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"COLEÇÃO DE CACOS", POEMA DE DRUMMOND, NA

INTERPRETAÇÃO DE ALCIDES VILLAÇA

 

O memorialista Drummond, na sua última fase produtiva, continuou autobiográfico, revivendo o menino, em que o poeta, criticado por muitos que esperava uma renovação contínua, em verdade, como na interpretação de Alcides Villaça: "tudo os que poderia ser pura lembrança ressurge com o impacto do que é vivido no aqui e no agora do menino antigo, e não em
in illo tempore."

Villaça amplia o nosso raciocínio:
" O fato é que a matéria bruta da autobiografia, tão tensionada e transfigurada ao longo da poesia de Drummond, impõe-se, na velhice, como estímulo vital para um surpreendente re-enraizamento."

Neste editorial do Portal de Poesia Ibero-americana de fim de ano (Novembro – Dezembro 2017), vamos transcrever um fragmento do texto de Villaça, de seu livro Passos de Drummond, edição da Cosacnaify — que deixou de editar e que agora buscamos seus livros em sebos físicos e digitais.

O livro de Villaça é uma recopilação de anotações de aula e de textos para artigos que desenvolveu a posteriori, e segue produzindo.

***

Villaça afirma: "Quero ler essa conjunção de vozes, de modos e de tempos, no poema publicado em Esquecer para lembrar (Boitempo III, 1979).

 

       COLEÇÃO DE CACOS

         Poema de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

         Já não coleciono selos. O mundo me enquizila.
         Tem países demais, geografias demais.
         Desisto.
         Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grizolia,
         orgulho da cidade.
         E toda gente coleciona
         os mesmos pedacinhos de papel.
         Agora coleciono cacos de louça
         quebrada há muito tempo.

         Cacos novos não servem.
         Brancos também não.
         Têm que ser coloridos e vetustos,
         desenterrados — faço questão — da horta.
         Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas,
         restos de flores não conhecidas.
         Tão pouco? Só o roxo não delineado,
         o carmesim absoluto,
         o verde não sabendo
         a que xícara serviu.
         Mas eu refaço a flor por sua cor,
         e é só minha tal flor, se a cor é minha
         no caco da tigela.

         O caco vem da terra como fruto
         a me aguardar, segredo
         que morta cozinheira ali depôs,
         para que um dia eu o desvendasse.
         Lavrar, lavrar com mãos impacientes
         um ouro desprezado
         por todos da família. Bichos pequeninos
         fogem de revolvido lar subterrâneo.
         Vidros agressivos
         ferem os dedos, preço
         de descobrimento:
         a coleção e seu sinal de sangue;
         a coleção e seu risco de tétano;
         a coleção que nenhum outro imita.
         Escondo-a do José, por que não ria
         nem jogue fora esse museu de sonho.

 

Os cacos

Entenda-se, já pela sugestão do título, que há uma aspiração de somar e organizar fragmentos num conjunto inédito e extravagantemente criativo. Fora da convenção das coleções previsíveis como as de selos, o menino encontra ânimo na regulamentação particularíssima da tarefa que lhe cabe: colecionar cacos de louça quebrada há muito tempo, coloridos e desenterrados da horta.

         Há, nessa disposição de tão específica coleção de cacos, sugestões a que o leitor não pode ser insensível: a matéria visada está oculta, é fragmentária e exige uma espécie de lavra, mineração caprichosa De papel". A busca é a da pessoalidade de uma coleção talvez incompreensível para os outros, mas essencial para o menino. Anos mais tarde, o poeta pedirá a atenção de todos para a sua flora sem atrativo aparente, que no entanto rompe o asfalto e tumultua a tarde?
         É difícil falar do fragmentário sem despertar alguma alusão às danificações do tempo, do espaço e da vida modernos. O fragmentário foi elevado a categoria estética da modernidade, perspectivas distintas e simultâneas, percepções dissonantes, experiências da fratura. Como já vimos, o poeta Drummond surgiu em livro expondo as arestas incongruentes de sua personalidade, de seu estilo, de seu mundo. Tal convicção parece manter-se por muito tempo; num poema dos anos 60 está uma síntese dela:

 

         CERÂMICA

         Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

         Sem uso,
         ela me espia do aparador.

 

Fragmentos extraídos do livro:

VILLAÇA, Alcides. Passos de Drummond.  São Paulo: Cosac Naif, 2006.  152 p.     16x23    cm.    capa dura e sobrecapa.  ISBN 978-85-7503-516-9   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

                                               *********

         Vale a pena ler os demais capítulos deste livro que revela um crítico em sua intimidade profunda com os versos do nosso grande poeta modernista.

Antonio Miranda

 

                           
        

 Brasília, 13/11/2017

        

 

 

 
 
 
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