta, mas tenhamos em mente que ele trabalhava muito seus poemas, reescrevia com freqüência, e o fazia no sentido de se aproximar cada vez mais, diz um de seus mais atentos estudiosos, do ideal de simplicidade.13

 

Glória e Melancolia

 

Esse que Herman Lima apelidou “último grande romântico brasileiro”14 foi desde cedo ungido pela glória, fosse em razão dos versos líricos,  fosse na crônica, fosse pelas letras de música – em que ele, parceiro de Joubert de Carvalho em “De Papo pro Á”, por exemplo, era mestre também, consoante o depoimento de outro parceiro ilustre, Ari Barroso.15 Na vida social, baste mencionar a convivência, jovem ainda, com as mais altas expressões da literatura nacional, a freqüentação da fina flor da sociedade, a escolha como “príncipe” sucessor de Bilac e Alberto de Oliveira, a eleição para a Academia Brasileira de Letras. Profissionalmente, politicamente, êxitos não menores: diplomata, deputado, titular de cartório, embaixador em Portugal... Para completar, o poeta era bonito! Segundo o testemunho de contemporâneos –e a iconografia não o contradiz– tinha uma cabeça apolínea e o circundava uma aura de simpatia. Senhor de “irresistível fascínio pessoal”, era “festejado por todos e principalmente pelas mulheres que lhe admiravam por igual os versos e a bela figura de traços altamente românticos”.16 Como explicar, então, a onda de tristeza que permeia a sua obra, rebentando aqui e ali em versos amargos que falam de hipocrisia e traição?

Em notas a respeito de Menotti Del Picchia, apenas esboçadas, falo de uma tristeza mentida que sói encontrar-se nos versos de amor, falsa tristeza manhosa, dengosa, sonsa, tipo quem-não-chora-não-mama... Será esse o caso do moço e do velho Olegário? O poeta é um fingidor?...

Bem, ele teve na vida os seus percalços – quem não os tem? Perdeu a mãe muito criança, pouco antes de transferir-se com o pai para o Rio de Janeiro. Mas as queixas dos poemas não se referem, evidentemente, a esse tipo de dor. Um acidente ferroviário ceifou-lhe a única filha, aos onze meses. Mas, nessa época (1912), a obra já estava em curso, e a melancolia, instalada:

 

Dona Tristeza vive comigo

No meu castelo de gosto antigo.17

 

Dir-se-á uma tristeza literária, ao gosto romântico-simbolista. Mas que sabemos nós de coisas do fundo da alma? A alma é cheia de mistérios – confessemo-nos, machadianamente. Que problema sem solução na infância, que traumas familiares, que frustrações na adolescência, que males de amor insuspeitados, que íntimas meditações sobre o humano e o divino não lhe terão deitado sombras na alma? Se algo houve, enquadrar-se-ia o poeta, avant la lettre, no extremo da genial invenção pessoana, chegando “a fingir que é dor a dor que deveras sente”...

 

Técnica e Estilo

 

A metrificação de Olegário é herdada dos parnasianos, com as liberdades simbolistas incorporadas pelo Neoparnasianismo. Seus decassílabos são os sáficos e os heróicos da tradição, saltando aos olhos (ou aos ouvidos...) a acentuação heterodoxa do  verso “E assim vivo, desatinado e a esmo”, de “O Meu Retrato”.18 O alexandrino é quase sempre escandido à maneira clássica francesa, mas ocorrem muitos trimembres, com ou sem falso acento medial, não faltando alguns dodecassílabos atípicos. Há versos de 13, 14, 15, 16 e mais sílabas, cabendo assinalar os de 17 compostos de três redondilhas menores – quase todos os de “A Festa da Chuva”. Agrada-lhe a mistura de metros. Passa do eneassílabo bimembre ao decassílabo, em “Dona Tristeza”. Baseia sua musicalidade, não raro, “na silva de alexandrinos, decassílabos e hexassílabos”,19 podendo-se, nalgumas composições, falar propriamente em polimetria. Mas não nos estendamos nestas anotações métricas; encerremo-las com o inesperado de um decassílabo fechando as redondilhas maiores de “As Três Sombras que Passaram...”, de Castelos na Areia.

Em “Para uma Rapariga Doente”, de Evangelho da Sombra e do Silêncio,  há um hiato decididamente não-parnasiano: “Na/ ca/dên/cia/ i/gual/ dos/ seus/ lá/bios/ de/ ce/ra”. Em compensação, usa sinéreses fortes, a exemplo da ectlipse20 de “um odor” = “ũo/dor”, em “Noturno”, de Angelus. Em “Destino”, do livro homônimo, encontramos uma sinérese que se diria impossível, englobando cinco vogais/semivogais: “Pa/ra o/ va/le/ flo/ri/do ou o am/plo/ de/ser/to” (a não ser que leiamos o verso como alexandrino, embora os outros treze sejam decassílabos).

Procedimento em que é useiro são os enjambements, muita vez abruptos, dificultando a leitura à primeira vista, que se colhem por toda a obra.

Essa poesia entranhadamente musical uma coisa não dispensa: a rima. Com pouquíssimas exceções: “Evocação”, “Chuva Triste”, “A Aleijadinha” (tradução), “A Velha Estrada” (cujos versos anômalos sugerem algo entre o verso livre e a prosa ritmada).

Neste capítulo dedicado à técnica versificatória, um tanto deslocado, vá o seguinte registro: no terceiro verso do soneto “Arrependimento”, de Canto da Minha Terra,há um hífen desfigurador, mal colocado, talvez, por algum revisor distraído. Leia-se corretamente: “A ti, que foste o único bem amado” (grifamos o substantivo bem, que, ligado por traço-de-união ao adjetivo amado, forma um substantivo composto risível no contexto).

Sejam-nos permitidas, agora, considerações em boa medida óbvias, mas em que, em tempos de facilitação, vale a pena insistir. Falando de técnica poemática, não queremos superestimá-la como elemento de qualificação do poeta, mas o contrário, isto é, minimizar-lhe a importância, fora erro ao menos equivalente. O grande poeta não a dispensa; sucede que, tendo-lhe, ao que parece, a intuição, trazendo inato o sentido de música e imagem, seu aprendizado costuma ser rápido – em certos casos, fulminantemente rápido. Assim, a facilidade com que a empregará não lhe desmente a existência. As técnicas podem –devem– ser ensinadas e aprendidas. Só não são penhor de qualidade poética. O ritmo, as imagens, a melodia formam-se na mente (no coração?) do poeta, e nem mesmo ele saberá fornecer-lhes a receita. O verso dúctil, a frase elegante, a linguagem bem-cuidada, a metrificação correta (se bem que nem sempre ortodoxa) são pressupostos em relação à obra poética de Olegário Mariano. Mas não explicam um verso mágico, entre tantos outros belíssimos, como este (em redondo) de “O Enterro da Cigarra” (Últimas Cigarras):

 

Perto, uma fonte, em suave movimento,

Cantigas de água trêmula carpia.

 

Que verso! E não há como ensinar o seu encanto. Não porque seja segredo; mas porque é espontâneo – vejo que é pouco e me corrijo: de uma beleza espontânea.

Nem os melhores poetas são sempre capazes dessa iluminação. E é, às vezes, no meio de estrofes nem tão interessantes que fulgem, de inopino, versos como estes de “Pastoral” (Castelos na Areia):

 

Vem coroada de pâmpanos e rosas...

Traz nos ombros, nos braços e nos seios

Um cheiro acre de cabras e de ovelhas...

 

Mas basta uma dessas faíscas, como o dístico-refrão de “Água Corrente” (do livro homônimo), para o leitor não querer largar os versos de um poeta:

 

Água corrente! Água corrente!

O teu destino é igual ao destino da gente.

 

Além da boa técnica, tinha talento o poeta Olegário.

 

Relações com o Modernismo

 

Em 1922 Olegário tinha 33 anos. Em 1926 é eleito para a Academia. Em 1938 sagra-se Príncipe dos Poetas. Em 1945 permanece fiel às origens, e assim se manterá até o fim da vida, em 1958.

Alfredo Bosi, em nota referente aos “epígonos do Parnasianismo brasileiro”, declara-o o mais independente dos poetas que, produzindo desde os fins do século XIX, “resistiram, em geral, ao impacto do Modernismo”. Não obstante, páginas acima, relaciona-o entre os que “aderiram (ou quase...) ao Modernismo”.21 Se tentou alguma aproximação com o Modernismo, ficou na periferia. Na melhor das hipóteses, avançou pela polimetria até perto do verso livre, que todavia jamais aceitou. Pode-se dizer pitorescamente que o máximo a que chegou essa aproximação foi quando recebeu a visita de Mário de Andrade, que, vindo da casa de Ronald de Carvalho, lhe leria os versos de Paulicéia Desvairada, “presente à reunião Manuel Bandeira, cujo Carnaval, descoberto em São Paulo por Guilherme de Almeida, era lido e apreciado pelos modernistas”.22 Gilberto Mendonça Teles, anos mais tarde, se “intrometerá” na cena para dizer que a leitura se deu, de certo modo, em sua casa: “na rua Pompeu Loureiro, justamente no lugar onde se ergue hoje o edifício Marbella, onde tenho o meu apartamento e onde, às vezes, costumo ouvir o canto das cigarras de Olegário num dueto poético com as vozes das juvenilidades auriverdes de Mário de Andrade”.23 No final do poema “Insônia”,24 também pitorescamente, Gilberto complementará sua “intromissão”:

 

É aí que escuto a zoeira das cigarras

do Olegário Mariano dando vaia à voz vanguardista

de Mário de Andrade, que lê sem jeito

os originais de sua Paulicéia.

 

E é precisamente aí, no antro da meia-noite,

que a Minha Loucura trepa corajosa

no silêncio do Morro dos Cabritos

para dizer bem alto:

— Olé, Mário,

vinde ver! vinde ouvir os versos do Olegário.

 

Já Manuel Bandeira, o maior de seus críticos, o homenageara, no Mafuá do Malungo, com um de seus poemas “À Maneira de...”:25

 

Triste flor de milonga ao abandono,

Betsabé, Betsabé, que mal me fazes!

Ontem, a coqueluche dos rapazes,

E agora? pobre pássaro sem dono.

 

Primavera e verão foram-se. O outono

Chegou. Folhas no chão... Névoas falazes...

E aí vem o inverno... O fim das lindas frases...

O último sonho, e após, o último sono!

 

As cigarras calaram-se. Era tarde!

E hoje que no teu sangue já não arde

O fogo em que tanta alma se abrasou,

 

Choras, sem compreenderes que a saudade

É um bem maior do que a felicidade,

Porque é a felicidade que ficou!

 

A chave de ouro, suponho, parafraseia o último terceto de “Renúncia”, do Canto da Minha Terra:

 

.... o grande amor, quando a renúncia o invade,

Fica mais puro porque é pensamento,

Fica muito maior porque é saudade.

 

Morador do Parnaso ou habitante do Símbolo?

 

Haverá mesmo diferenças radicais entre as escolas poéticas? Nem sempre. Há zonas de penumbra. A melhor poesia romântica, a melhor poesia parnasiana, a melhor poesia simbolista têm mais em comum do que em contraste. As diferenças estão antes nos matizes epocais, na linguagem – sujeita a esses matizes. Há distâncias notórias, é certo, mas entre casos extremos: o parnasianismo de um Bilac, na primeira fase, subordinada à “Profissão de Fé”, ou o da “Musa Impassível” de Francisca Júlia, de um lado; do outro, o simbolismo da “Antífona” de Cruz e Sousa, bem menos visível o contraste com Alphonsus...

Para o leitor não especializado, a classificação tem valor menor. Mas pode ajudá-lo a situar e compreender o poeta.

Em períodos de transição ou de sincretismo, essa classificação pode se tornar problemática. Respiguemos uns poucos dentre os muitos pronunciamentos da crítica sobre o enquadramento de Olegário Mariano.

Para Péricles Eugênio da Silva Ramos, “não seguiu rigidamente o parnasianismo, mas temperou-o com tonalidades simbolistas perceptíveis desde o seu primeiro livro, um nefelibatismo de luares, gazes e aldeias, e ainda uma persistente sombra de Samain, com suas mulheres florais e alexandrinos banhados de capitoso sensualismo”.26

Darci Damasceno,27 antes de o situar nos primeiros tempos da produção neoparnasiana, define a tendência como um aproveitamento da lição parnasiana de “respeito ao aspecto formal do poema, sem que, entretanto, a forma se instituísse em objeto final”; menciona “a libertação do sentimento” em “fluência emocional”; opina que “o afrouxamento do rigor versificatório .... dava-lhe certa maleabilidade ao ritmo”, atribuindo ao fato a “popularidade de que gozaram e gozam os principais representantes da época”, e conclui (deixando a impressão de estarmos diante de uma terceira margem...):

 

O neoparnasianismo vem a ser sensual, por excelência. O verso está intimamente ligado ao canto; há no versificar um gozo, uma euforia, mesmo, que jamais existiu no Parnasianismo. Elemento de ordem temática, já apontado entre os poetas dessa geração e que convém relembrar, é o interesse pela paisagem.

 

Sânzio de Azevedo, em seu abrangente e valioso O Parnasianismo na Poesia Brasileira,28 considera-o parnasiano não-ortodoxo, “ostentando, desde os primeiros versos, uma deliqüescência simbolista que jamais abandonaria sua poesia totalmente”, mas parnasiano, tanto assim que “jamais foi incluído em uma coletânea do Simbolismo, e sim na Poesia Parnasiana, de Péricles Eugênio da Silva Ramos”.

Prevalece, como vemos, a rotulagem de parnasianismo, ainda que temperado. O próprio Olegário se tinha por parnasiano. Mas Bandeira, grande poeta e grande sabedor de poesia que também se banhou na convergência dessas águas, não reza por esse catecismo. Afirmava, ao contrário, que o poeta “ingenuamente se julgava um parnasiano e jurava por Bilac e Alberto de Oliveira, quando o que dava particular encanto aos seus versos era uma musicalidade que nada devia à escola em pleno fastígio nos anos de sua estréia”.29

Tentemos verificar in situ alguns acidentes definidores. Abrindo a obra poética, logo o primeiro poema, nos primeiros versos, dá uma impressão magnífica:

 

Ao crepúsculo, à hora da tristeza,

Quando passam noivando as andorinhas,

Na sugestiva paz da natureza

Pobre de mim! Sinto saudades minhas.30

 

E essa impressão é simbolista, não parnasiana. Haverá algo de parnasiano no poema? Talvez um certo descritivismo. Ainda aqui, porém, a impressão predomina.

O segundo poema, “Dona Tristeza”, é simbolista no tema, no vocabulário e na modulação. E ainda faz alusão explícita à corrente, na quarta estrofe:

 

Seus olhos grandes, emburelados,

Na cor dolente das ametistas,

Têm a amargura dos torturados

E as estesias dos simbolistas.

 

Em “A Flor da Noite” o descritivo, novamente, sugere parnasianismo; só que, novamente, a descrição não é pura, não é realista, senão mesclada de impressões, com esta imagem nos tercetos:

 

E quando a noite estende a pálpebra dormente,

De volúpia e de amor ela estremece toda,

 

Esperando que o luar desça por uma fresta

Para se aconchegar como um gato indolente

No berço verde dos seus braços na floresta.

 

“Ceguinho”, o segundo dos Sonetos, tem uma inflexão de desalento e conclui com a personificação de um sentimento – “Dona Tristeza”. E em “Paris” o poeta que rememora é Verlaine. Já “Volúpia Selvagem” é um soneto digno do Parnaso. Por maioria de razão, também “Tarde de Batalha” (Heredia). Aliás, para traduzir, Olegário parece preferir os parnasianos franceses.

Em “Evangelho da Sombra e do Silêncio” o primeiro verso já mostra uma carga simbolista: “O Silêncio das Coisas me comove”... (Nem falo das maiúsculas – muitas delas, na reedição, foram suprimidas.)

“A Torre do Silêncio e da Beleza” – essa torre não é simbolista?

 “Terra sem Dono”, de Destino, fica longe do Monte Parnaso. Veja-se a última estrofe:

 

E o sol não veio... Terra sem dono...

Sobre o seu corpo de adolescente

Desceu de leve, serenamente,

A asa da noite, tonta de sono...

 

Soa, porém, parnasiana a próxima página, o soneto “Nordeste”. No cravo e na ferradura... Diga-se, ainda, que nos livros seguintes, notadamente em O Enamorado da Vida, a nota simbólica se esmaece.

Finalmente, é de frisar que os versos de “A um Grande Poeta”, “Alberto de Oliveira” e “Galeria de Poetas”, todos de Cantigas de Encurtar Caminho, homenageiam uma e outra corrente.

Pensamos que os melhores poemas31 de Olegário Mariano afinam-se antes à nota do Símbolo. Mas não escondemos a tentação de jogar tudo ao vento e exorbitar com Júlio Dantas:32

 

Olegário Mariano .... não é nem um romântico, nem um parnasiano, nem um neoclássico, nem um simbolista, nem um modernista. É tudo isto, ao mesmo tempo. Pertence à estirpe dos grandes poetas que, vivendo em épocas de transição, refletem todas as orientações, todas as influências, todas as correntes estéticas, sem obedecer determinadamente a nenhuma delas.

 

Conclusão

 

Em última instância, melhor que bater pé na questão da matrícula do poeta (expressão de Manuel Bandeira) nesta ou naquela escola é reconhecer, com Júlio Dantas (e com todos os outros comentaristas), que Olegário “é, acima de tudo, um poeta de forte e relevante personalidade”.

Sua cantiga foi breve e faiscante como a das cigarras que tão bem cantou. Não foi um navegador de águas profundas, nem era esse o seu desígnio. Foi, entretanto, mestre e mago nas águas cristalinas, correntes e cantantes de um lirismo arrebatador.

 

______________________________________________________________________

  1. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, in Discursos Acadêmicos, tomo II, p. 528. ABL, Rio, 2006.
  2. XIII Sonetos, segundo Herman Lima – Olegário Mariano – Poesia, p. 99. N.º 97 da Coleção Nossos Clássicos, Agir, Rio, 1968.
  3. Curiosamente, discrepam várias fontes quanto às datas de seus livros, em comparação com Toda uma Vida de Poesia – Poesias Completas. Herman Lima, citado, estampa uma bibliografia que “corrige todas as anteriores”, inclusive, dizemos nós, a dessa reunião, publicada em vida de O.M. De acordo com ele, este Evangelho é de 1913. Acrescente-se que o ensaísta arrola, em seguida, extensa e valiosa bibliografia sobre o autor.
  4. Segundo Herman Lima, a 1.ª ed., como Últimas Cigarras. Poemas, é de 1915, seguindo-se cinco outras, até 1950, nenhuma datada de 1918.
  5. Na verdade, breves cenas em verso.
  6. José Olímpio, Rio, 1957. 2 vols. Além de Visões de Moço, deixamos de lado as crônicas em verso Ba-Ta-Clan (1924) e Vida Caixa de Brinquedos (1932), os versos para crianças de Tangará Conta Histórias (1953), bem como Correio Sentimental. Cartas em Verso de Olegário Mariano e Silva Tavares (1953), não incluídos nessa edição, além dos trabalhos em prosa.
  7. Afrânio Coutinho, in Antologia Brasileira de Literatura, vol. II – Lirismo. Rio, 1969.
  8. In Discursos Acadêmicos, loc. cit.
  9. Loc. cit., p. 540.
  10. Loc. cit., p. 553.
  11. Loc. cit., p. 528.
  12. “Poeta sempre correto, sentimental, fiel a um Parnasianismo mitigado ao qual se misturavam certas sutilidades simbolistas” – Alexei Bueno, Uma História da Poesia Brasileira, p. 266. G. Ermakoff, Rio, 2007.
  13. Manuel Bandeira, apud Herman Lima (nas pp. 9-10), que, em notas à parte antológica da obra citada, ilustra abundantemente o trabalho de reescrita do poeta.
  14. Op cit., p. 29.
  15. Apud Herman Lima, op. cit., pp. 32-33.
  16. Ib., p. 7. Noutra passagem (p. 10) diz H.L.: “Aliada a essa envolvente emoção da sua poesia, popularizada em todo o Brasil, principalmente através das revistas literárias, uma das características de Olegário, pessoalmente, era aquele clima de receptividade em que tudo nele concorria, a bela presença física, a elegância sem artifícios, aquela voz de graves ressonâncias, a afabilidade cordial, aquele prestígio natural advindo simultaneamente da fascinação do poeta e da criatura humana.”
  17. “Dona Tristeza”, de Angelus (1911).
  18. De Evangelho da Sombra e do Silêncio, in Toda uma Vida de Poesia, p. 62. Considerando que todas as transcrições poéticas vêm dessa edição, servida de índices geral e alfabético dos poemas, daqui para a frente deixaremos de fazer as remissões respectivas, para não esticar sem razoável proveito estas notas.
  19. Manuel Bandeira, Apresentação da Poesia Brasileira, in Poesia Completa e Prosa, p. 606. Nova Aguilar, Rio, 1977.
  20. Quando falo em ectlipse, não incluo no conceito a desnasalação que alguns consideram inerente ao metaplasmo.
  21. História Concisa da Literatura Brasileira, pp. 264, nota 191, e 321. Cultrix, S. Paulo, 1970.
  22. A citação é de Mário da Silva Brito, “A Revolução Modernista”, in A Literatura no Brasil (org. de Afrânio Coutinho), vol. V, p. 13. Editorial Sul Americana S.A., 2.ª ed., Rio, 1970. A informação vem de Manuel Bandeira, “Itinerário de Pasárgada”, in Poesia Completa e Prosa, cit., p. 60.
  23. Ensaio sobre “A Poesia de Murillo Araujo”, in Estudos de Poesia Brasileira, p. 179. Livraria Almedina, Coimbra, 1985.
  24. De Opó-rapá-cupú-lopó, in Hora Aberta, pp. 109-110. Vozes, Petrópolis, 4.ª ed., 2003.
  25. Loc. cit., p. 434.
  26. Poesia Parnasiana, p. 296. Melhoramentos, S. Paulo, 1967.
  27. “Sincretismo e Transição: o Neoparnasianismo”, in A Literatura no Brasil, vol. IV, pp. 271-272. Rio, 1969.
  28. UFC/UVA, Fortaleza, 2004; pp. 130-132.
  29. Apud Sânzio de Azevedo, cit. (nota anterior).
  30. Respeitada a pontuação da fonte.
  31. Se fôssemos organizar, hoje, uma antologia de O.M., estes seriam os escolhidos: “Angelus”, “Dona Tristeza”, “A Flor da Noite”, “Minha Saudade”, “Evangelho da Sombra e do Silêncio”, “É o Vento...”, “Água Corrente”, “Primavera”, “A Fonte”, “A Fazenda Santa Cruz”, “Baco”, “As Duas Sombras”, “A Voz do Destino”, “A Cigarra que Ficou”, “O Sol que Canta”, “As Vozes da Natureza”, “Tronco Deserto”, “Madrugada”, “Como as Árvores”, “Filosofando...”, “Canção da Folha Morta”, “Conselho de Amigo”, “Manhã de Chuva”, “Água Corrente”, “As Almas das Cigarras”, “Dorme...”, “Noite Sonora”, “A Cigarra Morta”, “O Enterro da Cigarra”, “A Cigarra de Natal”, “A Voz que se Calou”, “A Última Cigarra”, “Castelos na Areia”, “A Morte do Cisne”, “Paráfrase de Fábio Fialho”, “A Boêmia Triste”, “Canção Triste”, “As Árvores da Montanha”, “O Menino Doente”, “Pirolito”, “As Potrancas”, “Deslumbramento”, “Xoxô, Papão”, “Renúncia”, “Desejo Inútil”, “Pastor de Esperanças”, “O Crepúsculo de D. Juan”, “A Casa do Cosme Velho”, “Pé-de-Vento”, “Ao Calor da Lareira”, “Natal”, “Mãe-d’Água”, “Tudo que me Deram – Dei”, “Cantigas de Encurtar Caminho”, “Menino da Casa Grande”, “Ritornelo”, “No Espelho das Águas”, “Com o Cair das Folhas”, “Romance do Ceguinho do Laranjal”, “A Ilusão do Ribeiro Feliz”, “A Toada do Pingo d’Água”, “Trovas Soltas” (8 e 9), “Carta de uma Andorinha da Serra a um Burrico de uma Fazenda em São Paulo”, “Arrependimento”, “A Luz da Tarde Velha”, “Na Tarde Desconsolada”.
  32. In Correio da Manhã, Rio, 14.11.1937, cit. por Herman Lima, p. 107.
  33.  

 

Página publicada em dezembro de 2010

 

 

 


 

 

 
 
 
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