Livro antigo não muito bem conservado, mas valioso...
BIBLIOFILIA E OUTROS DESVIOS DE CONDUTA
Por Antonio Miranda
Vivi entre colecionadores: de postais, de etiquetas de charutos, de canetas, de autógrafos, de figurinhas, de cinzeiros, de ovos de pedra, de fotos de artistas do rádio, de livros!!! E até de amostras de arame farpado!
Um dos colecionadores com quem eu me encontrava, sempre anunciava o suicídio, que acabou consumando. Filho abandonado, foi criado por uma família abastada, formou-se e ganhou muito dinheiro e vivia o tempo todo a la recherche da infância perdida, buscando os brinquedos que não teve. Comprava qualquer coisa, e não ficava satisfeito, juntava tudo no sótão da casa e não deixava a família entrar, nem a empregada, era só dele, de mais ninguém. Um outro colecionava LPs, aos milhares. Eram tantos que comprou um apartamento só para guardá-los já que a esposa decretou “ou ela ou eu!”, a coleção teve que sair de casa. Tinha um detalhe: era surdo, gostava mesmo era das capas dos discos.
Não se quer dizer que todo colecionador seja sempre um esquizofrênico. Alguns são, sem dúvida.
E os bibliófilos? Conheci muitos, principalmente os que freqüentavam a feira de antiguidades da Praça XV e a do Passeio Público, nos anos 70, 80 e 90 do século passado. A moda era colecionar livros sobre o Rio de Janeiro. “Eu tenho um que você não tem”... “O vendedor não tinha idéia do valor do livro, foi uma pechincha”... “Paguei os olhos da cara no leilão, era levar ou deixar!” Crianças em alvoroço, ostentando seus prêmios. Virou uma bibliomania.
Tinha o comprador compulsivo, e o que só deseja as “primeiras edições”, mesmo quando os autores as tivessem corrigido e até condenado (melhor ainda!!!). Fetichismo que era imitado pelos demais, em disputa olímpica. Uma variante dessa prática era buscar obras com erros tipográficos bizarros, herança perversa que trouxeram da mania doentia de muitos filatelistas que preferem o defeito em lugar da perfeição... Tinha de tudo. Até uma minoria que praticava a cleptomania ou comprava livros roubados.
Muitos não liam os livros, mas freqüentava-os com avidez, sabiam dos detalhes de edição, do papel, do ilustrador, da dedicatória. Quanto mais antigo, melhor. O prêmio maior eram as obras dos “viajantes” que percorreram o Brasil nos seus primórdios, em edições originais. Alguns perdiam a pressão, outros a compostura, não raras vezes perdiam o juízo. (Um deles vivia endividado, escondendo os livros da família para evitar problemas conjugais. Quando morreu um deles, o primeiro que a viúva fez foi vender a coleção — a “outra” — a qualquer preço).
Mas havia os estudiosos, os eruditos, os pesquisadores que conheciam livros, autores, editores, as livrarias, a história do livro, os valores e os fatos em que os livros surgiram. Colecionadores temáticos, sistemáticos, que têm uma definição clara do que buscam e, melhor ainda, para quê. Buscam resgatar as obras do esquecimento, pretendem preservá-las e, no melhor dos casos, divulgá-las. Edições facsimilares, edições críticas, comparadas, reedições de obras esgotadas, resgate de autores geniais que, em vida, não conheceram a glória merecida.
Eu não escapei à regra. Colecionei cartões-postais durante décadas. No início era um hobby aliada à febre da correspondência. Pen pals por todo o planeta, enquanto exercitava a redação em línguas estrangeiras, em inglês e espanhol. Depois as viagens constantes, as visitas ao livreiros antiquários e às feiras de cartões postais-antigos em Buenos Aires, em Montevidéu, em Lisboa, Madri, Londres, Paris, até em Hong Kong! Cheguei a viajar metade dos Estados Unidos visitando cidades pequenas para “garimpar” nas feiras de papéis antigos... e conseguia maravilhas. Principalmente os post cards do Brasil do fim do século XIX e princípio do século XX.
Depois comecei uma coleção de livros sobre Brasília. Eram baratíssimos. Cariocas e paulistas odiavam Brasília, queriam desfazer-se das obras pioneiras. Depois doei o acervo para a Biblioteca Nacional de Brasília. Doar acervos para bibliotecas costuma ser o melhor destino das coleções privadas, pois somente os fanáticos ou aficionados são capazes de formar acervos tão especializados e com tamanha dedicação e conhecimento de causa. Uma verdadeira missão.
Às vezes os acervos dos colecionadores defuntos são pulverizados pelos herdeiros, não raras vezes vendidos a quilo, preço injusto por unidade, sem piedade. Por sorte, se disseminam em outros acervos, quando não é adquirido por alguma biblioteca com recursos, geralmente estrangeira. Foi o caso de uma coleção sobre a história da ciência no Brasil que tomou o destino da Holanda, porque nenhuma biblioteca brasileira se dispôs ou pôde adquiri-la a tempo. Sebistas e alfarrabistas fazem a festa depois do enterro do colecionador. Usam estratégias para aproximar-se da família do morto, para o melhor negócio, antes que outro se adiante. Frequentam o necrológio dos jornais, há quem vá ao enterro!!!
Se não fossem os bibliófilos, que seria das bibliotecas, dos fundos de pesquisa, da memória dos povos, dos museus e arquivos públicos? Sem colecionadores e livreiros especializados, como garantir que obras valiosas não desapareçam ou permaneçam no anonimato, ou continuem inacessíveis?
Brasília, 16 de junho de 2009
COMENTÁRIOS
Acabei de ler seu interessante texto Bibliofilia e outros desvios de conduta e, de fato, também entendo que o bibliófilo cumpre uma função importante, não só de preservar um precioso patrimônio cultural, mas também publicizar obras que, talvez, tivessem como destino um circulo muito restrito de leitores. Apesar de - conforme sinaliza seu texto - das variantes das bizarrices implicadas neste postura de mero colecionismo há também, por outro lado, os eruditos que aplicados ao estudo não colecionam simplesmente.
Lembrei inclusive de um livro que li há algum tempo: Não contem com o fim dos livros, diálogo entre Humberto Eco e Jean-Claude Carriére, onde discutem a evolução da escrita de plataformas antigas ( por exemplo, o papiro ) até as plataformas digitais na perspectiva de que a evolução tecnológica não irá suprimir o papel, da mesma maneira que o Cd não eliminou o Lp, etc. Recordei que, em determinado momento do livro, Humberto Eco faz menção que demorou 10 anos para adquirir um livro muito desejado em um alfarrábio - se não me falha a memória da Europa - a obstinação de Humberto é - conforme seu texto - a de um erudito e não meramente um desvio de conduta, pois, tal empreendimento é colocado a disposição do conhecimento e não degenera em um simples hábito de colecionismo.
CHARLES GENTIL, abril 2014
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