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O BIBLIOMANÍACO

 

 

De
EUSTÁQUIO GOMES

A Biblioteca no porão.

Ed. Papirus, 2009.

 

 

 

         Tomado de repentina animação, consagro o sábado à arrumação das prateleiras. Descubro que o porão é mais espaçoso que o pequeno aposento que ocupava antes, e que agora é habitado por Vovô. Antes, os livros ameaçavam sair porta afora, a ponto de ser preciso arranjá-los em fila dupla. Não havia estantes para todos. O resultado foi que os livros colocados atrás há muito não viam a luz do dia; e os da frente se ressentiam dos companheiros resfolegando em sua nuca. Retirar aqueles de onde estavam significava remover a fila da frente, operação não muito diferente de um ato de demolição. Para não ter de fazê-lo, eu passava meses sem ver a turma da retaguarda; e os da vanguarda já iam me cansando.

         Agora, com um pouco mais de espaço, reencontrar a turma dos sem-prateleira e devolver a eles a alegria da berlinda equivale a uma reforma agrária das letras. Esses amotinados sabem invadir um lar e depois não querem mais sair; que fiquem. Mas, sem um método e uma organização, não se prestam a muita coisa.

 

         Arrumá-los pelo género? E o tipo do arranjo clássico: romance, conto, ensaio, poesia, filosofia, biografia, memórias, diários, cartas etc. Por esse esquema, há também que ordená-los segundo o autor e, havendo paciência, conforme a literatura a que pertencem. Mas isso já não parece satisfazer meu atual estado de espírito nem meu desejo de organização. Nossa relação com os livros se modifica com o tempo. Pensemos então numa forma diferente de classificá-los, algo mais próximo dos sentimentos que temos em relação a eles.

 

Qualquer coisa assim:

 

1) Livros que precisam ser relidos de vez em quando, no todo ou em parte, para a gente voltar a sentir que ainda é capaz dos grandes sentimentos de antes.

 

2) Romances que nos marcaram a adolescência e que agora, relidos, se recusam a mostrar o mesmo encanto.

 

3) Clássicos que todo mundo diz ter lido e que nos derrotaram entre as páginas 50 e 84, deixando em nós uma sensação de incompetência e de falta de sintonia com a opinião universal, isto é, com o cânone.

 

4) Livros que separamos para ler nas férias e que jamais foram tocados pra valer.

 

5) Livros que compramos impelidos pelo desejo de adquirir cultura ou mesmo erudição, mas que logo nos repeliram.

 

6) Livros que simulamos ter lido e dos quais até citamos uma frase ou outra (não necessariamente recolhida deles, mas de seletas de citações) e que agora nos encaram como se fôssemos estelionatários.

 

7) Livros que nos interessam pouco ou nada, mas que conservamos conosco na esperança (ou no temor?) de que venhamos a precisar deles mais tarde, ou quem sabe venhamos a mudar de gosto ou de temperamento.

 

8) Livros adquiridos em sessões de lançamento, com autógrafo arranchoso, e que agora nos pesam, porque somos obrigados a fugir do autor para hão ter de justificar nosso silêncio.

 

9) Livros que certamente leríamos com prazer se tivéssemos várias vidas pela frente.

 

10) Livros de coleção que corríamos a comprar sempre que um novo número aparecia, mas que agora, perfilados na estante, com suas lombadas da mesma cor, têm o hábito de acusar nossa tendência à compulsão.

 

11) Cartapácios enaltecidos pela critica, mas cujo sentido e utilidade nos escapam, e que, emboscados nas estantes, não cessam de disparar contra nós seu dardo de funesta hostilidade.

 

12) Livros que na vitrine da livraria nos pareciam do maior interesse, mas que, a caminho de casa, sob a crua luz da realidade, sofrem súbita mutação e escarnecem de nosso terrível engano.

 

13) Livros que nós próprios escrevemos, movidos por alguma obscura intenção, e que agora nos olham como se não nos reconhecessem ou tivessem sido escritos por outro, produtos talvez do sonho de algum autor com cara de fuinha cuja existência nem mesmo é um fato absolutamente certo.

 

 

 

Distribuído pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil – José Salles Neto, Presidente

 

 


 

 

 

 
 
 
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