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ASTRID CABRAL: UMA VOZ POETICAMENTE FORTE


por JOLENE DA SILVA PAULA

Extraído de:

Paula, Jolene da Silva. A poesia no Amazonas - autoria feminina : Voz e silenciamento.  Manaus: Universidade Federal do Amazonas,  2016.   115 f.: il. Color.  31 cm. Orientador: Prof. Dr. Gabriel Arcanjo Santos de Albuquerque Dissertação (Mestrado em Letras)  

https://tede.ufam.edu.br/bitstream/tede/6266/5/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20Jolene%20S.%20P.%20Cunha.pdf

 

        

Considerada por muitos como a grande representante da autoria feminina na literatura do Amazonas, Astrid Cabral se destaca não apenas pelo reconhecimento literário de sua obra inicial, Alameda, mas também pela permanência, nesse cenário, como uma voz que ainda ecoa, audível e forte, há mais de cinco décadas, o que, de certa forma, destoa da trajetória natural dessa produção. Como isso se deu? Como foi possível, em meio a um cenário tão supressor do discurso feminino, permanecer escrevendo, publicando e sendo alvo de leituras, estudos, análises e tanta admiração? Como foi possível vencer os obstáculos do silenciamento, da marginalidade e do ostracismo para se firmar como uma das maiores, senão a maior expoente da lírica amazonense?

Assumindo a posição de sujeito da própria história, essa voz, ainda pequena à época de sua estreia literária, buscou dar vida aos pequenos seres da conhecida alameda amazônica, espaço comum a tantos, evidenciando as agruras da condição humana e a preocupação ecológica, que viria a ser tema recorrente em muitas produções que se seguiriam. Sobre sua incursão ao mundo da escrita, no artigo Astrid Cabral: a professora fala da poeta, a autora revela que descobriu "a vocação de escritora" aos onze anos de idade. "Aquilo, que para a meninada representava simples obrigação, era para mim fonte de encantamento", ela diz. (in LEÃO, 2012, p. 160).

Mais à frente, no mesmo artigo, ela refere-se ao aspecto formal da poesia que escreveu, dizendo que "ela se iniciou dentro dos padrões estéticos instaurados pela liberdade modernista, introduzida no Amazonas pelo Clube da Madrugada." (Ibid, p. 166). Antes do Clube, diz Silva (2011), a produção poética praticada em Manaus seguia a mesmice e caminhava distante do que havia de novidade sendo produzida no país.

Ao analisar sua trajetória, algumas informações se tornam fundamentais, se não para responder a todos os questionamentos levantados, ao menos para pontuar certos fatores que colaboraram para situar Astrid Cabral em um lugar proeminente neste painel de autoria feminina da poesia amazonense. Uma dessas situações, sem dúvida, foi sua vinculação ao Clube da Madrugada, cuja instituição e funcionamento coordenou o contexto literário local por várias décadas, a partir de 1954.


          Sociedade ou Clube, nessa origem primitiva, o certo é que os intelectuais amazonenses tomaram a peito mudar o panorama das letras. O registro é de Tenório Telles (A Crítica, 15 de dez. de 1993, Manaus):                   "Em meio a um contexto cultural e político adverso, sufocados pelo entorpecimento e inércia de uma província à deriva, sem muitas perspectivas históricas e sem uma base econômica que lhe desse sustentação, um grupo de poetas e intelectuais reuniu-se com o fim de repensar os destinos da cultura e da história amazonense." (BRASIL, 1998, p.19).

 

                Erguendo a bandeira da inovação artística e cultural, o Clube mexeu com as estruturas do panorama literário do Amazonas da primeira metade do século XX, que era, à época, escasso e seletivo, pois, segundo Silva (2011, p. 11), "a intelectualidade da terra – excetuada, naturalmente, aquela parcela que atuava extramuros da Academia – era, ainda na metade da década de 50, basicamente a que remanescia dos idos de 1918." Tal marasmo intelectual foi sacudido pelo surgimento do Clube da Madrugada, do qual Astrid Cabral faria parte, assumindo os ideários de renovação, engajamento e combate do Clube e se firmando como a única representante feminina em meio à boemia daquela geração. Junto com outros escritores, Cabral abriu espaços e rompeu as fronteiras do que viria a ser a modernidade literária no Amazonas, já na década de sessenta. [...]

 

o Clube da Madrugada, ]...] desenvolveu-se com a diretriz de se impor a uma cidade entorpecida que logo seria agitada pelo integracionismo da Zona Franca. Alguns talentos ganharam renome nacional e em Manaus, cidade desacostumada a ler e pensar, um grupo lia e debatia com paixão. Numa cidade sem livrarias e com jornais de circulação restrita, o Clube da Madrugada inaugurava páginas literárias e editava livros, invadindo o amortecimento, com vigor, como jamais a província havia experimentado (SOUZA, 2010, p. 173).        

 

         Outro aspecto importante desse contexto, segundo Souza (2010, p. 174), foi que o Clube, além de se firmar como cânon local, incorporou "a participação do movimento na formação política e ideológica de Manaus", trazendo o populismo e as lutas nacionalistas como busca pelo "reconhecimento das possibilidades artísticas regionais." Daí a vinculação sempre presente das ideologias político-partidárias na literatura aqui praticada.

         Em termos mundiais, a década de sessenta ainda trazia resquícios do pós-guerra14.  A fragmentação dos valores humanos, tais como a crença no ser humano, na vida e na ciência, responsável por incontáveis desastres como o lançamento da bomba atômica, mantém instaurado um clima de descrença, ceticismo, complexidade, caos e fragmentação, característico da pós-modernidade. A ciência mantinha-se, em muitos momentos, como sinônimo do fortalecimento da produção de bens de consumo e da deterioração ambiental. As novas formas de cognição e de tecnologia tornaram-se um terreno fértil para a reflexão antimoderna e para a emergência da visão de mundo pós-moderna. O homem pasmava diante dos absurdos da vida.

         No Brasil, a instabilidade política preparava o país para a ditadura que eclodiria em 1964, com o golpe militar15.  No Amazonas, a vida provinciana refletia-se numa literatura que ainda trazia resquícios da mentalidade de colônia a que Bosi (1994) faz referência: o ser

 

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14 Período logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, que durou de "1939 e 1945 [...], envolvendo, de um lado, os Aliados (Inglaterra, França, ex-União Soviética e Estados Unidos) e, do outro, os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) (VICENTINO; DORIGO, 1997)."

15 Golpe de força que deu origem ao regime militar, instaurado no Brasil a partir de 1964, que durou 21 anos (VICENTINO; DORIGO, 1997)

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explorado, o servir a outro. Uma mentalidade que foi, aos poucos se desconstruindo com o fortalecimento do Clube da Madrugada, cujas obras traziam esse caráter de rompimento e inovação, compondo esse subsistema regional, considerado por Bosi (1994) como significativo para a história literária.

         Esse foi o contexto geral que cercou o lançamento de Alameda, primeira publicação de Astrid Cabral, um ano antes de acontecer o que relatou Souza (2010, p. 175):
"açoitados pelo estreitamento de seu campo a partir de 1964, os representantes do Clube da Madrugada fracionaram-se em diversas direções".   Publicado em 1963 e reeditado em 1998 pela editora Valer, na Coleção Resgate, o livro é composto por vinte contos, quase todos com enredos mínimos, que trazem em seu bojo situações que abordam questões fundamentais da humanidade, tais como o desejo de permanência. Antônio Paulo Graça, escritor e crítico amazonense, observou a presença dessas questões na introdução para a segunda edição do livro, destacando ainda o viés da inovação que a narrativa de Astrid Cabral contempla. Ele diz:

 

Como seus personagens são plantas, árvores, flores, frutos, um muro, suas vidas se contam a partir de uma perspectiva em tudo diferente da perspectiva de personagens humanos [...] A narração se dá num jogo cambiante entre terceira e primeira pessoa, às vezes, recorrendo ao estilo indireto livre [...] O objetivo seria descobrir o humano no vegetal (in CABRAL, 1998, pp. 13-14).

 

         A partir daí, outras particularidades aparecem, situando Alameda num contexto peculiar para a literatura produzida no Amazonas, na qual está inserido. Primeiro, o ano de sua publicação.

 

                Em 1963, lançam-se tantos livros de contos no Amazonas quanto nos cem anos anteriores: Banco de canoa, de Álvaro Maia; O outro e outros contos, de Benjamim Sanches; O palhaço e a rosa, de Francisco Vasconcelos; e Alameda, de Astrid Cabral. Se Álvaro Maia representava a velha estética, os três novos autores promoviam uma sintonia entre a produção local e a do restante do país, logrando, inclusive, alcançar boas referências críticas no eixo Rio-São Paulo (PINTO, 2011, p. 45-46).

 

                Depois, o gênero narrativo escolhido por Astrid: o conto. É preciso lembrar que o conto, desde o século XIX, se revelava como gênero literário mundial, atendendo às demandas do mercado editorial vigente, por suas narrativas curtas e de fácil compreensão. No Brasil, entretanto, o boom literário do conto se dará apenas nas décadas de setenta e oitenta, já no século XX. No Amazonas, perifericamente, o conto se fortalecerá por meio do Clube da Madrugada, também na segunda metade do século XX. Como explica Zemaria Pinto,

 

A verdade é que, até o advento do Clube da Madrugada, temos apenas, de relevo, a publicação, em 1902, de Histórias e aventuras, do mesmo Paulino de Brito, e em 1908, do clássico Inferno Verde, do pernambucano Alberto Rangel, além de O transviado, de 1948, do acreano Aristófanes Castro. Quarenta anos vazios de livros de contos, de autor ou temática amazonense (PINTO, 2011, p. 19).

 

         Astrid Cabral rompeu e inovou e, ao inovar, chamou a atenção para uma ficção que se insurgiu contra a tradição local e suas longas descrições narrativas, centrando seus contos na dinâmica das ações e dos acontecimentos fortuitos e definitivos que ocorrem em sua alameda. Por tudo isso, o livro de contos de Cabral revelou-se como uma produção inusitada para a época, tanto do ponto de vista estético quanto pelo conteúdo que abordou por meio das plantas e dos pequenos seres de Alameda, retratando a realidade regional amazônica não mais pelo prisma de uma natureza opressora que precisava ser subjugada, civilizada e domesticada, mas como um espaço de vida e interações próprias, cujas leis naturais devem ser respeitadas.

 

Alameda, constituído de contos em prosa poética, apresenta a convergência do objetivo com o subjetivo num espaço entre o real e o imaginário. Parto da presença de seres vegetais conhecidos [...], adivinhando-lhes através da fantasia uma vida secreta, humanizando-os inclusive, bem como lhes atribuindo qualidades fantásticas. Ao conferir aspectos psicológicos a personagens vegetais, entrego-me à criação dentro da vertente da invisível intimidade, mas ao narrar utilizando como ambiente e cenário básico a natureza primitiva das plantas, passo a criar recorrendo àquele espaço mágico dotado de visibilidade que remete ao real amazônico (CABRAL in LEÃO, 2012, p. 165).

 

         Ao abordar o nível discursivo dos contos de Alameda e identificar nos mesmos ideologias, pensamentos filosóficos e posicionamentos culturais da época em que foram escritos, procurei estabelecer relações de sentido que favorecessem e ampliassem a compreensão do todo e formassem uma grande teia de significados, a partir do diálogo com outras áreas, como a Sociologia e a História, já que os contos de Alameda carregam consigo as marcas do tempo, da sociedade e do contexto no qual estão inseridos enquanto criação e representação social, refletindo, nos diversos aspectos do texto, a sociedade na qual autor e obra se inserem, como afirma Marisa Corrêa Silva (2009), em seu artigo sobre crítica sociológica. Ao considerar a literatura como um fenômeno que resulta de determinada inserção social, a autora aponta o contexto, a língua, a localização geográfica e temporal como fatores que se imprimem e marcam o texto, bem como os valores que ele perpetua.

         O discurso presente nos contos de Alameda trouxe à tona a realidade de um microcosmos que representa o macro social, exemplificando a relação entre infraestrutura e superestrutura de que fala Raymond Williams (2011), em seu Cultura e Sociedade. Dois mundos – cultura e sociedade – vivos na mesma linguagem: a linguagem artística. Para Williams, a expressão artística é a reação, no plano cultural e simbólico, acerca das mudanças no plano material. Assim, a literatura materializa a cultura, sendo a obra literária a expressão mais visível da relação entre sociedade e cultura, ou seja, entre a representação material e a representação simbólica do contexto histórico.

Vemos em Alameda, portanto, questões relacionadas aos dramas humanos, tais como a inquietude diante da finitude e da morte sendo retratadas por uma linguagem que expressa, ao mesmo tempo, regionalidade e universalidade. Regionalidade expressa por meio do espaço geográfico amazônico no qual os personagens transitam e os dramas se desenrolam e universalidade, por meio das tensões e dos valores materiais e espirituais que as narrativas abordam.

         O existencialismo16, corrente filosófica europeia dos séculos XIX e XX, fortemente se apresenta nos enredos de Alameda, nos quais, por analogia com os vegetais, o homem está preso ao seu destino-existência, embora não esteja livre dos efeitos do acaso, que pode, tragicamente, mudar tudo. Eis a impotência humana diante das forças adversas! Analisando os elementos narrativos dos contos, Zemaria Pinto declara: "Os personagens têm uma consciência tão clara de seus destinos, que as narrativas assumem um caráter mitológico —

 

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16 Segundo o Dicionário do pensamento social do século XX (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996), "a doutrina característica do existencialismo é de liberdade humana radical. A palavra foi cunhada durante a Segunda Guerra Mundial para as ideias, então em surgimento, de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir", para quem o valor da existência sobrepõe-se ao valor da essência humana.

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 todos têm ali uma missão a ser cumprida, definida pela natureza. Isso não abole o acaso, naturalmente." (PINTO, 2011, p. 63).

 

         Assim, a existência define o ser. Já no próprio título da obra, Astrid Cabral revela a alameda como um caminho que atravessa todos os seres, condicionando-os aos seus destinos, todos fadados a uma existência temporária e a uma finitude inexorável, como constata o grão de feijão, no conto Um grão de feijão e sua história:

 

Às vezes analisava o poder que tinha de prever coisas e fatos. Era como se sua vida fosse repetição e nunca morresse, mas se encarnasse em tempos sucessivos, carregando consigo a experiência da espécie. Dentro de si, sentia, havia algo que varava o tempo atravessando intacto as contingências da morte — o que lhe segredava o jeito de ser no mundo, suas emboscadas e gozos (CABRAL, 1998, pp. 102-103).

 

         A morte e o "acaso" se materializam nos dramas dos pequenos seres de Alameda que, ora são salvos por engano, como o grão de feijão que escapa da panela, confundido com os grãos ruins, ora sucumbem por acaso, mortos por um jato de água fervente, jogado pela empregada. O futuro planejado é interrompido; os planos, frustrados. A morte, nesse caso, não vem do destino, mas do puro acaso.

         O existencialismo de Sartre, misturando resignação e resistência face ao destino imposto, aparece em Destino: "A mágoa constante da plantinha era uma só. Sabia vã a sua esperança de flor." (CABRAL, 1998, p. 27).  Mais uma vez, em Queixa contra o vento, o existencialismo apresenta suas marcas:

 

Já ultrapassei a tenríssima idade de broto, a sólida maturidade. Meu futuro é o fim. Reluto porém contra a ideia de morte violenta, raízes desencravadas do solo pelo vendaval, o corpo comportando seiva para mais uma floração. Sonho a morte como lenta inconsciência, entorpecimento progressivo. Prefiro a tortura arrastada de uma doença ao inesperado do raio, à fúria da ventania. Está no destino que as plantas definhem e um dia se vão legando suas sementes. Vê-las trucidadas a lâminas de fogo ou ferro, derrubadas no arrastão assassino do vento, deixa-me amargurada, em crise (CABRAL, 1998,

p. 76).

 

         E outra vez em, em Laranja de sobremesa:


Ali está tranquila na porcelana. Mas a sua inércia não indica morte, antes submissão. [...] Entregando-se mansamente ao esquartejar da faca, ao imediato triturar dos dentes e é caldo a escorrer goela abaixo, bagaço rejeitado. [...] Fora disso a sua história é episódio secundário, para sempre sepultado. [...] No prato, as sementes velam pela laranja desaparecida e se prometem em vão repeti-la dentro em breve (CABRAL, 1998, p. 51).

 

                Também revelando influências do pensamento kafkiano, cuja produção inicial foi marcada pelo gênero conto, assim como aconteceu com Cabral, os contos de Alameda mostram conflitos existenciais vividos pelos vegetais, tais como a reflexão expressa pela orquídea no conto A orquídea da exposição, ao se ver diante do dilema acerca da verdade, considerada intangível: "Certamente a verdade não existia e se existisse só poderia ser vista do alto daquela árvore, maior que a maior das montanhas." (CABRAL, 1998, p. 158).

 

No conto A aventura dos crótons, as limitações da existência ganham dimensões metafísicas, mais uma influência de Kafka17, que também apresenta em sua obra a impotência e a fragilidade do ser humano, sempre abalado e ameaçado por forças ocultas, e constrói suas narrativas permeadas de confronto entre os personagens e o poder das instituições. No conto de Cabral, os crótons, ao se perceberem fadados ao destino imposto pelo jardim e por sua condição de existência, questionam a força imperativa dos jardins e dos jardineiros, dizendo que estes zelavam "pela dócil submissão de todos" e que aqueles seriam "pequenos cativeiros em que as plantas medravam a susto, contidas pelo medo [...] pois toda luta importava em derrota." (Ibid, pp. 66-67).

Na análise de Antônio Paulo Graça, tais influências kafkianas – a opção pelo conto como gênero narrativo, a criação de mundos que se afastam da

 

presença de grandes doses de realismo, ironias e de questões metafísicas que permeiam os conflitos do enredo – se explicam, pois, na época, "suas traduções já corriam o mundo." (Ibid, p. 18). Contrapondo-se à consciência da finitude, o desejo da permanência pela perpetuação da espécie também aparece, mesmo considerando a morte como um destino inevitável.

 

 

17 -    Para o Dicionário universal de biografias (S/D),  o  estilo  de  Kafka  "tem  como  características  uma  clara vocação  metafísica  e  uma  mistura  de  absurdo,  ironia  e  lucidez,  seguindo  a  linha  da  Escola  de  Praga,  cujo principal autor é o próprio Kafka.

 

  

         No conto Alameda, constituído de contos em prosa poética, apresenta a convergência do objetivo com o subjetivo num espaço entre o real e o imaginário. Parto da presença de seres vegetais conhecidos [...], adivinhando-lhes através da fantasia uma vida secreta, humanizando-os inclusive, bem como lhes atribuindo qualidades fantásticas. Ao conferir aspectos psicológicos a personagens vegetais, entrego-me à criação dentro da vertente da invisível intimidade, mas ao narrar utilizando como ambiente e cenário básico a natureza primitiva das plantas, passo a criar recorrendo àquele espaço mágico dotado de visibilidade que remete ao real amazônico (CABRAL in LEÃO, 2012, p. 165). Ao abordar o nível discursivo dos contos de Alameda e identificar nos mesmos ideologias, pensamentos filosóficos e posicionamentos culturais da época em que foram escritos, procurei estabelecer relações de sentido que favorecessem e ampliassem a compreensão do todo e formassem uma grande teia de significados, a partir do diálogo com outras áreas, como a Sociologia e a História, já que os contos de Alameda carregam consigo as marcas do tempo, da sociedade e do contexto no qual estão inseridos enquanto criação e representação social, refletindo, nos diversos aspectos do texto, a sociedade na qual autor e obra se inserem, como afirma Marisa Corrêa Silva (2009), em seu artigo sobre crítica sociológica.

          Ao considerar a literatura como um fenômeno que resulta de determinada inserção social, a autora aponta o contexto, a língua, a localização geográfica e temporal como fatores que se imprimem e marcam o texto, bem como os valores que ele perpetua. O discurso presente nos contos de Alameda trouxe à tona a realidade de um microcosmos que representa o macro social, exemplificando a relação entre infraestrutura e superestrutura de que fala Raymond Williams (2011), em seu Cultura e Sociedade. Dois mundos – cultura e sociedade – vivos na mesma linguagem: a linguagem artística. Para Williams, a expressão artística é a reação, no plano cultural e simbólico, acerca das mudanças no plano material. Assim, a literatura materializa a cultura, sendo a obra literária a expressão mais visível da relação entre sociedade e cultura, ou seja, entre a representação material e a representação simbólica do contexto histórico. Vemos em Alameda, portanto, questões relacionadas aos dramas humanos, tais como a inquietude diante da finitude e da morte sendo retratadas por uma linguagem que expressa, ao mesmo tempo, regionalidade e universalidade. Regionalidade expressa por meio do espaço geográfico amazônico no qual os personagens transitam e os dramas se desenrolam e universalidade, por meio das tensões e dos valores materiais e espirituais que as narrativas abordam. O existencialismo16, corrente filosófica europeia dos séculos XIX e XX, fortemente se apresenta nos enredos de Alameda, nos quais, por analogia com os vegetais, o homem está preso ao seu destino-existência, embora não esteja livre dos efeitos do acaso, que pode, tragicamente, mudar tudo.

                 Eis a impotência humana diante das forças adversas! Analisando os elementos narrativos dos contos, Zemaria Pinto declara: "Os personagens têm uma consciência tão clara de seus destinos, que as narrativas assumem um caráter mitológico – 16 Segundo o Dicionário do pensamento social do século XX (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996), "a doutrina característica do existencialismo é de liberdade humana radical. A palavra foi cunhada durante a Segunda Guerra Mundial para as ideias, então em surgimento, de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir", para quem o valor da existência sobrepõe-se ao valor da essência humana, todos têm ali uma missão a ser cumprida, definida pela natureza. Isso não abole o acaso, naturalmente." (PINTO, 2011, p. 63). Assim, a existência define o ser. Já no próprio título da obra, Astrid Cabral revela a alameda como um caminho que atravessa todos os seres, condicionando-os aos seus destinos, todos fadados a uma existência temporária e a uma finitude inexorável, como constata o grão de feijão, no conto Um grão de feijão e sua história: Às vezes analisava o poder que tinha de prever coisas e fatos. Era como se sua vida fosse repetição e nunca morresse, mas se encarnasse em tempos sucessivos, carregando consigo a experiência da espécie. Dentro de si, sentia, havia algo que varava o tempo atravessando intacto as contingências da morte – o que lhe segredava o jeito de ser no mundo, suas emboscadas e gozos (CABRAL, 1998, pp. 102-103). A morte e o "acaso" se materializam nos dramas dos pequenos seres de Alameda que, ora são salvos por engano, como o grão de feijão que escapa da panela, confundido com os grãos ruins, ora sucumbem por acaso, mortos por um jato de água fervente, jogado pela empregada. O futuro planejado é interrompido; os planos, frustrados. A morte, nesse caso, não vem do destino, mas do puro acaso. O existencialismo de Sartre, misturando resignação e resistência face ao destino imposto, aparece em Destino: "A mágoa constante da plantinha era uma só. Sabia vã a sua esperança de flor." (CABRAL, 1998, p. 27).

           Mais uma vez, em Queixa contra o vento, o existencialismo apresenta suas marcas: Já ultrapassei a tenríssima idade de broto, a sólida maturidade. Meu futuro é o fim. Reluto porém contra a ideia de morte violenta, raízes desencravadas do solo pelo vendaval, o corpo comportando seiva para mais uma floração. Sonho a morte como lenta inconsciência, entorpecimento progressivo. Prefiro a tortura arrastada de uma doença ao inesperado do raio, à fúria da ventania. Está no destino que as plantas definhem e um dia se vão legando suas sementes. Vê-las trucidadas a lâminas de fogo ou ferro, derrubadas no arrastão assassino do vento, deixa-me amargurada, em crise (CABRAL, 1998, p. 76). E outra vez em, em Laranja de sobremesa: Ali está tranquila na porcelana. Mas a sua inércia não indica morte, antes submissão. [...] Entregando-se mansamente ao esquartejar da faca, ao imediato triturar dos dentes e é caldo a escorrer goela abaixo, bagaço rejeitado. [...] Fora disso a sua história é episódio secundário, para sempre sepultado. [...] No prato, as sementes velam pela laranja desaparecida e se prometem em vão repeti-la dentro em breve (CABRAL, 1998, p. 51).

                Também revelando influências do pensamento kafkiano, cuja produção inicial foi marcada pelo gênero conto, assim como aconteceu com Cabral, os contos de Alameda mostram conflitos existenciais vividos pelos vegetais, tais como a reflexão expressa pela orquídea no conto A orquídea da exposição, ao se ver diante do dilema acerca da verdade, considerada intangível: "Certamente a verdade não existia e se existisse só poderia ser vista do alto daquela árvore, maior que a maior das montanhas." (CABRAL, 1998, p. 158). No conto A aventura dos crótons, as limitações da existência ganham dimensões metafísicas, mais uma influência de Kafka17, que também apresenta em sua obra a impotência e a fragilidade do ser humano, sempre abalado e ameaçado por forças ocultas, e constrói suas narrativas permeadas de confronto entre os personagens e o poder das instituições. No conto de Cabral, os crótons, ao se perceberem fadados ao destino imposto pelo jardim e por sua condição de existência, questionam a força imperativa dos jardins e dos jardineiros, dizendo que estes zelavam "pela dócil submissão de todos" e que aqueles seriam "pequenos cativeiros em que as plantas medravam a susto, contidas pelo medo [...] pois toda luta importava em derrota." (Ibid, pp. 66-67). Na análise de Antônio Paulo Graça, tais influências kafkianas — a opção pelo conto como gênero narrativo, a criação de mundos que se afastam da realidade e de personagens presos aos absurdos da vida, bem como a presença de grandes doses de realismo, ironias e de questões metafísicas que permeiam os conflitos do enredo — se explicam, pois, na época, "suas traduções já corriam o mundo." (Ibid, p. 18). Contrapondo-se à consciência da finitude, o desejo da permanência pela perpetuação da espécie também aparece, mesmo considerando a morte como um destino inevitável.
Para Leão (2011, p. 187), "os textos de ficção de Astrid Cabral podem ser considerados, em mais de um sentido, como tentativa de desconstrução de certos edifícios discursivos, certas representações a respeito do mundo natural." De fato, as marcas sociais se evidenciam no discurso literário. Por outro lado, como pontua Bourdieu (1996), ao analisar a gênese e a estrutura do campo literário francês, o produto da arte é tão inefável que escapa ao conhecimento racional, o que significa que, embora a estética seja produto de um contexto social, a arte possui sua autonomia e sua independência. Figuram, portanto, na arte, os dois opostos: de um lado, autonomia; do outro, a interdependência dos diferentes contextos sociais que interferem na produção artística. Dito por Lima (2002, p. 678), "a relação entre texto e contexto, pelo menos como concebida nas declarações teóricas, é uma relação de implicitude." As ideologias em voga se manifestam nas obras e, por vezes, as singularidades do espaço e do tempo se manifestam nas expressões artísticas e culturais de uma comunidade.

                Começando na prosa, Astrid Cabral também se destacou na poesia, despontando e se mantendo em meio aos percalços do contexto social e artístico, do espaço editorial e dos estigmas da tradição literária canonizada pois, como ela mesma disse (in LEÃO, 2012, p. 166), seu alvo "sempre foi a criação de uma voz poética o mais singular possível." Para isso, precisou sair e buscar fora da terra natal o seu espaço de permanência, corroborando o pensamento de Souza (2010, p. 29), referindo-se ao artista amazonense como alguém que vive "no meio da estagnação que empurra para fora o artista e não reconhece nada além da sobrevivência pessoal." Ainda assim, a temática amazônica não se distanciou de sua poética. Nas palavras da própria Astrid, "Manaus é [...] onipresença, invisível, porém, poderosa." (CABRAL in LEÃO, 2012, p. 164). Visgo da terra é sem dúvida a obra mais importante dentro dessa linhagem criativa. Representa o manancial e a súmula das raízes profundas da autora. Aí estão sua infância, sua adolescência e o Amazonas mátrio, no qual, com exceção de três anos no Nordeste, em função do trabalho de seu pai, viveu até os 18 anos, quando foi estudar Letras no Rio de Janeiro (CABRAL in LEÃO, 2012, p. 164). Culta, letrada, viajada, Astrid Cabral possui em sua biografia a graduação em letras neolatinas pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, atual UFRJ, e um mestrado inacabado em língua portuguesa e literatura brasileira, pela Universidade de Brasília. Vencendo a invisibilidade e o anonimato, próprios da literatura local, "a obra de Astrid Cabral constitui como que um vasto memorial de seu périplo planetário de cidadã do universo, iniciado nos chãos de sua cidade natal." (SILVA, 2011, p. 52). E é assim que se revela como cidadã do mundo, buscando nos versos que escreve o resgate da memória de suas andanças.

                 Em Águas represadas, prosa poética de Rasos d'água (2004), a ânsia por novos lugares se descortina: Após tantas correntes e corredeiras, triviais e domésticas, tantos passeios pelo cais flutuante, acompanhando o volume das águas, ano após ano, nas amuradas do porto, vendo chegar e partir canoas, catraias, batelões, gaiolas e navios de grande calado, não resisto ao fascínio das viagens. Desejo outras cachoeiras que não a caseira Tarumã dos fins de semana. Viajo atraída por remotos caudais, véus de noiva, mantos de névoa e bruma. [...] eu molhando os pés no Jordão [...] estou com a irmã às margens do Mar Morto. [...] Ao rememorar doces convivências com a água, transporto-me ao inverno de 67 em Paris. [...] Décadas depois, atravesso árduos invernos de gelo em Chicago. [...] Recordo, à chegada da primavera, a sensação de alívio ao contemplar a fonte de Buckingham [..] (CABRAL, 2004, pp. 124-5). Mas, se em Rasos d'água (2004) não se pode falar da poética das águas, tal como a concebe Socorro Santiago (1986, p. 21), ao vislumbrar na obra de vários autores amazonenses "a grande influência que o rio Amazonas exerce sobre os habitantes de suas margens", com certeza, se pode perceber a forte presença da água (da bacia, das lágrimas, da chuva, do rio, do mar...), inundando a poética de Astrid Cabral: Manhã de chuva caminho/ sobre poças, sob pingos./ No ombro o céu liquefeito/ de horizonte virou fonte./ A água tem seus encantos/ visuais, táteis, musicais/ ainda mais assinzinha/ de invisíveis vasilhas/ caindo em mim vertical/ viva, sem a sonolência/ de rios e mares contidos/ em liso leito mineral./ No seio do úmido abril/ de corpo molhado e mudo/ sou um excêntrico peixe/ cruzando o aquário da rua (CABRAL, 2004, p. 93). Ainda por meio de sua literatura, Cabral subverteu o que poderia servir de controle e, com sua criação e inventividade, rompeu com esses mecanismos controladores que buscavam "servir a determinado status quo ou a certa plataforma de valores." (LIMA, 2009, p. 281). Sua poética explodiu em temas ligados aos recantos mais profundos da alma humana, tais como a inquietude diante da vida e da morte. No poema Passagem, a poeta medita sobre as travessias e trajetórias comuns a todos os homens. Afinal, qual é o ser que vive livre de dores e entraves?

 

Atravessar o mar/ a vela, a nado./ Atravessar a terra/ a pé, de carro./ Atravessar a cor/ às cegas, em claro./ Atravessar a dor/ a ópio, a espasmos./ Atravessar o entrave/ a treva, a carne./ Atravessar o ser./ Dar na outra margem (CABRAL, 2007, p. 18).


                Pela ordem cronológica, a autora de Alameda foi a segunda na poesia amazonense, vindo depois de Violeta Branca, entretanto, pela importância, pelo volume do corpus literário, pela fortuna crítica e pelo reconhecimento dentro e fora do circuito literário local, Astrid Cabral continua a primeira. Sua voz se ergue e se mantém audível em meio a tantas outras que compuseram e compõem este cenário. Uma voz que começou pequena, mas se tornou grande e, em sua grandeza, se mostra infinita, ainda que, nela, se possam vislumbrar os limites da existência: "Amigos, quando eu morrer/ não comprem ramos de flores/ para mascarar o túmulo./ Por que o corte dos caules/ se a morte já me corta?/ Que eu fique em diálogo mudo/ com as raízes do mundo." (CABRAL, 2007, p. 22, Pedido). Mesmo na morte, o diálogo. Nunca o emudecimento, jamais o silenciamento, pois a ele Astrid Cabral não se entrega. E o pedido torna-se um renascimento e uma esperança. A de que, mesmo quando for alcançada pelo fim inexorável de todo ser humano, continuará dialogando, falando, poetizando... "com as raízes do mundo." (CABRAL, 2007, p. 22, Pedido). Depois de Alameda, vieram Ponto de cruz, em 1979, e Torna-viagem, Zé Pirulito, Lição de Alice e Visgo da terra, na década de 80. Depois, na década de 90, Rês desgarrada, De déu em déu e Intramuros. Já no século XXI, publicou Rasos d'água, Jaula, Ante-sala, Antologia pessoal, 50 poemas escolhidos pelo autor, Doigts dans l'eau e Cage, poesias traduzidas. Um corpus literário volumoso que, segundo a própria autora, se construiu "atravessando fases de intensa fecundidade e grandes intervalos de silêncio." (in LEÃO, 2012, p. 161). Uma trajetória literária que tem sido fonte de inspiração para muitas outras mulheres escritoras, cujas três publicações poéticas na década de oitenta colaboraram para fazer desse período um rico celeiro da lírica feminina amazonense, assunto que será abordado no próximo capítulo. Mas foi com Ponto de Cruz, dezesseis anos depois de Alameda, que Cabral se fez conhecer poeta. E é sobre essa obra, marco inicial da escrita poética em versos de Astrid Cabral, que me debruço, buscando, com minha voz e a partir das minhas percepções, desvelar sentidos que enriqueçam esta pesquisa. 2.1.1 Ponto de Cruz Considerada pela autora como "obra sem unidade", Ponto de cruz revela os primeiros matizes da poesia de Astrid Cabral, um ano antes do início da década de oitenta, antecedendo, mais uma vez, um período fecundo de publicações poéticas de autoria feminina. "Em Ponto de cruz, excluindo-se os já mencionados poemas de cunho regional ou do cotidiano urbano, predominam as composições de matriz amoroso-erótica e os de considerações de natureza filosófica." (CABRAL in LEÃO, 2012, p. 162). Como sugere o título da obra, cada poema, independente, se encaixa numa tessitura delicada, paciente e ampla de possibilidades criativas, composta por imagens, cores e efeitos.

                Como explica Bosi (2000), cada texto, usando os mecanismos internos de constituição da expressão poética, apresenta uma imagem, que me sugere hipóteses semânticas, captadas, formadas e constituídas pelos prazeres, afetos e experiências pessoais. Vejamos alguns exemplos, a começar com o poema que dá nome ao livro:


Lá fui eu ao armazém
comprar açúcar e mel.
Voltei com um quilo de sal
na boca o gosto do desgosto
lágrimas no rosto embutidas.
No balcão ao pedir vinho
vinagre me foi servido,
queria um maço de fogos
chuvas de prata e estrelas
para comemorar a noite
porém só havia velas
com que imitar o dia.
Lá fui eu ao armarinho
(tangida por que ventos
por que pérfidas sereias?)
comprar um dedal de amor.
Voltei com este coração
são sebastião de alfinetes.
O peito? retrós entaniçado
por mil linhas de aflição
euzinha toda por dentro
que nem pano em bastidor:
bico de agulha finoferoz
sobe-desce-sobe bordando
minha vida em ponto de cruz.
(CABRAL, 1979, p.26)

 

 

                No poema Ponto de Cruz, convergem duas linguagens, uma material e outra simbólica, tecendo uma rede de significados, como revela Bosi (2000, p. 131): "Mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de homem de hoje entre homens de hoje, ele o faz [...] de um modo que não é o do senso comum [...]". No armazém, a compra cotidiana de objetos utilitários, necessários à materialidade da vida com suas urgências e necessidades: açúcar, mel, sal, vinagre, maço de fogos, vela. No armarinho, a compra de enfeites e objetos de sonhos: alfinetes e dedal de amor. Dessa forma, Cabral entrelaça o coloquial e o cotidiano com o intelectual e o filosófico.

          Os versos mostram ainda a desilusão por meio do contraste entre o que se pede (açúcar, mel, vinho, maço de fogos, dedal de amor), e o que se recebe da vida (sal, vinagre, vela, desgosto, lágrimas, coração são sebastião de alfinetes). Numa concepção metafísica sobre a natureza do cosmos e do destino humano, uma mão invisível manuseia a agulha fino

feroz que vai furando e tecendo com mil linhas de aflição a existência, aqui comparada ao pano preso no bastidor à espera das agulhadas que formarão cada momento de dor ou delícia. Outros poemas de Ponto de cruz carregam o mesmo tom sombrio e pesado na construção da imagem poética. No poema que segue, as lembranças são marcadas pela tristeza.

 

 

Gire o carrossel dos dias
no vasto eixo do mundo.
No fundo continuamos criança
pois a distância é pequena
dentro da eternidade imensa

Gire o carrossel dos dias
afugentando sombrias visões.
Reverdecerão os ramos mutilados
sob o pranto de outras chuvas.
Novas aves romperão dos ovos
Contra o cemitério das penas.

Gire o carrossel dos dias
Trazendo novas miragens.
Nas nascentes das pálpebras
sequem-se os olhos d'água
pois a alma pede brinquedo
com medo de estáticas mágoas!
(CABRAL, 1979, p.46)

 

         A autora dá ao lirismo um tom nostálgico. Mais uma vez, há mistura de contrastes para criar o efeito desejado, repleto de melancolia e tristeza, evocadas pelas lembranças. No mesmo verso, palavras de sentidos opostos como pequena/imensa, sombrias/reverdecerão, romperão dos ovos/cemitério das penas criam as antíteses com as quais Cabral contrapõe desejo e realidade, passado, presente e futuro. Enquanto o carrossel remete ao desejo pelo encantamento, pela brincadeira, pela leveza e pelo colorido da vida (a alma pede brinquedo), o passado relembrado traz mágoas e pesar. Este, enquanto gira, faz sempre o mesmo percurso, gira mas não sai do lugar, provando eternas repetições. Como se a vida se movimentasse mas voltasse sempre ao mesmo ponto. O próximo poema é Água doce.

 

A água do rio é doce.
Carece de sal, carece de onda.
A água do rio carece
da vândala violência do mar.
A água do rio é mansa
sem a ameaça constante das vagas
sem a baba de espumas brabas.
A água do rio é mansa mas também se zanga.
Tem banzeiro, enchente
correnteza e repiquete.
Pressa de corredeira
sobressalto de cachoeira
traição de rodamoinho.
A água do rio é mansa
corre em leito estreito.
Mas também transborda e inunda
também é vasta, também é funda
também arrasta, também mata.
Afoga quem não sabe nadar.
Enrola quem não sabe remar.
A água do rio é doce
mas também sabe lutar
A água doce na pororoca
enfrenta e afronta o mar.
Filha de olho d'água e de chuva
neta de neve e de nuvem
a água doce é pura
mas também se mistura.
Tem água cor de café
tem água cor de cajá
tem água cor de garapa
tem água de guaraná.
A água doce do rio
não tem baleia nem tubarão
tem jacaré candiru piranha
puraquê e não sei mais o quê.
A água doce não é tão doce.
Antes fosse.

(CABRAL, 1979, pp. 96-7)

 

         O texto poético remete ao lugar de origem, ao espaço amazônico, trazendo de volta as lembranças da terra natal, com suas paisagens peculiares, entrecortadas de rios e igarapés, formando um mosaico de cores singulares: cor de café, de cajá, de garapa e de guaraná. O universo telúrico aparece. O rio mais uma vez transborda, evocando a simbologia que, segundo Lexikon (1990, p. 172), representa: "A fluidez faz dele o símbolo do tempo e da transitoriedade, mas também da constante renovação." Entretanto, ao mesmo tempo em que vai pintando um cenário aparentemente calmo (Carece de sal, carece de onda./ A água do rio carece/ da vândala violência do mar./ A água do rio é mansa/ sem a ameaça constante das vagas/ sem a baba de espumas brabas.), o poema também revela a agressividade escondida do lugar (A água do rio é mansa/ mas também se zanga.). Com essa revelação, genialmente, Astrid Cabral encerra o poema: "A água doce não é tão doce./ Antes fosse." É como se a autora alertasse aos desavisados ou ingênuos acerca dos elementos desconhecidos dos rios amazônicos, para assim descrever que também aqui há força, há mistérios e que a aparente placidez das águas esconde surpresas: banzeiro, enchente, correnteza, repiquete, corredeira, cachoeira, rodamoinho, transborda, inunda, é vasta, é funda, arrasta, mata, afoga quem não sabe nadar, enrola quem não sabe remar, tem jacaré, candiru, piranha, puraquê e não sei mais o quê.

         Por outro lado, ao que me parece, o poema também revela um espaço abstrato de subjetividade, dessa luta para se firmar longe de casa, para encontrar seu espaço de permanência. Vejo aqui uma metáfora conceptual do ser. Criada por George Lakoff e Mark Johnson, o conceito de metáfora conceptual rompe com a concepção clássica, mudando o locus da metáfora da linguagem para o pensamento. Além disso, leva a metáfora para dentro da vida cotidiana e do sistema conceptual das sociedades humanas. Para Lakoff e Johnson (2002), as relações metafóricas estão presentes em todos os aspectos da vida, gerando experiências traduzidas em forma de metáforas, não sendo mais apenas uma questão de linguagem poética, intencionalmente produzida como recurso linguístico, mas de um instrumento de compreensão de verdades abstratas, a fim de explicar o mundo.

Em todos os aspectos da vida [...] definimos nossa realidade em termos de metáforas e então começamos a agir com base nelas. Fazemos inferências, fixamos objetivos, estabelecemos compromissos e executamos planos, tudo na base da estruturação consciente ou inconsciente de nossa experiência por meio de metáforas" (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p. 260).

A metáfora conceptual, portanto, sai do plano linguístico para o plano da cultura, estabelecendo os parâmetros das relações do falante com o mundo que o cerca, trazendo para a metáfora uma relação de significados mais profundos e não meramente comparativos e simbólicos. Assim, ao escrever que "A água do rio é doce/ mas também sabe lutar./ A água doce na pororoca/ enfrenta e afronta o mar.", Cabral traz à tona a imagem da Amazônia como uma arena e do rio como uma pessoa. A expressão metafórica, água doce, personifica o rio e expressa o conceito do ser amazônico e, consequentemente, de si mesma como lutadores dessa arena, que enfrentam e afrontam quem tentar lhes impedir o caminho, afinal "que experiência calada no sujeito terá suscitado esta e não aquela imagem metafórica?" (BOSI, 2000, p.14).

Quanto ao aspecto formal dos textos, ainda que inaugurados dentro da liberdade dos padrões estéticos modernistas, é importante destacar que não são feitos ao acaso, sem preocupações com a linguagem e com o uso de expressivos recursos poéticos. Mais uma vez, na construção de sua arte, Astrid Cabral subverte o esperado e aproxima opostos, fazendo da "interação de sons, imagens, tom expressivo e perspectiva um processo simbólico delicado, flexível, polifônico, ora tradicional, ora inovador, numa palavra, não mecânico." (Ibid, pp.11- 2).

Confesso inata rebeldia diante das formas fixas, certa impaciência com a disciplina. [...] Por outro lado, embora as formas fixas clássicas só eventualmente tenham sido cultivadas por mim, sobretudo na maturidade, não posso negar o constante exercício de um rigor fora das severas convenções, a sempre cuidadosa atenção com os recursos rítmicos, melódicos e imagéticos do verso, isso desde que me aventurei pelo difícil e prazeroso ofício das letras (CABRAL in LEÃO, 2012, p. 166). Finalizemos essa breve análise com o poema O fogo, contrapondo sua imagem poética com a imagem construída nos três poemas anteriores: enquanto o fogo é uma imagem pujante da vida, que arde, que crepita, que incendeia, nos demais poemas, as imagens da alegria e da vida são desmanchadas. Neles, a autora usa palavras de carga semântica que constroem uma visão negativa e frustrante da existência: é a agulha fino feroz que tece a vida em ponto de cruz, são as sombrias visões do carrossel das lembranças e a traição inesperada, mas certa, da calma água doce.

         Abrindo a obra em questão, o poema O fogo revela o lado erótico e sensual da lírica de Astrid Cabral. Seus quatorze versos constroem a imagem da volúpia humana como uma experiência ritual, que se repete ao longo do tempo, daí a ancestralidade, o primitivo, e, ao mesmo tempo em que eleva essa imagem, mostra o que isso representa – a construção da própria vida: Juntos urdimos a noite/ e juntos acendemos o dia. Encontra-se aqui a liberdade primitiva e cheia de fúria dos sexos vivos de animais sem coleira, expressa em versos livres, o que, para Bosi (2000, p. 90), é uma formação artística renovada, que segue as "trilhas da música e da pintura", reinventando "modos arcaicos ou primitivos de expressão".

 

Juntos urdimos a noite
mais seu manto de trevas
quando as paredes recuam
discretas em horizontes
de além-cama e num espaço
de altiplano rolamos
nossos corpos bravios
de animais sem coleira
e juntos acendemos o dia
em cachoeiras de luz
com as centelhas que nós
seres primitivos forjamos
com a pedra lascada
dos sexos vivos.
(CABRAL, 1979, p.15)

 

         Os poemas de Astrid Cabral retomam, assim, a liberdade da poesia arcaica, na qual o ritmo realça a linguagem oral, não de modo descuidado ou espontâneo, mas como resultado de escolhas cuidadosamente trabalhadas, revelando a intencionalidade do verso livre contemporâneo. Embora livres, predominam nos versos do poema O fogo certas medidas de seis e sete sílabas poéticas, com a presença de uma rima interna nos versos doze e quatorze do poema, entre as palavras primitivos – vivos.

         Acentuam-se ainda, como recursos expressivos dessa estrutura poemática tão bem construída, os jogos de contrastes – noite/ dia, trevas/ luz –, que promovem e marcam no texto e na construção de sentido o efeito dualístico das relações humanas. A imagem comparativa entre a fricção dos corpos e as pedras em atrito, esfregadas, produzindo as faíscas que dão origem ao fogo, título do poema, revelam a grande maestria da poeta no uso das palavras e nas relações metafóricas.

 

                 Esse uso imagético da produção de calor, faíscas e labaredas remete-nos ao mito de Prometeu e Pandora18 e à origem do fogo que, sendo negado por Zeus aos seres humanos, causa-lhes inúmeros problemas, pois é com o fogo que o homem atende às suas necessidades básicas de aquecer-se do frio e cozinhar seus alimentos. Ao enviar Pandora, a primeira ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

18 - O Dicionário da mitologia grega e romana (GRIMAL, 2010) assim descreve o mito: Pandora, cujo nome significa todos os dons foi, com efeito, adornada por Hefesto e Atena, segundo ordens de Zeus, com todos os dons, à imagem dos imortais. A intenção de Zeus era enviar um castigo à raça humana, após o ultraje cometido por Prometeu, que roubara o fogo divino. Assim, o rei dos deuses enviou Pandora a Epimeteu, irmão de Prometeu que [...] decidiu aceitá-la e tomá-la como sua esposa [...]. Pandora transportara consigo um pote [...], de onde saíram todos os males que se espalharam, imediatamente, sobre a terra. No fundo do pote restou, unicamente, a esperança, a fim de reconfortar o gênero humano

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mulher, à terra, Zeus condiciona a humanidade a essas duas forças essenciais para a existência humana: fogo e sexo, a que Cabral se refere no poema em análise.

                 A mulher é castigo. Ao mesmo tempo, representa o bem e a desgraça, pois trouxe consigo, ao ser enviada à terra, todos os males do mundo mas também a força para enfrenta-los: a esperança. O fogo, entretanto, é prêmio. Carrega a perspectiva da elevação do homem, pois era, antes, um elemento pertencente apenas aos deuses. Como elemento simbólico, traduz a essência da elevação do ser pela inteligência, da força que transforma, que subverte e que gera vida mas que, assim como a mulher, se apresenta dualístico, pois, se não controlado, consome, devasta, transforma em cinzas o que está ao seu redor. Ambos, forças primitivas que personificam necessidades vitais ao gênero humano. Que trazem, simultaneamente, em si, a força da vida e da destruição, que se expressam na dualidade do jogo amoroso do poema e que revelam a força criadora de urdir a noite e acender o dia.

 

 

[As referências bibliográficas estão na parte final do livro, referentes a todos os capítulos.] 


 

 

 
 
 
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