DRUMMOND, POR SI MESMO?
comentário de Antonio Miranda
Acabo descobrindo a minha própria impaciência e intolerância. Mas sei como disfarçá-las, com uma certa piedade por meus próprios defeitos. Disfarço melhor a minha insegurança, manejo quase à perfeição o improviso e a minha incapacidade de impor-me um rigor mais cientifico ou metodológico aos meus argumentos. Não raro envergonho-me de minhas convicções, por cegarem a minha visão mais ampla dos fenômenos; sinto algum pudor pelo manejo excessivo da intuição e da autoestima.
Descubro que Drummond era muito mais inseguro do que eu, guardadas as proporções. Para não deixar ambiguidade, esclareço estar referindo-me às desproporções entre a grandeza literária do poeta e o meu exercício amadorístico no uso das palavras. Mas Drummond era frágil e insatisfeito de si mesmo. Parecia isolar-se do mundo, no mundo exclusivo de suas poesias e de suas crônicas de igual lirismo, para disfarçar o que ele, em carta enviada a Alceu Amoroso Lima, considerava a sua precária educação acadêmica. Não passava de um profissional fracassado das artes farmacêuticas e sua capacidade não ia além das leituras de ficção e poesia. Sem os rigores dos especialistas em literatura. Prudente, nunca meteu-se no campo da crítica ou do ensaio. Evitava atividades sociais e não aceitava convites para dar conferências.
Só uma pessoa tão grande era capaz de ver a sua própria limitação. E a limitação de Drummond parece tê-lo defendido do maneirismo e cacoetes intelectuais, deixando fluir em toda a sua criação uma intuição formal a um tempo criativa e rigorosa. Creio que só mesmo no campo da poesia conseguia segurança suficiente para ousar teorizar. Nunca fez manifestos mas fez poesia sobre a própria poesia.
"Vou por um desvio, que é escuro e sem alegria, e não tenho certeza de chegar ao fim", confessou — estas foram as palavras que ele mesmo usou - ao maior pensador cristão do Brasil, que foi Amoroso Lima. E Drummond era um quase-ateu, sem convicção religiosa por "deformação" de sua própria educação incipiente, seguido seu próprio juízo. E para um mineiro que nunca renunciou ao seu provincianismo, tal falta de religiosidade era, sem dúvida, um terrível defeito. Que o teria levado ao abandono de si mesmo, conforme suas próprias queixas.
Quase como autoflagelando-se, o maior dos poetas brasileiros confessa-se impotente diante de seu dualismo de estudante que conquistava prêmios e o rebelde e insubmisso que se escondia em suas entranhas. Eu sempre assumi, com muita lucidez e cinismo, tal contradição, se ela não é a própria essência, ou dialética, do processo de aprendizagem. Descobrir a angustiada humildade de Drummond, longe de consolar-me, leva-me a uma confissão de soberba, imprópria para os autodidatas, no julgamento do próprio bardo mineiro...
Texto extraído de
MIRANDA, Antonio. Relógio, não marque as horas – crônica de uma estada em Porto Rico. Brasília, Asefe, 1996. 120 p. 15x21,5 cm. Apresentação de José Santiago Naud.
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