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AUTO ANÁLISE SOBRE DIFERENÇA,

DIVERSIDADE E CÂNONE  LITERÁRIO

 

 

       por

 

Horácio Costa

 

(Universidade de São Paulo, USP)

 

 

Abstract:

Nesta “Auto análise sobre a diferença, a diversidade e o cânone literário” focalizo a minha produção poética de conteúdo homoerótico, centralizando-me em dois poemas do livro Satori (1989), “Satori” e “Noturno da Cidade do México”, e no texto “Estado de Graça”, com o objeto de compreensão de minha própria obra como exemplo de memória textual homossexual no contexto da poesia brasileira contemporânea.

***

 

 

Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por  onde se note que existiu Homero.

Uma abstração concretizada passa a ser pragmaticamente real. Uma abstração não concretizada não é real mesmo pragmaticamente.

                   Fernando Pessoa/Ricardo Reis, “Obras em prosa/Os outros eus”.

 

         Talvez seja esta uma reflexão, antes de mais nada, sobre a diferença. A palavra “diversidade”, em termos semânticos nela entroncada, não cobre os tons que essa palavra mais antiga e menos “conceitual”, digamos, implica: diferente é o que não é igual, diverso é o que é vário, plural. No campo dessas minhas reflexões sobre escritura poética e homoerotismo, e de resto: como é cada vez mais notório, a primeira palavra remete à oposição entre sexos carregada de determinismo, e por que não dizer, moral e pensamento tradicionais: em seu horizonte, leva à ciranda de noções interconexas que tem na família e na definição dos papéis masculino e feminino no teatro social a sua pedra de toque. No âmbito de uma palavra menos taxativa, porém quiçá mais comprometedora como “diversidade” (sexual), a história contemporânea se abre, com seus promissores horizontes: se a diferença sexual em princípio atende à injunção biológica desde o nascimento dos seres humanos e ao universo heteronormativo, edificado, com o poderoso auxílio das religiões monoteístas, a partir dela, e se, por outro lado, a diversidade vem com a conquista moderna e pós-moderna da construção da identidade — subjetiva, mas também ideológica, geracional, histórica—, no espaço deste estudo quero recuperar a primeira palavra não sob os aspectos já aqui assinalados e sim em conjunção com a sua memória relativamente recente na literatura brasileira, com foco, mais precisamente, na minha própria trajetória como poeta.

         Se diverso é o que hoje me considero, diferente é como me sentia em meus anos formativos —que muitos foram e em vários quadrantes, e deram azo a vários textos poéticos de índole de auto-perscrutação. Em poucas palavras: nasci —ou melhor, cresci- “diferente” e me fiz “diverso”. Nesse sentido, a história dessa diferença é a da assunção da identidade atual. Por essa razão, não me parece possível, considerando o meu desenho no contexto da poesia brasileira contemporânea, falar em termos dessa mudança —ou, mesmo, dessa evolução—, em termos exclusivamente delimitados pelo movimentos sociais, econômicos, culturais e quejandos, tal e como, nesses meus anos formativos pautados pela discursália marxista e pelo horror ao registro subjetivo no discurso dito acadêmico, se convencionava preconizar. Em tais anos, nos quais a rasura do sujeito enunciador era visto como o grau zero para o exercício da crítica cultural auto-avaliada como “objetiva”, pois, os pressupostos de um texto como este seriam recusados, talvez, liminarmente. Evidentemente, vigorava ainda o temor de que o sujeito analítico se satisfizesse narcisicamente com a publicização de suas mazelas, e principalmente de suas desditas emocionais, como no século XIX durante o Romantismo; por outro lado, os mitemas extremistas de esquerda e direita, que preconizavam o surgimento de um “homem novo” na primeira metade do século passado, haviam anatemizado quaisquer derivas de exploração auto-biográfica na república das letras brasileiras a partir dos anos ’30, e inda mais, talvez, durante os chamados anos de chumbo, sob os quais cresci (em 31 de Março de 1964 tinha eu 9 anos). De toda maneira, subsidiariamente vale recordar, nesse contexto, tanto a esqualidez do registro memorialístico ou mesmo autocrítico na literatura brasileira, apesar de poucas e honrosas exceções, como a pequena rentabilidade acadêmica nos estudos voltados sobre o mesmo, tudo se passando como se o Autor (sim, com “A” maiúsculo) e os estudos sobre sua Obra (em Maiúscula, sim, senhor!) dele pudessem prescindir, e que o texto literário publicado fosse finito — i.e., revelasse em seu bojo todas as camadas sobre as que se constrói—, e não representasse, como creio, a ponta de um iceberg que não pode ser desvinculado dos múltiplo registros, textuais ou não, que colaboraram em sua concreção.

         Para terminar este raciocínio preliminar, vale recordar, ainda, que tenho a fortuna de a minha obra poética ter chamado a atenção de autores e críticos significativos dentro e fora do Brasil, como se pode verificar, por exemplo, nos ensaios que seguem à antologia Fracta (2004), organizada por Haroldo de Campos e traduzida ao espanhol (2008).1 Entretanto, até a presente data não fui objeto, segundo o meu conhecimento, de nenhum estudo que tratasse, mesmo que de modo indireto, do contributo que a ela poderá ter dado o fato de que sou um poeta homossexual e de que, pelo menos desde o meu segundo livro, Satori (1989),2 essa identidade vir manifesta como um vetor temático, se não compositivo, em vários poemas. Por isso, e depois de haver publicado dez livros de poesia em português e de ter poemas ou livros completos traduzidos a dez línguas, parece-me oportuno que processe este intento de auto-interpretação. Se, como dizia Ricardo Reis na primeira das epígrafes do presente ensaio, é possivelmente desejável que algo permita remeter a Homero mesmo no menor poema escrito, afirmando, assim, o milenar fio condutor da poeticidade que perpassa o tempo, não deixa de ser verdade que uma abstração, tal a assunção de uma sexualidade outra, e para lá desse traço de união, necessita de objetivação para augurar quociente de memória, para que se concretize e torne-se algo “pragmaticamente real”, como formulado na segunda epígrafe reisiana.

 

         Diga-se de passagem que processo semelhante não me parece ter sido trilhado pelos poetas homossexuais brasileiros. Primeiro, por gerações, fugiram de expor textual, publicamente sua condição, como por exemplo no emblemático caso de Mário de Andrade, cuja correspondência com Manuel Bandeira, no que tange a seu poema “Girasol da Madrugada” estudei há alguns anos.3 Essa atitude de Mário contrasta vivamente com a de outros poetas que professavam o credo modernista em outras plagas, como por exemplo, os mexicanos do grupo de “Contemporáneos”, em especial Salvador Novo, como tive a oportunidade de frisar em outro ensaio.4 Ainda, por algumas gerações e como é notório, entre nós a homossexualidade foi vista, e muitas vezes vivida, como um passaporte para a marginalidade —socialmente assim como nas lindes da formulação do cânone literário—; tal o caso de Roberto Piva, cuja obra apenas recentemente tem recebido atenção crítica. Talvez sejam estas possíveis explicações para a carência do registro homoerótico na dita alta poesia brasileira e no espaço crítico que a estuda.

 

                Devassos no paraíso (apud João Silvério Trevisan), descendentes de um “pai antropófago” mas órfãos de um “pai veado”, os poetas homossexuais brasileiros, ignorados pela república das letras brasileiras, se viraram como puderam e o preço que pagam por essa situação —que, penso, mais do que torna evidente: epitomiza as limitações e as contradições da modernidade made in Brazil- é termos chegado aos dias de hoje com relativamente pouca memória e possivelmente menos matéria crítica. Diante desse panorama e por todo o dito anteriormente, não se observe no presente texto nenhum intento auto-incensatório, como certos leitores que escondem traços homofóbicos debaixo de exercícios críticos aparentemente imparciais possivelmente tratarão de infamá-lo. Talvez valha especificar, nesse sentido, que escrevo estes parágrafos não com prazer, mas assistido pela sensação de dever, e antes que anochezca (apud Reinaldo Arenas).

 

         Cresci diferente, como dizia, e me fiz diverso. Neste enunciado, dois momentos consecutivos da vida: o primeiro corresponde à tomada da consciência da própria diferença, algo comum a todos os seres humanos, porém com o diferencial específico da percepção aguda da sexualidade não coincidente com a da maioria (família, amigos, escola). No segundo, a marca da identidade gay. Indo além: no primeiro núcleo, infância, adolescência e primeira juventude; no segundo, segunda juventude e maturidade. Entre eles, nomadismo: no primeiro pólo, da fazenda de meus antepassados para São Paulo e nesta, do Higienópolis para o campus da USP no Butantã; no segundo, e paralelamente à assunção pública da homossexualidade, da troca de horizonte profissional —de arquitetura para letras— e para o estudo das letras, como bolsista, em universidades americanas, e o posterior casamento com o poeta mexicano Manuel Ulacia, em função do que vivi no México por uma década e meia. Deveria eu agregar um terceiro momento, o atual, correspondente à volta ao Brasil depois de vinte anos, ao casamento com Francisco Barbosa, oficial da marinha mercante, e à percepção do umbral da senescência? Parece-me que sim, uma vez que é esse momento que sustenta a escritura deste texto e no qual a maior parte dos meus poemas com temática homoerótica vem sendo escrita.

 

         Entretanto, por força de método, se não mesmo de espaço, prefiro delimitar-me aqui ao exame da primeira dessas fases; mais especificamente, prefiro concentrar-me no já mencionado livro Satori. Em textos futuros tratarei das demais, tendo sempre como sentido o intento de raciocinar mais especificamente sobre o quid mais propriamente homossexual em minha produção poética. Afinal de contas, em minha opinião está longe de definir-se o debate intelectual e/ou teórico sobre o conceito e, por isso mesmo, tenho me referido, nesses meus estudos sobre a formação do cânone da poesia moderna, como registro da palavra poética homossexual.5 Adiantando algumas questões: Haverá de fato uma poesia homossexual para lá da temática homoerótica? O fato de responder tematicamente à experiência homoerótica a converte em escritura homossexual? Ainda, o homoerotismo poderia ser considerado uma pulsão vital do texto, um seu substrato generativo, um seu grau zero anterior à mesma palavra e, menos, à sua concreção em uma vertente temática ou outra? E, em caso positivo, seria de fato possível, portanto, uma exploração linguística desse devir-texto, que tratasse de acrisolar os modi nos quais essa concreção frequentemente se desse?

 

         Para os estudos que registram a experiência homossexual na poesia brasileira moderna, tais questões, e outras conexas por formularem-se, não me parecem ociosas. De fato, enumerando-as fica-me claro que para esses estudos importam tanto quanto —ou, ao longo do tempo, i.e., em projeção para o futuro, mesmo mais— do que o simples levantamento temático, ou historiográfico-crítico, essencial, no momento presente, para o estabelecimento —diria: a conquista— de uma memória homossexual na cultura brasileira. Portanto, qualquer estudo sobre o tema não pode, ainda que em variáveis graus de profundidade, elidirem-nas. Como, não obstante, aqui não se me configura o âmbito de exploração téorica, passo para a minha auto-análise poética, nos termos que assinalei anteriormente.

 

         Como disse, os meus primeiros poemas de conteúdo homoerótico foram publicados em Satori. Curiosamente, Severo Sarduy, quem gentil e habilmente escreveu o prólogo ao livro, deixa passar este registro. Tinha-o conhecido em 1988, com o seu companheiro, o filósofo François Wahl, editor das “Éditions du Seuil”, num evento de poesia no México auspiciado por Octavio Paz; ficamos imediatamente amigos e conversamos sobre a dificuldade de inclusão no boom literário latino-americano (basicamente hispano-americano) de escritores declaradamente homossexuais. O próprio Severo e Reinaldo Arenas, outro cubano trânsfuga da ditadura castrista, continuam a dar bem o exemplo disso. Em seu prólogo, Severo caracterizou a minha escritura poética como um “Arcimboldo textual”, dando-me assim a pista para juntar esse traço entrópico —já que Satori seria, segundo ele, um “livro da palavra sistematicamente desordenada”, um “blecaute branco do ser”—6 ao, digamos, hemisfério da homossexualidade (percebo que já estou tratando das questões que levantei no parágrafo anterior: seria essa instabilidade ou mesmo pluralidade estilística, essa experimentação com várias formas elocutórias, um traço diferencial do dizer poético homossexual?).

 

         Como tema, e na melhor tradição da lírica em língua portuguesa, meus primeiros textos poéticos homoeróticos trazem inspiração amorosa; nesse sentido, são, de fato, homoafetivos, como aqueles poemas escritos entre 1980 (São Paulo) e 1984 (Cidade do México): “Cordas”, “Sobre o vazio”, “Convite”, “Retrato de memória”, “La Rotonda de Palladio”, “La vita”, “Viagem de New Haven a Nova Iorque”, nos quais sempre há um “tu” ausente. Alongo-me sobre “Noturno da Cidade do México” (escrito na Cidade do México, 1983) e “Satori” (escrito em Nova Iorque, 1982). Este último constituiu a primeira publicação de um poema de minha autoria em espanhol; traduzido pelo poeta uruguaio exilado no México Eduardo Milán, foi publicado na Revista de la Universidad Nacional Autónoma de México (nº 37, 1984). Na segunda parte de “Satori”, verifico pela primeira vez uma referência explícita à homossexualidade:

 

Vermelhas embora silenciosas

estreitas porém infinitas, intuídas

por um double (Escher, Piranesi)

atrás de minha cabeça, ocas

cidades nuas e suas montanhas,

tu entras pelo Túnel Rebouças

e subitamente o dia te cumprimenta

m’illumino d’immenso no bairro

de Santa Teresa. Esta sucessão

regressiva, estes cruzamentos

de raças, ideias, dobraduras,

nossos membros unidos, duas

bússolas, todas as sensações
imantadas: arco o pescoço
e mordo o meu próprio torso.

(…)

         Esses “membros unidos, duas bússolas”, caracterizam o viés amoroso do poema não apenas homoafetivamente, mas explicitamente homoeroticamente, como não escapou ao escrutínio de Octavio Paz, que juntou esse verso a outros que o seguiam na estrofe subseqüente e última dessa parte do poema:

 

 

Vejo os golpes desferirem-se

duto a duto, pouco a pouco,

com os olhos abertos virados

para dentro do esqueleto, na

confortável posição platônica

de quem penetra uma caverna

—meu eu, eu mesmo— mercurial,

na direção oposta das ruínas

supérfluas, que se acumulam

em flashes de anti-luz,

no exterior.

 

 

                Não foi durante a escritura do poema e sim somente devido ao questionamento de Paz que me dei conta de que esses versos poderiam ser lidos, concatenados, em relação ao sexo anal homossexual, coisa que não terminava, se me recordo bem, de lhe agradar —por exemplo, perguntou-me se eu achava de fato necessário nessa passagem a utilização do verbo “penetrar”, ao que eu respondi, candidamente, que sim, mesmo porque na minha leitura tratava-se menos de imagens sobre o ato sexual e mais sobre os estágios de iluminação, de satori, do ser, impulsionado pelo contato amoroso—. Nessa época, é importante recordá-lo, vivia-se o auge da pandemia do AIDS e o sexo anal, mais do que nunca na história, era vítima de uma interdição liminar. Em poucas palavras, apesar da superfície textual “culta”, que as alusões intertextuais a Ungaretti (ao poema “Mattina”) e a Marina Tzvietáieva (ao poema “À vida”)7 apenas reforçam, a imagem dominante não é a do túnel Rebouças nem aquelas produzidas pela arte labiríntica de Escher e Piranesi, pelo menos no entender de Paz, e seguia sendo mesmo a exploração da sexualidade outra. Não foi esta a démarche de Jerusa Pires Ferreira e Boris Schnaiderman, que escreveram a apresentação (a “orelha”) da antologia Fracta (cit.), na qual este poema está incluído, que interpretam esse trecho da seguinte forma:

 

Vamos ter, nesta viagem, o embate e o encontro entre o que chamamos de real e a sua representação, a proposta de quebra dos nichos discursivos, sua dicção e a de outros, fazendo conviver em movimento ativo o interno e o externo, o túnel Rebouças, e imagens de Escher e Piranesi, por exemplo.

 

            “Noturno da Cidade do México”, por sua vez, trata da velhíssima temática da saudade, ou ainda, do exílio, ainda que voluntário, como foi o meu caso. Na verdade, este poema tem um título enganador, porque não se refere ao lugar onde foi escrito, mas sim a São Paulo, mentalizada em uma determinada noite, em companhia de um cão desperto e de um amante adormecido e cuja existência justificaria por si o distanciamento em relação ao cenário de origem do poeta e de sua saudade, conforme as passagens que cito abaixo (parte já, convém assinalar, do movimento final do poema de 139 versos):

 

 

ou talvez proteger-se à aura deste corpo

que condensa nele a carne amplificada

dos demais contornos

                               seja a iniludível

resposta humana:

                          não há nenhum mistério

fora o sono

                          não há nenhum universo

fora o corpo amado

 

 

          A este elogio do amor e do corpo amado, experienciado como realidade totalizadora, prossegue o poema deslocando a cidade recriada pela memória e origem da saudade para fora do convívio do presente, instaurando-a em completa irrealidade ou, mesmo, em completa negação:

                

as cidades jamais
existiram      eram pó e a ele voltarão
forçosamente              são parte da noite
são parte dela              integrantes deste espaço
em que todas as feiras livres se desmontam
antes de viverem   
(…)
e rostos e gestos e roupas e casas e
livros
vão sendo inteiro carbonizados
antes de arderem à flor da pele do dia
e o que sobra do instante é painéis velados
por um cão desperto e calmo
nada corta
sobrenada
à tela fosca do tempo

                     por mais que me reafirme e me confesse
lá ter vivido               a tudo presenciado
a tudo visto
com tudo haver sonhado

 

                Este poema tem métrica regular e versos, em sua maioria, hendecassílabos, muitos dos quais divididos em partes componentes, o que visualmente se traduz em uma disposição gráfica ligeira e própria de certa poesia de vanguarda, o que por si permite a supressão de sinais diacríticos e implica em uma leitura contínua do texto –formato próprio, vale dizer, de muito da poesia escrita durante o auge das vanguardas. Octavio Paz chamou a minha atenção para o paralelo entre ele e o seu “Nocturno de San Ildefonso” (publicado em Pasado en claro, 1974), escrito exatamente nesse formato. Eu não tinha lido este poema a essa altura, portanto não sabia que trata das cavilações noturnas de um poeta em sua maturidade, que recorda a sua adolescência e faz um balanço de sua vida presente, inclusive dos percalços políticos e ideológicos que reconhece nos (des)caminhos de sua geração, até chegar a uma formulação sobre as diferenças entre poesia e história. Em “Noturno da Cidade do México”, e considerando a minha juventude à época de sua escritura, esse viés está de todo ausente; enfoco, basicamente, o amor.8

 

                Entretanto, há um ponto de convergência entre o poema de Paz e o meu: os corpos dos amantes, por assim dizer descobertos no meio da noite e do fluxo poético. Ainda assim, a descoberta da mulher, comparada ao luar que, durante a escritura do poema, invadira o quarto, leva o poeta mexicano, a bem dizer de sopetão, a encerrar o “Nocturno de San Ildefonso”: “El cuarto se ha enarenado de luna./ Mujer: fuente en la noche./ Yo me fío a su fluir sosegado.”, são os seus versos finais.9 Sobre a ascendência do meu amante em “Noturno da Cidade do México”, já disse algo acima: ele se encontra não como testemunha passiva –“sossegada”- da exuberância elocutória do poema, como parece ser o caso da mulher nesta passagem de Paz, mas no lugar, isto é: em vez do mundo que evoco, e do qual sinto saudade, ainda que, obviamente e por força de estar adormecido, não saiba nada disso. Continuo com minhas perguntas: essa fisicalidade acentuada, esse pendor para “proteger-se à aura deste corpo/ que condensa nele a carne amplificada/ dos demais contornos” teria algo a ver com uma ênfase antes de mais nada erótica na formulação do amor homossexual? Evidentemente, se colocada em contraste coma delicadeza do avançar da luz do luar como apanágio da presença feminina, pois... não há muito mais o que dizer.

 

          Seja como for, por essa época andava eu à cata de uma compreensão profunda do fenômeno amoroso. O texto que melhor expressa essa busca e, enfim, a revelação de sua extensão, profundidade e poder é “Estado de Graça”, última parte de Satori, que escrevi em meu diário em 1984 e que constituiu, também traduzido por Eduardo Milán, a minha primeira publicação na revista Vuelta (nº106, setembro de 1985) dirigida por Octavio Paz e que argüivelmente foi a mais influente revista literária na América Hispânica na segunda metade do século passado.

 

         “Estado de Graça” desenvolve-se unindo três hemisférios: o da escritura, o do amor e o do sonho, tomando-os entre si como correspondentes exatos, para revelar-me –o verbo não pode ser mais apropriado- o dito “estado de graça”. Escrever, amar e sonhar são vistos como atividades e experiências fundamentais –“paradisíacas”- para o sujeito enunciador. Sobre a primeira, sigo os passos de Proust e afirmo com ênfase: “O que eu quero dizer é que a escritura não é apenas paradisíaca por enganar ou substituir o tempo, o que eu quero dizer é que a escritura é paradisíaca ela mesma, apesar de ou junto ao tempo” (cit.; pág. 103). E sobre a relação entre escritura e amor:

 

Língua e ser amado são igualmente corpos e vivos; a diferença é que o segundo termo é muito mais frágil e daí muito mais digno de atenção do que o primeiro (…) Se a escritura sempre pode ser escrita amanhã –e apenas o seu caráter paradisíaco faz com que seja escrita hoje- o outro da relação amorosa tem necessariamente que ser amado agora, neste instante, porque pode não haver amanhã. (idem, 106-7).

 

                Sobre o único paraíso “ganho”, aquele do sonhar, diferente dos dois primeiros, que seriam “dados” (em função, basicamente, do empenho do ser que escreve e que ama em serem merecedores deles), escrevo: “O espaço dos sonhos é fundamentalmente de transfiguração (da língua, do ser amado) no seio do arsenal coletivo –transfiguração primeira que permite a da escritura em literatura e a do impulso amoroso em amor.” (idem, 110) Antes, dissera que “o paraíso dos sonhos (é) panamoroso, ao conectar o impulso do amor individual (…) à verdadeira redução da humanidade, que é o sonho do amor.” (idem, 109) Esse transunto fundamentalmente romântico atravessa o texto dessa forma mais conceitual, digamos, mas também através da indicação, aqui e ali, da presença do amante, como nos exemplos: “A escritura e seu outro, a língua, e o amor e seu outro, M…, vão juntos comigo para eu experimentar paraísos terrenos”; “M… continua a trabalhar em sua tese, já estivemos aqui nesta sala a discutir, num intervalo, o poema de Cernuda sobre Ludwig da Bavária” (págs. 107 e 108). Indiciada pela inicial, a presença do meu marido de então –a quem, de resto, o livro Satori, está dedicado-, transforma o longo raciocício sobre a inter-relação dos impulsos amoroso e escritural com o onírico, em um ensaio sobre a vivência homoafetiva de um jovem poeta brasileiro afeto ao nomadismo tanto no plano da literatura como no vivencial.

 

         Estado de Graça” remete às minhas leituras barthesianas, especialmente de Fragments d’un discours amoureux (1977), que tinha trilhado antes de sair do Brasil, e de Maurice Blanchot, citado no texto, como certificação de sua hibridez como produto de prosa experimental, entre ensaística e poética (aliás, tinha sido esta característica do texto, que não o seu significado como um raciocínio sobre o amor homossexual, o que atraíra Octavio Paz a publicá-lo em Vuelta). Remete, ainda, aos estudos que então fazia com o poeta-filósofo catalão exilado no México Ramón Xirau, centralizados na mística espanhola do Século de Ouro e, em particular, San Juan de la Cruz. Entre os ensaístas franceses e o poeta-santo ibérico, “Estado de Graça” também recorre a alguns dos gigantes da Modernidade: Eliot, Pessoa, Proust. O grande ausente desse universo citacional, entretanto, é Joyce, cuja noção de “epifania”, como gérmen do ato criador em literatura, teria caído como uma luva para caracterizar não apenas o texto, mas também o ato de escrevê-lo.

 

         Releio, com sensação de alivio por haver conseguido encetá-la, este primeiro esforço de auto análise poética sob o viés homossexual. Talvez não seja desnecessário terminá-la, tentativamente, recordando que sem a sensação e vivência prolongada da diferença, que me levou ao périplo que encerram os textos referidos acima, não poderia ter chegado o momento de sua transformação em objetivação e memória da diversidade -que é e sempre será, ainda que in nuce, memória da diferença.     

 

São Paulo, 24-31 de Maio de 2012

 

 

1 São Paulo, Perspectiva, 2004; Cidade do México, Fondo de Cultura Económica, 2008; org. Haroldo de Campos. Trad. de Fátima Andreu.

2 São Paulo, Iluminuras, 1989; prólogo de Severo Sarduy.

3 Vide: “Eclipse: boi que fala, cataclisma”. In: MESSEDER, Suely Aldir e MARTINS, Marco Antônio (orgs.). Enlaçando sexualidades, Salvador, Eduneb, 2010; v. 2.

4 Vide: “O cânone impermeável: Homoerotismo nas poesias brasileira, portuguesa e mexicana do modernismo”. In: Retratos do Brasil Homossexual. Org. Horácio Costa et al. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora da Universidade de São Paulo-EDUSP; 2010. Vide, ainda: “’Escritos llenos de molicie’: notas acerca da polêmica da desvirilização da poesia mexicana de 1928”. Apresentado na ABRALIC-Associação Brasileira de Literatura Comparada, Rio de Janeiro, 2005, inédito em papel.

5 Veja-se também “Homoerotismo intertextual, ou: que dialogo é esse? Álvaro de Campos ‘conversa’ com Walt Whitman”. In: LOPES, Denílson et al. (orgs.). Imagem & diversidade textual – Estudos da homocultura”. São Paulo, Nojosa, 2004.

6 Satori (cit.); pág. 10.

7 Cf. Poesia russa moderna. Trad. Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Boris Schnaiderman. São Paulo, Civilização Brasileira, 1968 (1ª ed.), uma das mais importantes leituras poéticas da minha adolescência. O poema de Ungaretti, quem fora o criador da cadeira de literatura italiana na FFLCH-USP, era de conhecimento comum entre os estudantes à época e me foi “apresentado” por Milton Hatou

8 Creio ser importante assinalar que “recuperei” ambos os poemas aqui enfocados posteriormente, em poemas novos, “Noturno de New Haven”, dedicado ao Francisco e escrito em São Paulo em 2007, publicado em Ravenalas (São Paulo, Sêlo Demônio Negro, 2008), e “Satori”, escrito em 2004 em Pinhalzinho, Brasil, e publicado posteriormente em Ciclópico Olho (idem, ibid., 2011). 9 Cf. “Nocturno de San Ildefonso”, in: Lo mejor de Octavio Paz. Barcelona, Seix Barral, 1989; págs. 257-265; citação à pág. 265.

 

 

 

 

 

 

 

Referência bibliográfica:

 

COSTA, Horácio.  Auto análise sobre diferença, diversidade e cânone literário.  In: PORTAL DE POESIA IBERO-AMERICANA – Ano 17 – No. 64, Outubro/Dezembro 2020.  ISSN 2447-1178

/ http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/auto_analise_sobre_diferença_e_canone_literario.html )

 

 


 

 

 
 
 
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