A POESIA INAUGURAL DE JOÃO FILHO
por Salomão Sousa
Extraído de
SOUSA, Salomão. Poética e andorinhas. Desenhos de Zenilton Gayoso.
Brasília: Editora Otimismo, 2018. 144 p. ilus. 14 x 20,5 cm. N. 09 753
ISBN 978-85-8652-453-8 Ex. bibl. Antonio Miranda
Tão logo saiu o resultado do Prémio Biblioteca Nacional de 2015, vasculhei a web para buscar informações sobre o poeta João Filho, que levou o Prémio Alphonsus de Guimaraens com o livro A dimensão necessária. Não eram muitas. Apesar de ter sido destaque na Feira Internacional Literária de Paraty, em 2005, ter trabalhos traduzidos para diversos idiomas e com dissertação universitária sobre a sua obra de ficção, sequer possuía, à época, perfil na rede social. E, como ocorre com a maioria dos poetas editados por pequenas editoras, o livro só estava disponível no site da Mondrongo, onde foi possível encomendá-lo.
De posse do exemplar, surpreendeu-me o domínio técnico do autor, a pluralidade dos temas, a autenticidade da expressão, a ausência de qualquer banalidade que pudesse embotar o prazer efetivo do fluir da leitura dos poemas. Tem fôlego para esgotar os temas — só o poema "0 riacho" faz percurso de cento e noventa e três versos na mais justa terça-rima dantesca. "5o-noite", em quadras sem rimas, transita por cento e oitenta versos uma fábula de exsudação amorosa, sem exceder em verso algum o trânsito lírico, quase poesia árabe pela sutil leveza das imagens, garantindo na justaposição das palavras do título a densidade da noite. E talvez árabe, já que a Bahia é berço de nações e de sincretismo — o que só enriquece a poesia de João Filho.
Logo no primeiro poema ficam explícitas as indicações da trajetória mais tradicional que João Filho deseja palmilhar, mas com indicativo da necessária compreensão dos itinerários, pois quem está em percurso só pode se deparar com a cidade existente no tempo presente. A cidade se redesenha nos sapatos velhos e gastos, mas com desejo de inserir o gesto limpo onde nada escapa. E vai nesta afirmativa de preservar a reverência à tradição, sem fidelidade excessiva — está aí o enjambement ousado, de isolamento do "a" para indicação de perda no labirinto —, pois é autor contemporâneo do tempo em que há necessidade de pro-vocação das formas:
porém não lave os sapatos,
não porque registre tantos
itinerários andanças,
mil labirintos urbanos, a
fuligem aí pousada (...)
Com o andamento do livro, observa-se um excesso de respeito a estes sapatos um pouco velhos e gastos, com sonetos de abordagem de temas específicos, como locais de Salvador, a algu-ma amada, o supermercado. Em outros poemas, a demonstração do trágico, ciclo de sonetos referenciais ao tempo. Poesia, enfim, de um carpinteiro disciplinado, que sabe garantir a forma com o cerne puro que só a vida pode assegurar, independente da temática, como Carlos Drummond de Andrade em Claro enigma.
Estes exercícios do primeiro livro, para comprovar a capacidade de execução das formas tradicionais, se fora de época ou retomada de formas, servem para a formação do autor, pois este é o livro inaugural de um poeta — já que o primeiro, As três sibilas, de 2009, edição de Dulcinéia Catadora, teve edição reduzidíssima einacessível — que nasce consagrado por um prémio luminoso. Mas não é só o prémio que o consagra, também com¬posições enxutas, como o poema "Sombra de nuvem", onde so bressai o exercício de captar um gesto, compará-lo, e conseguir montá-lo com convicção. Em "Luz primeira" é onde João Filho demonstra que é poeta de seu tempo, pronto para libertar-se e iluminar-se com formas mais soltas, de invenção. Espera-se que seus próximos trabalhos palmilhem esta liberdade de forma e expressão para que não seja compreendido apenas como poeta amansador de forma e técnica, pois metafísica, fôlego, e outros aparatos já se expressam com exuberância madura no imo de seu trabalho.
Detenho-me num poema, onde uma falsa forma antiga — que é o que os contemporâneos buscam — é usada por João Filho para questionar este mundo velho e derrotado. Aí ele revitaliza o trágico e o metafísico. Vejam a primeira estrofe do poema "Considerações sobre a derrota":
Manhãs inaugurais de fuligem e névoa.
Já falta menos do que faltava.
Reduzida a ruínas a cidade acorda;
o que pulsátil vigorará
no centro danificado do dia? Chove.
Nesta hora exausta recolha a lança,
estreite a chama, reduzidíssima,
profundamente — aí tua casa.
Soubesse Ulisses dessa exuberância fóssil
amaria a cidade calcinada?Chove: (...)
E o poema segue por mais três estrofes, com repetições do abandono e do verso fá falta menos do que faltava. É um poema que transcorre na perfeição, primoroso (prova de que os adjeti-vos não são inúteis quando usados numa obra-prima). Não há como não admitir que João Filho é um poeta que aproveitou bem o itinerário e inaugurou com mestria a sua cidade poética.
Num poema inédito que João Filho encaminhou a Carlos Machado para divulgação no volante Poesia.net, nota-se um autor envolvido na virulência da necessidade do conhecimento para a composição e do envio de sua poesia para correntes mais expressivas da poesia atual:
Da Venda o variabilíssimo —
facas de uso onde ferrugem é inoxidável
Enganchadas em arame na prateleira — as facas
num escape
se enfincam
no que dá furo
As facas (enferrujadas ou não)
são firulências
Peixeiras, vianas, cruvianas, serengas lambedeiras e naifas (famintas de estripas)
penduradas no arame
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Página publicada em abril de 2019
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