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                  Cecília Meireles e os Poemas  escritos na India 
                   
                  por ANTONIO CARLOS SECCHIN 
                    
                    
                    
                  Extraído de  
                    
                  SECCHIN, Antonio Carlos.   Percursos da poesia brasileira – Do século  XVIII ao século  XXI.   Belo Horizonte: Autêntica Editora,   - Editora UFMG, 2018.  368 p.  16 x 23 cm.   ISBN 978-85-513-0302-3 (Autêntica); ISBN 978-85-423-0251 (Editora  UFMG).        Inclui bibliografia.   Ex. bibl. Antonio Miranda 
                    
                    
                       Os Poemas escritos na índia, de  Cecília Meireles, apesar de terem sido pu-blicados, muito provavelmente, em  1961 - o livro não traz a indicação do ano -, exibem, nas suas páginas  iniciais, a menção "em 1953". Pelo título, torna-se claro que os textos  correspondem a uma resposta direta e imediata, reveladora do encantamento que a  índia exerceu sobre Cecília, uma vez que não se trata apenas de textos sobre a  índia, mas de poemas na índia, sujeitos, portanto, a um impacto não filtrado  pelo distanciamento cronológico ou espacial. 
                    
                       As viagens de Cecília à Europa também  geraram poemas e livros. Basta recordar que a obra inicial de sua fase madura  se denomina, exatamente, Viagem (1939), e se abre com a dedicatória: "A  meus amigos portugueses". Em 1952, a poeta publica os belos e densos Doze  noturnos da Holanda, mas, no caso, a paisagem do país é bastante ténue,  servindo apenas de apoio para o núcleo do livro, a saber, uma grave meditação  diante da noite e da finitude. Noite absoluta, metafísica, cujas únicas balizas  mais concretas se resumem a uma referência ao Mar do Norte e à descrição de um  homem morto, afogado nos canais de Amsterdã. 
                       Muitos outros países, efetivamente  visitados, mereceram poemas de Cecília, e um livro inteiro, de publicação  póstuma (1968), foi dedicado à Itália, materializando antigo projeto da  escritora. O Oriente, todavia, e, mais particularmente, a índia ocupam um lugar  central na geografia poética Ceciliana, porque, para além de seu espaço físico,  simbolizam sabedoria de vida e lição de cultura que se disseminam, mais ou  menos explicitamente, em quase todos os livros da autora. É oportuno recordar  que já o segundo poema do seu primeiro livro (Espectros, de 1919), o soneto  intitulado "Brâmane", descreve, no epílogo, a figura de um Cecília, escrito a menos de seis  meses de sua morte, se chama "Breve elegia ao Pandit Nehru". Nas duas  extremidades da existência, a Índia.  
                   Examinemos algumas das múltiplas  facetas do país evocadas pela autora ao longo dos 59 poemas do livro de 1953. O  que primeiro avulta é a festa sensorial com que a índia se mostra à  poeta-visitante. Perfumes, sabores, músicas e sobretudo cores, muitas cores -  tanto nos espetáculos da natureza quanto nos trajes dos habitantes. Cecília  revela-se uma hábil paisagista, ora atenta ao simples efeito do espetáculo  cromático, como em "Os cavalinhos de Delhi" ("Plumas, flores,  colares, xales/ tudo que enfeita a vida está aqui:/ penachos de cores  brilhantes/ ramais de pedras azuis",),  ora indagando pelas camadas da História escondidas sob a superfície visível, em  "Participação": 
                  
                    Mas só de muito perto se podia  sentir a sombra das mãos  
                      que outrora houveram afeiçoado  
                      coloridos minerais  
                      para aqueles desenhos perfeitos.  
                      E o perfil inclinado do artesão, 
                      ido no tempo anónimo. 
                   
                  Num momento a pintura registra os detalhes de brincos, colares, dentes;  noutro, os amplos panoramas do ciclo do dia ("Manhã de Bangalore",  "Tarde amarela e azul", "Anoitecer"). Ao lado de textos que  abrigam cores feéricas, a paleta de Cecília também sabe fazer-se económica em  sutis exercícios quase monocromáticos, com variações que oscilam entre o  branco, o cinza e o negro, a exemplo do que se lê no admirável  "Canavial", onde 16 versos efetuam jogos combinatórios de sombra e  luminosidade, até o desfecho "Branco./ Branco./ É a risada festiva das  crianças/ no canavial". 
                     
                  A natureza indiana, em todos os  seus reinos, é cantada por Cecília - seja o reino vegetal de "O  canavial" e "Romãs", seja o mineral de "Turquesa  dagua", "Ganges" e "Tempestade", seja o animal, em  "Cavalariças", "Os jumentinhos" e "O elefante". O  mineral, em Cecília, tende a ser representado como força superior ou  indiferente ao destino humano, enquanto o animal quase sempre comparece em  comovente harmonia e solidariedade para com os homens. Daí predominarem, na sua  obra, representações de animais domésticos ou do-mesticáveis, simbolizando o  que de melhor se pode desejar na humanidade: o amor, a amizade, a inocência, a  confiança. Assim o elefante, frente às crianças, "levanta-as na tromba, ri  com os olhos,/ é um avô complacente".   
                  É natural, ao olhar viajante, o  registro preponderante de cenas externas, e o livro de Cecília não foge à  regra. Algumas vezes, no entanto, ela adentra o espaço recluso ou doméstico,  fornecendo um retrato mais íntimo da índia. A véspera do nascimento de uma  criança é narrada nos versos de "Aparecimento":                    
                  
                    E a casa, no meio do campo 
                    estendia mil braços ternos e graves  
                    para o céu, para o rio, para o vento,  
                      para o país dos nascimentos  
                      à espera dessa criança  
                    nua e pequenina.  
                      
                   
                  A intensidade de um afeto real  emana de "Uma família hindu" :                  
                  
                    Deus consente que os homens venham  
                      a esta intimidade de amigos,  
                      somente por mostrar que se amam,  
                      que estão no mundo, que estão vivos.  
                   
                       Em meio a tantas e tão magníficas  paisagens da natureza, talvez seja à "paisagem" humana da índia que  Cecília dedique a mais amorosa contemplação. Homens que trabalham, seja na  criação de uma beleza presente e material ("Canto aos borda-dores de  Cachemir"), seja no delírio da criação profética do futuro ("O  astrólogo"). Crianças que dançam e sorriem. Mulheres na dura labuta de  domar a força da pedra:  
                  
                             Alguém se lembrará de vosso corpo agachado, 
                      deusas negras de castos peitos nus,  
                      de vossas delgadas mãos a  amontoarem pedras  
                      para a construção dos caminhos. 
                   
                     A essa tarefa operária,  considerada "masculina" no Ocidente, se dedicam as "Mulheres de  Puri", bem como às mãos do homem cabem os bordados (no Ocidente,  "femininos") de Cachemir. Talvez expressamente Cecília tenha, na  obra, sequenciado um texto após o outro, contrapondo e relativizando os  conceitos (ou preconceitos) do que seria "masculino" ou  "feminino": convenções de cultura, è não essências atemporais. A  notar ainda, no "Canto", a afirmação da arte como única atividade a  derrotar a morte, sendo, por esse ângulo, superior aos elementos naturais                   
                     
                   
                  
                    
                      
                        inventando flores 
                          que não morrem nunca, 
                           ó bordadores,  
                          de sol nem de chuva  
                          nem de outros rigores 
                       
                     
                   
                  Bordadores, astrólogos, pequenos comerciantes... Não é de fausto ou realeza  a índia de Cecília Meireles, e sim de gente humilde. Diante de um universo de  extrema simplicidade e de anónima pobreza, não faltam aos versos da escritora  reiteradas notas, em surdina, de teor social: 
                  
                    
                      Varre o chão de cócoras. 
                      Humilde. 
                      Vergada. 
                      Adolescente anciã.  
                      [...] 
                      Pulseira nos pés. 
                      Uma pobreza resplandecente. 
                       [...] 
                      Varre seu próprio rastro. 
[...] 
                      O dia entrando em noite. 
                      A vida sendo morte. 
                      O som virando silêncio.10 
                     
                   
                  Sugestivamente, logo após esse texto ("Humildade"), em que a  morte se afirma vencedora, surge uma réplica de esperança, num poema dedicado a  uma das maiores admirações de Cecília: 
                  
                    De dentro da morte falando vivo  
                    o Mahatma. 
                    Na bandeira aberta a um vento de música,  
                    o  Mahatma." 
                   
                     Subitamente, a viajante parece desanimar, quando  deixa de fitar a paisagem, e passa a ver-se a si mesma, ou melhor, começa a  perceber restos e destroços do caminho agregados a seu próprio corpo: "Por  mais que sacuda os cabelos,/ por mais que sacuda os vestidos,/ a poeira dos  caminhos jaz em mim".12 E, numa sucessão de desamparos, fala de 
                  
                    jardins mortos de sede  
                      [...] 
                      dos rios extintos, 
                      de dentro dos poços vazios, 
                      das salas desabitadas 
                       [...]das varandas em ruína.13 
                   
                    
                  Tal inflexão amarga - a vida como perda - ecoa,  ainda, em"Zimbório": "Tudo é para sempre nunca".14 Um  poema, no entanto, abre luminosa perspectiva frente a quadro tão sombrio.  Referimo-nos a "Menino": 
                    
                  
                    Trouxe um menino. 
                    Apanhei-o no bazar de ouro e prata, 
                    onde as jóias são como as folhas de mangueiras: 
                    milhares, milhares. 
                    [...] 
                    Trouxe o menino. 
                    Apanhei-o entre mulheres morenas, lânguidas, 
                    sonâmbulas. 
                    [...] 
                     
                     Trouxe o meninozinho - mas só na memória  
                    [...] 
                    As palavras rolarão sobre a sua alma  
                     
                   
 Como todo grande artista, Cecília Meireles sabe que  a memória da beleza sobrevive, mais real do que a realidade. Do mesmo modo que  nós, leitores, per¬petuaremos nas páginas deste livro a memória da beleza  indiana através de seus mais sólidos monumentos, erguidos não pela pedra, mas  pela palavra da poesia.  
                  Referência  
                  MEIRELES, Cecília. Poemas escritos na índia.  In: Poesia completa. Rio de 
                  Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 971-1042. 
                    
                  1. Meireles (2001, p. 16). 
                   2. Meireles  (2001, p. 982). 
                  3. Meireles (2001, p. 981). 
                  4. Meireles  (2001, p. 1002) 
                    5. Meireles (20010  p. 1015) 
                  6. Meireles (20010   p. 1033) 
                  7. Meireles (20010   p. 1034) 
                  8, Meireles (20010   p. 1010) 
                    9. Meireles (2010  p. 1034)  
                  10. Meireles (984-985) 
                    11. Meireles (987) 
                    12. Meireles (993) 
                    13. Meireles (993-994) 
                    14. Meireles (1010) 
                  15. Meireles (998-999) 
                  
                  
                  
                
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