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AS VOZES UNIVERSAIS DE SCHMIDT1*

 

                                              

Gilberto Mendonça Teles

 

 

Texto extraído de TELES, Gilberto Mendonça Teles. A Ficção da Página. Seleção de ensaios sobre a Literatura Brasileira. Curitiba:  Appris editora,  2020.   P. 93-109.   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

        Num capítulo de La Pensée Sauvage, de 1962, Lévi-Strauss retoma o termo "quente" que McLuhan pouco tempo antes havia empregado num dos capítulos de Understanding Media. O antropólogo francês fala em cro­nologias "quentes" para designar as de épocas de variados eventos, quando os fatos se acumulam e se atropelam na configuração do contexto cultural.

        Pode-se também dizer que há datas "quentes" e "frias" numa história literária: as primeiras se situam na esfera da "alta definição" e caracteri­zam bem os diferentes acontecimentos; e as segundas, em zonas de "baixa definição", costumam levar o estudioso a ver navios... Para o antropólogo francês, as datas "representam aquilo sem o que a própria História desapa­receria". Elas ajudam a estabelecer uma ordem, digamos, horizontal, e se mostram de perfil, verticalmente, como números cardinais, auxiliando a leitura das outras séries culturais. E quando se dá a superposição de datas num mesmo ano, tem-se algo maior, uma arquidata, um símbolo de grande potencialidade na exploração da arqueologia histórica.

        O ano de 1928 é na literatura brasileira uma dessas datas realmente "quentes": nela, a série literária (poesia, conto, romance, crítica) e as não literárias (artística, histórica, sociológica, linguística, política e econômica) se encontram num perfeito sentido de sincronização, permitindo ao estudioso observar de perto o diálogo dos diversos discursos entre si e com o lugar social de sua produção. Nesse ano, o processo de criação de uma litera­tura nova, iniciado em 1922, atinge o seu máximo rendimento no sistema que se vai impondo, primeiro com a preocupação de "destruir" o sistema tradicional, depois pela coexistência dos dois sistemas e, finalmente, pela interação de um sobre o outro, do novo sobre o velho e deste sobre aquele.

        As convergências na direção de 1928 surgem a partir da Semana de Arte Moderna, com a publicação de Paulicéia Desvairada, e adquirem aceleração a partir de 1925, quando Mário de Andrade publica a Escrava que não é Isaura e seis escritores (dois de São Paulo, dois de Minas e dois do Rio) começam a escrever em A Noite, no Rio, os artigos e poe­mas de "O Mês Modernista". Mário rejeitou a denominação de "O Mês Futurista" proposta pelo jornal e, na época, aplicada indistintamente aos renovadores, ajudando assim a consolidar o nome do modernismo. Vários livros novos se publicam em 1926 e 1927, mas é em 1928 que se verifica o ponto de confluência das mais importantes publicações dos modernistas e, também, dos autores tradicionais. O moderno dialogava agora com o tradicional, misturava-se com ele, incorporava sem preconceito às suas técnicas e renovava os seus temas e linguagem. O modernismo se ia fazendo humanista, criando e conservando, fazendo o novo sair de dentro do velho, como na "Carta" que o Mário de Andrade [Novo] escreve ao Mário de Andrade [Velho], no início do "Prefácio Interessantíssimo", na Paulicéia Desvairada.

        Coincidência ou amadurecimento cultural, o certo é que em 1928 os dois discursos exibem as suas forças, com bom predomínio dos moder­nos. Se apareceram a 13a edição das Poesias, de Olavo Bilac; a 8a edição de Poemas e Canções, de Vicente de Carvalho; a 4a do Eu, de Augusto dos Anjos; a 2a de Luz Mediterrânea, de Raul de Leoni, além de um romance de Coelho Neto (Fogo-Fátuo) e outro de Afrânio Peixoto (Uma Mulher como as Outras), apareceu também uma série de obras modernistas na poesia, no romance, no conto, na crítica e na teoria literária, uma "teoria" bra­sileira, como o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, ou como nos editoriais e manifestos de periódicos como a Revista de Antropofagia e Movimento, de São Paulo; Elétrica, de Itanhandu; e Arco-e-Flecha, de Salvador. Mas a grande concorrência foi mesmo das obras modernistas, a começar com o ensaio de Paulo Prado (Retrato do Brasil) e com a segunda série dos Estudos de Tristão de Athayde, passando aos romances (MacunaímaeA Bagaceira), aos contos de Alcântara Machado (Laranja da China) e à poesia de Menotti del Picchia (República dos Estados Unidos do Brasil), de Cassiano Ricardo (Martim Cererê), de Augusto Meyer (Giraluz) e, afinal, ao Canto do Brasileiro, de Augusto Frederico Schmidt, além dos famosos poemas "No meio do caminho", de Drummond, e "Essa Nega Fulô", de Jorge de Lima. Enfim, um ano em que a geração que fez a Semana de Arte Moderna expõe o melhor de sua liberdade criadora; e em que os novos escritores, beneficiados pelas aberturas modernistas, manifestam outras possibilidades de novos projetos literários.

 

 

        1. A "Longa Série Inútil"

 

        O último poema do último livro de Augusto Frederico Schmidt (1906-1965) se denomina mesmo "O último poema", tal como Manuel Bandeira havia denominado o último poema de Libertinagem, em 1930. De acordo com o ritmo repetitivo que atravessa toda a sua obra poética, assim começa:

 

Chegará o dia do último poema
E o último poema sairá para o tempo tranquilo e natural,

Sem nenhuma melancolia, como se fosse o

primeiro nascido
Do espírito inquieto
.

 

E logo a seguir dirá que o poema "será simples e modesto/ Como se fosse um dos muitos da longa série inútil". Estão aí algumas imagens ou anti-imagens (dado seu teor coloquial, quase prosaico) que podem dar ao crítico uma das possíveis direções de leitura: a de um sentido absoluto que, fragmentando-se nos inúmeros poemas, conserva a sua identidade ao longo de toda a obra do poeta. Uma obra que, já no fim da vida, ele vê disfemicamente como uma "longa série inútil" proveniente de uma "força perdida". Impossível ler a sua poesia sem a consciência do sentido absoluto dessa "longa série", dessa totalidade humanística que de poema a poema e de livro a livro vai reintegrando o passado no presente, o espírito na matéria e a linguagem nas suas formas primitivas de enunciação. Daí a ilusão artística de que tudo está saindo "tranquilo e natural", como se o último poema estivesse já contido no primeiro e como se fossem todos um só poema, um discurso cujo princípio já estivesse no fim, como o queria Poe ou como no conhecido verso de T. S. Eliot.

        Isso explica a dificuldade em submeter o seu discurso poético a fases sucessivas durante os trinta e tantos anos de sua produção literária. Principalmente se se leva em conta apenas o plano do conteúdo, em que os temas, praticamente invariáveis, vão-se repetindo e se adensando pela força mesma da repetição. A técnica da repetição atinge, entretanto, todos os planos e níveis: atua no plano da expressão, indo da palavra à frase; atua no plano retórico e artístico, por meio das mais diversas figuras (de palavras, de sintaxe e de pensamento), e chega gradativamente a atuar na construção do verso, da estrofe, de todo o poema e, pelo visto, de todo o livro, de todos os livros de poemas de Schmidt. Nada melhor, portanto, que a metáfora do caleidoscópio para a representação de sua obra poética: todas as mudanças não passam de aparências: no fundo, subjaz uma imagem arquetípica e fundadora que não muda e de que o poeta está sempre tentando dar uma nova versão.

        Mesmo assim, é possível ver a sua poesia em dois momentos sucessivos: um saindo de dentro do outro, não para contradizê-lo ou modificá-lo, mas para aperfeiçoá-lo à força de repetir os seus temas e de procurar dizê-los mais economicamente, inclusive pelo uso constante do soneto, concebido da maneira mais liberal possível: com belíssimos versos decassílabos misturados com longos versos livres ou como no "Soneto do patriarca", de Mar Desconhecido, onde versos alexandrinos se alternam com versos de 13, 14 e 15 sílabas para terminar numa chave de ouro estranha, de 17 sílabas, à maneira dos longos hexâmetros greco-latinos:

 


        Dentro em pouco virá a hora calma da morte;
E sinto a mão de Deus que se estende a colher-me,
Para que eu seja apenas uma espiga a mais na seara
eterna.

 

        No primeiro momento, se dá a formação da personalidade do poeta, a definição de seus temas e a fixação de sua linguagem numa estilística aparentemente dominada pela frouxidão, pelo abuso da repetição, enfim, por aqueles "32 cacoetes que fazem o material da poesia dele" e que, segundo Mário de Andrade, parecendo feito para desvalorizá-lo, "antes o valoriza". Aí se incluem os seguintes livros: Canto do Brasileiro (1928), Cantos do Liberto (1928), Navio Perdido (1929), Pássaro Cego (1930), Desaparição da Amada (1931), Canto da Noite (1934) e Estrela Solitária (1940).

        No segundo, se dá a transformação ou, melhor, se verifica o esforço por mudar, se não as técnicas, pelo menos o sentido formal do poema, como nos 43 sonetos iniciais de Mar Desconhecido (1942), na linguagem comedida de Fonte Invisível (1949), na alegoria de Aurora Lívida (1958), na contenção formal de Babilônia (1959) e na alta formalização de O Caminho do Frio (1964). Mas os grandes temas continuaram nessa fase e em pequenos livros como Mensagem aos Poetas Novos (1950), Ladainha do Mar (1951), Moreli (1953) e Os Reis (1953), que prolongam tardiamente a concepção poética da primeira fase. Como se vê, uma longa série de livros de poemas que Schmidt deu à literatura brasileira, inaugurando entre nós e entre os modernos um novo humanismo poético: aquele que retira a sua força e sentido da pureza, da ingenuidade e do individualismo, tratando a linguagem literária como se ela fosse um meio de oração, de comunhão com o cosmo e com Deus, como se por ela passassem os desejos mais íntimos e mais obscuros da vida humana. Por isso, a sua linguagem "quebrou" o espelho do realismo na poesia brasileira: a sua paisagem era outra, a de dentro, já transformada em visão pessoal ou já literarizada pela tradição. Nele, como no irlandês W. B. Yeats, a alma se converte em sua própria delação, parteira de si mesma, a única atividade, a fim de que o espelho se torne lâmpada: "that soul must become its own betrayer, its own deliverer, the one activity, the mirror tum lamp". Com isso, a "longa série" de seus poemas — toda a sua obra — abria novos horizontes na moderna poesia brasileira, dando-lhe, nas palavras de Mário de Andrade, "aquela poderosa intuição do trágico".

 

 

2. "A Grande Voz" na Poesia

 

        A estreia de Augusto Frederico Schmidt constituiu um novo signo na produção poética do modernismo brasileiro. Por um lado, descortinava uma nova visão da realidade literária, fazendo-a mais ampla e universalizante; e, por outro, fechava, de certo modo, o nacionalismo extremado da primeira geração modernista. Tal como Mário de Andrade, que fundou o verso novo sobre o ritmo tradicional do decassílabo ("Sou um tupi tangendo um alaúde") e até do alexandrino ("Galicismo a berrar nos desertos da América"), Schmidt reativa a redondilha menor e sobre ela edifica o ritmo fundamental de sua linguagem poética, aquele que irá ao longo de sua obra contrapontear com o decassílabo e com o verso-livre coloquial e, pela natureza de sua construção, recitativo, declamatório e, por isso mesmo, sálmico e literariamente religioso.

        A crítica, atordoada, não conseguiu ver na sua obra nem marcas do modernismo nem vestígios da estética parnasiano-simbolista. O jeito era situá-lo num romantismo tardio e... modernista. E o que fazem Tristão de Athayde e Mário de Andrade. No entanto, observado na perspectiva de hoje, o seu Canto do Brasileiro trazia algo de diferente dentro das possibilidades franqueadas pela pregação modernista. Em vez do coloquialismo, ostensivamente linguístico, Schmidt optou pelo vulgarismo da expressão, quer dizer, procurou a dicção literária mais próxima da linguagem comum, a que, por tradicional, era mais conhecida do leitor. Nesse sentido, seu possível projeto poético começava a se inscrever na tradição humanista da poesia ocidental.

        Como escreve Hugo Friedrich, o homem europeu "é um ser já realizado em sua história espiritual e por isso é um ser oculto nela". A história e a tradição cultural não são vistas como um peso, como algo fora do tempo, mas como "permanente ingrediente" e como pátria, de que a frase de Fernando Pessoa ("Minha Pátria é a Língua Portuguesa") é um belo exemplo, ainda que Portugal se sinta às vezes em dúvida se está ou não no continente europeu... Para o estudioso alemão, sempre que a cultura europeia dá um passo adiante, esse passo é também um passo atrás, aliando criação e conservação - "o proto-ritmo da vida cultural européia". Daí porque, para ele, todos os estilos culturais da Europa "são sempre novas interpretações de algo antigo, são recriações, autoformações do que já está formado".

        Ora, a poesia de Schmidt desde o início revelou a sua face humanista, elegendo temas transcendentais e ritmos que pareciam destacar-se do cosmo, real ou literário e, mais tarde, também onírico e puramente subjetivo. A sua função parecia ser — e sempre foi — a de um exercício espiritual destinado a dar consciência a uma vaga matéria inconsciente. Nela (e a expressão é de outro livro de Hugo Friedrich), em vez de "festa do intelecto", na linha de Baudelaire, Mallarmé e Valéry (ou na do nosso João Cabral de Melo Neto), o que havia era a "derrocada do intelecto", coincidindo, aliás, com o momento de propagação do surrealismo na América do Sul. Se a sua poesia não tem nada do engajamento político-social pregado pelo segundo manifesto de André Breton, se não era do agrado do poeta trabalhar os temas mórbidos e escabrosos da poética surrealista, contudo é facilmente perceptível o fascínio pela musicalidade encantatória do poema, conseguida não pelo jogo vocabular, mas pela sintaxe articulada de maneira repetitiva para obter efeitos mágicos, de oração e profecia, como se a linguagem poética fosse mesmo o instrumento de ligação do natural com o sobrenatural.

        Explica-se, por aí, a adesão de Schmidt a alguns princípios da "poesia pura", pregada por Henri Brémond em 1926 e, no Brasil, documentada na concepção dos neossimbolistas, do grupo da revista Festa e na poesia de Jorge de Lima, como ele mesmo o declarou no seu "Auto-retrato intelectual". Mas Schmidt se antecipa a Jorge de Lima na prática da "poesia pura", concebendo-a como revelação, como dom, linguagem capaz de ligar ou religar, religiosamente, o plano do real empírico e pouco documentado na sua obra ao do sobrerreal dos universais, dos temas transcendentais, numa metafísica que também tem o seu lugar no super —  ou no sub — espaço do surrealismo. E explica o fato de se ter valido de elementos de retórica tradicional, uma vez que os instrumentos novos, postos em uso pelo modernismo, ainda não estavam afiados para a expressão de todos os sentidos. Assim, no meio da maior onda modernista contra a métrica, o Canto do brasileiro, com seus 17 poemas (contando-os a partir das maiúsculas capitulares), aparece como uma coisa estranha, estruturado quase inteiramente sobre versos pentassi-lábicos, às vezes visíveis, como

 

Na beira da estrada
Conversam baixinho
Conversam conversas
Ninguém saberá.

 

        Mas comumente "invisíveis", disfarçados em versos longos, de 11 sílabas, quando lidos inteiramente, pois invariavelmente construídos com dois segmentos melódicos de cinco sílabas cada um:

 

E a lua chorava seu choro macio

E a lua deitava seu óleo oloroso

Na pele tostada das lindas mulheres.

E as cobras se erguiam nas matas escuras

Sagradas e lindas — bandeiras estranhas

Mil cores sombrias corriam no chão.

 

        E por aí vai todo o livro e, como já disse, toda a sua poesia, que nunca abandonou o esquema rítmico inicial, e fundador. Em 1928, o poeta não era ainda capaz de criar o seu ritmo novo, nem sabia bem trabalhar o verso livre; nem era inteiramente tradicional, romântico ou não, nem totalmente moderno, pelo menos dentro da concepção modernista da época. Se o lado significante do verso retoma o ritmo tradicional da redondilha menor, de que Gonçalves Dias soube tirar belos efeitos sugestivos para a expressão do índio, o do significado se vale da melopeia e aponta para um penumbrismo estranho à linguagem que os modernistas estavam impondo. Um penumbrismo possivelmente à Ribeiro Couto e que em Schmidt se mantém à custa de elementos retóricos, como as figuras de repetição que, ainda tímidas na estreia, vão-se ampliando e ganhando consistência de livro para livro. E tornam-se, no conjunto de sua obra, o elemento mais evidente na construção dos poemas, chegando mesmo a ser responsável pela possível monotonia e pela frouxidão de muitos poemas longos. Ao contrário de Carlos Drummond de Andrade, cujo processo de repetição estudamos em a Estilística da Repetição, de 1970, mostrando a sua quase obsessão com a epizeuxe (a repetição de palavras), Augusto Frederico Schmidt leva a repetição para além da palavra, colocando-a no nível do verso que passa a funcionar como um refrão ao longo do poema. Aliás, o próprio Carlos Drummond de Andrade escreve, de maneira exemplar, que Schmidt, "pelo uso do refrão como elemento do discurso e não como seu complemento, revelava a angustiosa necessidade de fixar, na insistência e reiteração do efeito, o que por natureza se dissolve no segundo mesmo em que atinge a consciência". E acrescenta: "Ele visava mais longe do que a simples sensação literária. Buscava uma forma de eternização, trabalhando com os instru­mentos temporais da linguagem".

        O curioso, entretanto, é que os dois poemas de abertura e o de fecha­mento do Canto do Brasileiro fogem ao ritmo pentassilábico e são tecnica­mente modernos, parecendo feitos de propósito para justificar a época e o título do livro: era o ano "quente" do modernismo e o apogeu da nova ideologia nacionalista, tanto que, como reação, surge no ano seguinte o manifesto do verde-amarelismo ou da escola da Anta, o Nhengaçu Verde Amarelo, onde se lê, no final, que "Nosso nacionalismo é 'verdamarelo' e tupi".

        A partir de sua plataforma estética, Schmidt vai girando o seu calei­doscópio na tentativa de dizer cada vez melhor o seu fundo mítico, toda a ressonância literária que atuava na retomada dos temas e no "aperfei­çoamento" de uma linguagem que se comprazia em "refletir" um universo limitado e cada vez mais vago e obscuro. Os títulos dos livros desse pri­meiro momento (de 1928 a 1940) exprimem admiravelmente essa realidade imaterial e imprecisa. Se no Canto do Brasileiro o título parece apontar para uma realidade determinada, que sabemos não o ser, o livro seguinte, Cantos do Liberto, do mesmo ano e composto apenas de três cantos (12 páginas), já põe em evidência o sentido de libertação que se lê logo no início:

 

Houve uma cessação de realidade.

Abriram-se, então, amplos cenários, outros

Bem outros, bem maiores, mais profundos...

 

        Segue-se uma série de títulos como Navio Perdido, Pássaro Cego e Desa­parição da Amada, em que, nos dois primeiros, o adjetivo nega o substantivo (é navio, mas está perdido; é pássaro, mas está cego); e no último, a negação já vem dentro do próprio substantivo (é amada, mas está desaparecida). Canto da noite retoma a consciência inicial de que a poesia é uma forma de música vocal, de canto ou de vozes que inspiram e pronunciam o poema. Por isso, tem algo de oracular; é obscura e vem da noite. A linha metafórica continua em Estrela Solitária, onde a ideia de escuro está por trás de estrela, por sua vez adensada pela restrição do adjetivo.

        Nessa fase de formação e conformação de seu projeto poético, Schmidt procura representar o seu mundo, objetivo e subjetivo, a partir de associações semânticas, metafóricas e muitas vezes simbólicas, de suas percepções misturadas com recordações, criando assim uma substância poética que atrai o leitor para um presente que é, ao mesmo tempo, passado e futuro, uma vez que, segundo a pertinente observação de Bernardo Gersen, Schmidt "violenta o nosso instinto vital volvido para o futuro, repele o leitor para o passado". E acrescenta:]

 

Libertas da vontade utilitária, as nossas reminiscências rolam pelo plano inclinado da cisma sentimental, mistu-rando-se no caminho a destroços de imagens, a farrapos de representações relegadas ao sótão do inconsciente. E então as reminiscências longínquas afloram; deformadas e enriquecidas como no sonho; ao mesmo tempo familiares e desconhecidas.

 

        Essa ambiguidade de conteúdo se manifesta na mistura do coloquial com o literário e, retoricamente, na combinação de métrica e verso-livre, como se pode ver no poema inicial de Navio Perdido:

 

Agora, neste mesmo instante,

Nesta noite triste onde gritos cantam no silêncio vago,
No meio deste ambiente que me é tão familiar,
Sinto uma vontade enorme de partir.

 

        O segundo verso é composto de três pentassílabos e o terceiro de dois versos de sete sílabas; apenas o primeiro e o último podem ser considerados livres. Enfim, o tradicional se infiltra no meio do novo, como os decassílabos de segunda parte: "Um apito recorda longamente/O silêncio abafado desta noite"; ou como o alexandrino que remata todo o poema: "E que não deixará jamais de me chamar...". E entre os versos-livres, segmentos melódicos longos, que só não são lidos como prosa por causa da materialização e da presentificação do discurso na direção da poesia:

 

E são as paisagens humanas também dolorosas de igualdade, dolorosas de desinteresse e de monotonia.

 

        A intenção literária salva o verso: ele se vê sem os seus referentes concretos, reais, e vira objeto estético, valendo por si mesmo, pois, nas palavras de Roland Barthes a respeito de Kafka, "O ser da literatura não é mais que a sua técnica".

        Também a fase de transformação da poesia de Schmidt está marcada pelo jogo semântico dos títulos, como em Mar Desconhecido, Fonte Invisível, Aurora Lívida, O Caminho do Frio e mesmo Babilônia, onde o "adjetivo" se encontra oculto na própria substância mítico-religiosa do topónimo. Nos três primeiros, os adjetivos "negam" — e sublinham — o sentido absoluto do substantivo: é mar, mas não é o das geografias; é fonte, mas só pode ser vista (ou bebida, como a de Hipocrene) pelos poetas; e é aurora, mas é pálida como a cor de um morto. E em O Caminho do Frio, último livro do poeta, que o título se reveste de valor simbólico: inclina o leitor para o sentido literal e, ao mesmo tempo, o submerge numa atmosfera alegórica em que a morte e o sobrenatural se materializam e se presentificam no poema.

        E dessa ambivalência que se serve o poeta para a percepção do seu universo, deste ou daquele lado da irrealidade, como diria Manuel Bandeira. Ele vê, ouve, cheira, toca e degusta o real do seu imaginário. Na maioria das vezes, vê e ouve. Schmidt é dos que ouvem: a sua poesia, do primeiro ao último livro, está cheia de "vozes", da palavra "voz"/"vozes" ou de uma vertente semântica que mostra que a percepção está se dando por intermédio de um agente que fala: oráculo, demiurgo, Deus.

        No primeiro livro, "a voz chama ele" (sic), "Me chamam as vozes soturnas dos rios"; no segundo, se fala da "voz bondosa" de Deus e "Na voz das coisas da inocência". Em Navio Perdido, há "vozes amigas", "vozes chamando por mim", "voz do vazio" e muito verbo ouvir. Em Pássaro Cego, há "vozes tristes", repetições anafóricas de voz, como no poema "Oração"; "mil vozes", "tua voz". No poema-livro Desaparição da Amada, que retoma a redondilha menor do início ("A voz retomando de antigos lamentos"), se diz que "A voz do passado cantará por mim" e se fala muito de "silêncio" e "ruído". Em Canto da Noite, o verbo ouvir aparece logo no primeiro verso, falando-se na "grande voz da noite" e dizendo-se sinestesicamente "Eu vi a música da noite". O livro está repleto de "vozes numerosas", "todas as vozes", "voz dos anjos", "vozes rudes", "vozes arrastadas", "vozes do mar", dos galos e de fogueiras, sem se falar das vezes em que a palavra vem sem adjetivo, como no poema "Aparição da amada" com o primeiro verso afirmando que "No princípio foi a voz". Essa recorrência quase obsessiva com as vozes continua na Estrela Solitária, onde se registram "as roucas vozes marítimas!" "os sons de vozes" (e ruídos e choros), e a série anafórica do poema "Retrato do desconhecido", verdadeira ladainha:

 

Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida,

Voz de um homem perdido no mundo,

Voz de quem foi abandonado pelas esperanças,

Voz que não manda nunca,

Voz que não pergunta,

Voz que não chama,

Voz de obediência e de resposta,

Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas,

Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas.

Há vozes que aclaram o ser,

Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,

Vozes de sonho, de maldição e de doçura.

 

        Há como que um ritual litúrgico, de litania, tentando esgotar as possibilidades da palavra "voz" e criando no leitor a imagem de uma voz universal que se quer, ao mesmo tempo, transcendental e humana. A repetição cria o encantamento, situa o leitor numa musicalidade que, sendo da linguagem, parece estar chegando dos primeiros momentos da criação. No poema "Cantar!" volta a "Ver a voz", cita "A voz dos poetas perdidos no desconhecido", fala em "vozes claras", em "inesperadas vozes", em "vozes selvagens", "vozes de homens", "antigas vozes", além de dois poemas intitu¬lados "Voz" e "Vozes da Noite".

        Nos livros da segunda fase, continua a insistência em se falar de vozes. Em Mar Desconhecido, para citar apenas algumas, "as vozes de outros sangues" (portugueses), "voz da Estrela" e os poemas "Voz" ("Será que vem de algum misterioso recanto/Esta voz que estou ouvindo") e "Ouviremos a voz do outono..." além do poema "Canto do mistério de Natal", onde existe uma "voz misteriosa e criadora" e onde se repete que "No princípio era a Voz", agora com maiúscula. Em Fonte Invisível, o tema da voz comanda o primeiro poema, anota-se uma "escura voz", "O eco da voz de Deus", "antigas vozes", "voz vermelha", "voz úmida", "voz antiga" e muitas, muitas outras vozes e seus sinônimos. Em Aurora Lívida, encontram-se: vozes da poesia, "A voz cansada" e vozes que se silenciam. Em Babilônia, livro inteiramente de sonetos, na maioria decassilábicos, há "Voz de perdida irmã" e o Profeta fala com sua "voz tranquila". E em O Caminho do Frio, a "voz tem cheiro", é "lusíada", "ardente" e a musa Elzira está "Aberta a todas as vozes da Poesia". E um poema se denomina "A voz antiga".

        Essa estatística, que pode ser maçante ainda que não exatamente rigorosa, não quer mostrar somente a recorrência de um termo, a sua isotopia, a ideia fixa do poeta em relação a um tema, um grande tema, para usar aqui outra obsessão estilística de Schmidt, sobretudo nos livros do segundo momento, a partir de 1940, mas principalmente em Canto da Noite e Estrela Solitária: "os grandes livros", "a grande voz da noite", "as grandes palavras", "o grande navio", "grandes pássaros", "grande mar", "grandes poetas", "grande noite", "grande lobo", "grande bico", "grandes olhos divinos", "grandes árvores", "grandes lágrimas", "grandes soluços", "grande viagem", "A Grande Cabeça", "grandes culpas", "grandes esquecimentos", "grandes dores", "grandes ruídos", "grandes nós escuros", "grande noite", "grandes dias", "grande chuva", "grande hora" e "grandes vôos". Essa mania de poeta pôr o adjetivo grande anteposto ao substantivo tem muito a ver com a sua subjetividade e, por que não, com o seu próprio corpo e, no fundo, com o seu gosto pelos versos longos e pelos poemas compridos, muitas vezes realmente fastidiosos. Mas funciona também como recurso técnico para sensibilizar o leitor, levando-o no sentido da poesia como sopro divino, com dádiva de Deus. Por isso, o poema tem de encantar e a poesia é, por si mesma, pura e misteriosa e grande.

        Um dos recursos para se atingir a "poesia pura" era transformar a linguagem em magia musical, em litania, em enunciá-la bem, em pronunciá-la conforme o ouvido dos deuses, como queria Pãnini com os velhos textos sânscritos. Essa melopeia encantatória vem dos mais remotos tempos e atinge com Mallarmé a mais alta concepção, como se depreende da leitura de La Musique et les Lettres, de 1895. Para ele, "la Musique et les Lettres sont la face alternative ici élargie vers l'obscur". E daí que vem a teoria de Henri Brémond, para quem dentro da poesia há uma realidade misteriosa e a linguagem poética deve ser esse encantamento obscuro, que não depende do sentido e sim da musicalidade do verso. O poema é assim uma expressão que transcende as formas do discurso e não se deixa reduzir ao conheci-mento puramente racional. Ele provém de um ritmo que passa pelo mais íntimo do poema, repercute no cosmo cultural e toca, em última instância, o logos do Criador. Um ritmo que se faz musicalidade para revelar os estados inconscientes ainda não tocados pelo sentimento ou pela razão, um ritmo mágico e místico e, por isso mesmo, de prece. Uma concepção que tem muito a ver com a definição que Gonçalves Dias deu da Poesia no prólogo de seus Primeiros Cantos. No capítulo "Religion et Poésie", de Réflexions sur la Poésie, Paul Claudel diz que entre os socorros e os proveitos que a Religião traz à poesia está o louvor: "Leplus grand moteur de lapoésie, parce quelle est 1'expression du besoin le plus profond de lame". Louvor aqui significa prece, canto religioso. E, continua Claudel, "Personne ne chante seul. Même les étoiles du Ciei, lisons nous dans les Livres Saints, chantent ensemble."

 

 

3. A Voz do Poeta

 

        As concepções poéticas de Schmidt, reajuntadas ao longo de sua vasta produção, seguem o mesmo destino de seus temas e de sua linguagem: pouco de nacional, muito de universal; léxico simples e restrito, sem neologismos, sem invenção, sem estranhamento; temas que apontam para os universais da tradição literária: noite, vozes, mar, morte, mulher e amor; e um exercício retórico que se concentrou nas formas da repetição e numa simbologia até certo ponto vulgarizada. Só que o talento do poeta foi aprendendo a tirar de tudo isso uma melodia interior, schmidtidiana, própria dele, original. A tematização da linguagem literária foi também simples, repetitiva e religiosa.

        Não há nada explícito no primeiro livro; no segundo, já se fala em palavras e em "outra linguagem/que é bem preciso conhecer...", mas o poeta diz querer "almas novas", "coisas novas", "vida nova" para ser "inteiramente novo". Em Navio Perdido, a não ser a palavra beleza e a expressão "grande ritmo de esquecimento e equilíbrio" e o termo palavra, não há nada: o poeta está ainda sob o impulso de sua formação e adesão ao modernismo. Em Pássaro Cego, todavia, se lê no início que "Sinto que sou a forma, o lamento, a expressão" e que "Minha poesia é um pouco da queixa de homens errantes". No poema "Profecia", o conselho é para se afastar da poesia:

 

Deixa, pois, bem distante de ti toda a poesia:

Não te deixes embalar pela sua emoliente sedução,

A poesia enfraquece os corações e precisas ser forte.

 

        O poema pede ainda para abandonar "todas as seduções da beleza" e proclama que a poesia "é inútil". O outro lado de Schmidt, o do homem prático, futuro industrial, foi o beneficiário desses conselhos do homem-poeta. E, visto em 1930, realmente ele foi profético: um profeta em causa própria. Nesse livro, os temas metalinguísticos podem ser assim resumidos: "a solidão de um poeta", "os poetas nada têm deste mundo", o poeta tem coração diferente e "sempre ferido", a "necessidade da poesia", a poesia de alguém (não os poemas de), o poema "Adeus, lira", de feição bem romântica e mal escrito, falando-se em "poeta sincero e verdadeiro". Noutro poema, vai dizer que a poesia voltou a seu coração. Mas é na II parte dos "Sonetos" que ele diz alguma coisa teórica e realmente bela, que bate bem com a sua prática de poesia, com sonetos que começam com perfeito decassílabo e terminam com versos livres e longos:

 

Vontade de escrever. Vontade humilde de escrever, Escrever à toa, sem dizer nada. Escrever sem razão,
Para distrair talvez um desejo incompreensível de chorar.

 

        Em Desaparição da Amada, informa que ama a poesia. Em Canto da Noite, "com a sua dedicatória lapidar", na observação de Ledo Ivo ("A Yêdda para que a poesia/torne à sua origem"), não há muitas referências à linguagem ou à poesia: pede que as palavras sejam doces e graves, que te dirá "as grandes palavras", fala na "poesia mártir" e que "As mesmas palavras serão outras", compara o repouso da amada "como a poesia nos grandes poetas" e no poeta que olha pela vidraça. E tudo muito pobre no que diz respeito ao olhar do poeta sobre a poesia em geral ou sobre a sua própria poesia.

        Talvez seja Estrela Solitária o livro de maior número de referências à metalinguagem, mas é também um dos maiores de Schmidt. Logo no início, define o título do livro ao escrever: "Poesia — Estrela solitária no meu céu!". Nos demais, cita a poesia, diz que "A Beleza não morre", que está "Abrindo novos caminhos, ritmos desconhecidos!", que "A poesia está abandonada", que "A hora é da Poesia", e numa longa série anafórica, vai dizer que "Ser poeta é ter liberdade", a sua música, alegria e "abrir caminhos para / O fundo e escuro ma r/ Prisioneiro no coração". Escreve bucolicamente sobre “a mansa poesia dos caminhos", tem consciência da "mão que escreve estas linhas", verso que aponta logo para um verso de Drummond em Alguma Poesia; usa eufemismo (ou disfemismo) quando escreve: "Nestes pobres versos frágeis que não resistirão ao tumulto do tempo tão adverso". Existem termos como ritmo, harmonia, equilíbrio, palavras, poesia, poesia simples, expressão da beleza, musicalidade, forma e expressão. Pausa e Sutileza e um verso confessional: "Eu queria ser o poeta das coisas mais simples".

        Também em Mar Desconhecido há indicações como "Música, que se espalha nos meus versos", "Poesia" (com maiúscula), inspiração, "gosto dos clássicos e antigos", a "poesia distante do símbolo", "poesia de Natal", "esquiva Poesia", "poesia misteriosa" e poema que define a poesia em face da realidade ("Poesia: nos campos" etc). Diz num soneto sem título:


Quero ser pobre de expressão e anseios

E manejar o verso gentilmente
Dentro das leis e formas consagradas.

 

        E realmente o faz, manejando com simplicidade o verso decassílabo.

        Fonte Invisível é não só o livro mais volumoso de Schmidt, como é o que contém maior número de índices de transformação de seu discurso poético. Não tem muita coisa de metalinguagem, mas o que tem é bem diferente dos até agora mencionados. Está dedicado a

José Paulo Moreira da Fonseca e "à sua geração", isto é, a de 45. Schmidt paga tributo à linguagem e à economia verbal da poética de 45. Quase na abertura de seu livro, aparece uma "Ars poética" que não esconde certa ironia, não sei se à crítica da época (Alceu Amoroso Lima, por exemplo) ou se às duas gerações de 45: a do Rio e a de São Paulo. Vale a pena ver um trecho de sua única arte poética:

 

Enquanto procuravam conceituar a poesia
E velavam sua face
Com palavras perfeitas,

         /.../

Veio descendo a tarde
E uma doçura mortal
Envolveu a rua e o mundo.
No céu quase roxo,

 

 

 

 

 

Do noturno próximo
E, subitamente, sinos
Soluçaram.

 

        Vê-se que a linguagem agora é outra: os versos livres estão contidos, curtos, ainda que o processo anafórico continue. Noutro lugar, vai escrever de maneira sóbria e elegante que tem "Desejo de escrever um poema / Diferente. Um poema para respirar./ [...] / Um poema que não foi escrito e que florescia,/ Apenas, numa alma que Deus recolheu I Antes da frutificação". Diante da alegria, escreve que "E o dom do poema, / A misteriosa / Graça do Poeta, / Que vem de novo / Para salvar-me!" Noutro poema, registra a "luz da poesia" que chega "inesperadamente". Noutro, sintomaticamente denominado "A fuga impossível", escreve sem rodeios, autocriticamente: "Impossível fugir / Quando poeta, / Secas as fontes, / Vou-me repetindo". Diz que a poesia dorme no "Reino escuro". Em "Mensagem aos poetas novos", que considero parte de Fonte Invisível, o tópico é de que "A poesia é simples" e, portanto, nas entrelinhas do não dito, pede aos poetas novos que não sejam tão complicados... Em Os Reis (1953), por meio da metáfora, conceitua que o poema é um "outono de palavras", um "Espelho de confusão", um "Flagrante de agonias" e, afinal, "Coisa feita de verbo/Todavia frágil".

        Os três livros finais, fora das Poesias Completas publicadas pela José Olympio em 1956, apresentam pouca tematização da linguagem. Em Aurora Lívida, fala na "Raça que inventou a poesia", diz que a poesia o chama e lhe acena e se considera um "Poeta no exílio da poesia". Tanto que no livro seguinte, em Babiõnia, toda a conceituação do poema e da poesia está embutida na própria temática do exílio judaico, tão cantada pelos poetas, principalmente por Camões em "Sôbolos rios que vão". Em O Caminho do Frio, informa que "Só aspiro poesia. Poesia/E silêncio" e que "A luz da poesia é como a semente/Que na terra morre e logo apodrece,/E na vida renasce em flores e frutos". Num poema sobre "Ovale em Londres", o tema metalinguístico é o do sono como produtor da inspiração: "Depois que adormecias e o coro de tuas noivas começava a cantar,/ o anjo músico revia as tuas músicas/ E o anjo dava forma aos teus poemas fugidios".

        A não ser em Fonte Invisível, a preocupação de Schmidt com a poesia é bem restrita, sobretudo quando comparada a poetas de sua geração, como Drummond, por exemplo, que fez da gramática, da linguagem, da literatura, das artes, enfim, da própria matéria poética um motivo de especulação da poesia.

         Antes de terminar esta introdução, que tem mais de pesquisa que propriamente de atitude crítica, visando talvez a incentivar o leitor a aprofundar esse ou aquele sentido, outra observação sobre a discreta, mas documentada maneira de intertextualização, isto é, de dialogar com textos de outros poetas, tomando-os como tema de seu poema, deformando-os, parodiando-os ou simplesmente fazendo paráfrase deles. Farei apenas algumas indicações, citando as páginas das Poesias Completas, de 1956. Há referências, diretas ou indiretas, a Casimiro de Abreu ("cantar a minha terra", p. 9), Jorge de Lima ("Nas marchas malucas dos trens", p. 13, e "Era um grande pássaro. As asas estavam em cruz, abertas para os céus", p. 269), Alvares de Azevedo ("Se eu morrer primeiro..." p. 42), Bilac ("Hei de ser sempre teu — hás de ser sempre minha", p. 51), Vicente de Carvalho ("Pequenino morto"), Gonçalves Dias e Alvares de Azevedo (em "Adeus, lira", p. 145), Cornélio Penna ("Menina morta', p. 151), Emílio Moura ("Que amor o meu!" p. 217), Shakespeare, possivelmente a partir de um "Soneto" de Francisco Otaviano ("— Dormi, sonhei, morri, quem sabe!", p. 233), T. S. Elliot ("Junho é o mês da morte"), Camões (em vários lugares, mas, sobretudo, nas páginas 383 e 409), Dante (nos tercetos da p. 448 que remetem imediatamente para o último canto da Divina comédia, quando São Bernardo roga a intercessão da Virgem Maria) e, claro, alusão, referência e diálogo com vários temas da Bíblia, facilmente verificável.

        A poesia de Schmidt tem mesmo algo de vocacional, de predestinação: a sua voz e a voz que constantemente ouviu das coisas e do mundo foram apenas um "eco da voz de Deus", daquele momento inicial da criação (do Fiat lux) ao momento final do Apocalipse (do Verbum). Ou, então, como no Código de Hammurabi, quando o rei diz que nasceu "quando os deuses pronunciaram" o seu nome. Daí essa ideia do logos, de uma grande voz, uma voz universal da poesia, a que a voz do poeta Augusto Frederico Schmidt se juntou para a glória da Poesia e da literatura brasileira.

 

                                     ***

 

        Há muito que não se vê nas livrarias do Rio de Janeiro, de São Paulo, de todo o Brasil um livro sequer de Augusto Frederico Schmidt. O poeta que acrescentou às veredas modernistas a vastidão de outros horizontes intelectuais estava injustamente esquecido: as novas gerações praticamente o desconheciam; os professores estão mais preocupados em estudar o... já estudado, e o leitor comum — que lê e aprecia à sua maneira as grandes obras — está, ou é mal orientado pelos suplementos literários ou, então, não encontrando a obra nas livrarias, vai lendo mesmo o que lhe cai às mãos.

        Daí a importârtcia, notavelmente cultural, que assume a reedição da poesia de Augusto Frederico Schmidt, agora verdadeiramente completa, uma vez que reúne os livros aparecidos depois de 1956. Tem-se, de uma vez só, desenrolando-se diante de nós, o panorama de um discurso poético que não só se mostrou à altura das melhores produções do modernismo, ajudando-o no alargamento das suas dimensões estéticas, como soube restaurar na poesia brasileira os temas e as tradições literárias mais caras ao humanismo e à modernidade ocidental.

 

Rio de Janeiro, novembro de 1991.

 

 

 

'' Prefácio à Poesia Completa de Augusto Frederico Schmidt. Rio de Janeiro: Top Book, 1995. Saiu depois na revista Poesia Sempre, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, n.° 6, ano 3, outubro de 1995. Na revista A Ordem, Rio de Janeiro, v. 25, ano 75, 1996. E em Contramargem - I, op. cif, supra.

 

 

Referência bibliográfica:

TELES, Gilberto Mendonça.  As vozes universais de Schmidt.  In: Portal de Poesia Ibero-americana. Ano 17 No. 64  Outubro – Dezembro
2020.    ISSN  2447-1178
http://www.antoniomiranda.com.br/ensaios/as_vozes_universais_de_schmidt.html


 

 

 
 
 
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