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ACERCA DA CANÇÃO “PILATOS”,
de Rubenio Marcelo e Raquel Naveira

(por: Ana Maria Bernardelli)

 

BERNARDELLI, Ana Maria.  Acerca da canção “Pilatos” de Rubenio Marcelo e Raquel Naveira. In:  Portal de Poesia Ibero-americana. Ano 16 No. 61, Outubro-Dezembro 2019.   ISSN 2447-1178

 (Visite o site da música "Pilatos":
https://www.youtube.com/watch?v=tpKV0idJOJ4)

 

PILATOS letra: Raquel Naveira melodia: Rubenio Marcelo interpretação: Rubenio Marcelo CD Parcerias

“Traze-me a ânfora de água e malva, a toalha alva
de linho, agora, lava-me as mãos...

Isso, esfrega a palma até que minha alma não sinta mais culpa de nenhum dos meus atos, afinal,
és uma mera escrava
e eu sou Pilatos...”

Quando ouço uma canção, cumpro quase um ritual: antes de qualquer consideração, ouço-a três, quatro ou mais vezes e em cada uma delas me preocupo com um aspecto. Ligada ao estudo do texto, prendo-me, em primeiro lugar, ao aspecto da língua, da interação verbal, visto que ela, a língua, acontece entre sujeitos e em um contexto sociocultural. Assim, aquele que, em contato com a canção, tiver conhecimento dos fatos que envolvem o instante narrado/ cantado/terá uma compreensão bem diferente daquele que não o tiver, estando apto a reconhecer as muitas vozes presentes na letra – a voz do império romano, a voz do soberano, a voz do povo (mesmo que manifesta pelo silêncio da escrava) e a voz do autor/poeta.

A letra da composição Pilatos, escrita por Raquel Naveira, configura-se pelo jogo de palavras, aparentemente simples, mas que direciona a múltiplas reflexões, construído com o intuito de marcar a dolorosa diferença social: um, em tom de mando, utiliza-se de imperativos duros –“ traze-me / lava-me/ esfrega/” e de comparações envaidecidas –“ és uma mera escrava e eu sou Pilatos” e a constatação intransigente daquele que se julga todo-poderoso:

“Afinal”; outra, evidencia-se pela “fala” do silêncio da obediência... A plurivocidade se intercala – o poder e a submissão – o que marca um dialogismo paradoxal que evidencia um determinado momento sócio-histórico.

Na letra de Pilatos, a voz velada, silenciada, marcada pela ação servil da escrava, permite entrever seus gestos: Isso! numa obediência indefesa, diante da arrogância para calar a população escravizada, aterrorizada, perante o poder do supremo governador; a voz do autor/poeta se apresenta com sua leitura crítica do fato: “até que minha alma não sinta mais culpa de nenhum dos meus atos”- uma ligação entre lavar as mãos e a absolvição de culpa já que a angústia rondava o coração do romano – uma visão que ironiza a pequenez do gesto como se a água tivesse o poder de restituir a pureza moral!

Pode-se dizer que mais uma voz acena aqui ligada à ideia da água, profundamente enraizada em muitas culturas e religiões, incluindo o cristianismo.

A escolha do léxico: ânfora, malva, linho, palma, alma, mera, todas elas com um teor de quase delicadeza, no entanto, esculpem um desenho medonho do desumano momento, antevendo a agonia de Jesus no calvário.

Todos os versos de Pilatos – canção inserida no CD “Parcerias”, de Rubenio Marcelo -, além das vozes destacadas, deixam entrever, ainda, outros significados implícitos ou explícitos. Uma letra que vai muito além de seus poucos versos.

Pilatos, mensagem pertinente ao momento religioso que estamos vivenciando, seguindo a liturgia cristã, exprime, de modo sutil, quase suave, um questionamento milenar, que não deixa cair no esquecimento um ato de poder absoluto – ou seria uma covardia? – ao qual fazem eco a insatisfação que fere a alma e a fé. Parece-me até uma oração, um clamor, não em tom de denúncia, mas de indignação.

O segundo momento é dedicado à melodia. Assim como a letra de Raquel Naveira se mostra delicada, afável e, no entanto, traz à memória um dolorido momento, a melodia de Rubenio Marcelo também transmite suavidade e calma, com modulações que se alternam, notas que se alongam para transmitir a mensagem do poeta em toda a sua força de sentidos. O que afaga o coração é a comedida presença da voz instrumental que, espera sua vez de “indignar-se” e, num esgar, inicia um diálogo entre os instrumentos cada qual com sublime devoção. É inesperado o que surge da junção da letra e melodia tão diáfanas – o paradoxo da indignação, do questionamento e da tristeza. A sonoridade da canção, as conversas dos arranjos colorem os discursos detectados. Uma composição que só os eleitos pelo talento conquistam em poética e musicalidade.

 

 

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